TURNÊ (Mathieu Amalric, 2010)

João Paulo Capelotti *

Cartaz nacional do filme "Turnê"

Em Turnê há uma contraposição constante entre palco e realidade, entre arte e vida, tanto pelo que os aproxima como pelo que os afasta. Trata-se, afinal, das lutas, dos esforços, dos malabarismos necessários para se ficar em cena, para viver e atuar.

Para isso, o diretor francês Mathieu Amalric, mais conhecido por seus papeis em O Escafandro e a Borboleta (Le scaphandre et le papillon, 2007) e 007 – Quantum of Solace, (2008) utiliza um dos exemplares mais espalhafatosos de espetáculo: o burlesco, o musical estrelado por mulheres com pouca roupa (e a que existe, exótica) cantando ou dublando canções enquanto executam performances sensuais, ou quase isso.

Cena do filme "Turnê"

As dançarinas de Turnê estão um tanto acima do peso, ou são tímidas, ou concebem números não lá muito ortodoxos. Mas não ligam a mínima para isso. Palco e vida aqui se encontram: as estrelas do espetáculo são, à primeira vista, pessoas comuns, e não a imagem pré-concebida da “artista”. Isto em mais de um sentido, já que as protagonistas são realmente dançarinas que estão tendo seus primeiros contatos com a tela, não temos atrizes conhecidas de outros papeis, em plena forma ou em ângulos milimetricamente estudados para disfarçar o seu oposto. Nada de Christina Aguilera ou Cher, portanto, como no recente Burlesque (2010). Isso faz com que as dançarinas que nos são apresentadas surjam como uma carga de realidade considerável, não só porque não as conhecemos de outros papeis, mas também pelo fato de elas estarem, de certo modo, representando versões de si mesmas. Aliás, o que é realmente parte da personalidade de cada uma, e o que é das personagems, é uma pergunta tão difícil de se responder quanto à similar feita por Abbas Kiarostami em Cópia Fiel (Copie conforme, 2010), também em cartaz.

Cena do filme "Turnê"

As personagens em questão são um grupo que se apresenta pelos Estados Unidos, sob a batuta de Joachim Zand (o próprio Amalric), e está em turnê pela França, terra natal do diretor. Falta, porém, o espaço para o grande show em Paris.  Enquanto a trupe se apresenta pelo interior, Zand tenta retomar antigos contatos para conseguir alugar um teatro na capital que abrigue o show de encerramento da temporada. Esbarra em antigos desafetos, reencontra seus dois filhos, a ex-amante, leva umas porradas e prova sua falta de jeito como pai. É no relacionamento com as crianças, aliás, que reside um dos aspectos mais verossímeis de Turnê: longe de ser um comercial de margarina, a relação de Zand com os filhos afinal não é de todo tão desastrosa, como bem demonstra a última cena dos três, no quarto de hotel, que transborda diversão genuína.

Cena do filme "Turnê"

Entre um espetáculo e outro, também ganham vida fora do palco as dançarinas de Zand: seus laços de afeto, suas carências, sua cotidiano banal fora dos exageros do palco. Essa dicotomia é bem demonstrada pelo tom quase documental da câmera que acompanha a vida  real das dançarinas, em contraste com as gruas, os múltiplos ângulos, as luzes e o tom algo “Cirque du Soleil” com que são exibidos os espetáculos. Mas ambos não deixam de oferecer surpresas: exemplares, nesse sentido, o show com um balão, de um lado, e os flertes de Zand com uma frentista e o de Mimi Le Meaux (Miranda Colclasure) com um jovem francês no hotel.

Amalric conduz com segurança os shows e o que acontece fora deles. Ganhou o prêmio de direção no Festival de Cannes no ano passado, e de certo modo me ecoou o Roman Polanski ator-diretor de filmes como Chinatown(1974). O grande achado de seu elenco de burlesques é mesmo Miranda Colclasure, que vai aos poucos ganhando o status de protagonista. De fato, muitas vezes as pessoas que conhecemos não assumem de imediato papel importante em nossas vidas: elas o fazem aos poucos. Assim também com Zand e Mimi, um com relação ao outro.

Se a turnê é a metáfora da vida, a busca pelo palco de Paris não deixa de ser o sonho, a utopia que visamos no horizonte. E se é assim, talvez valha lembrar daquele ditado segundo o qual não importa tanto o destino, mas o caminho que percorremos. Não interessa, portanto, se Zand consegue ou não o teatro, mas sim o afeto que descobre em seu grupo durante a turnê.

Como obra cinematográfica, porém, Turnê possibilita um passo além. Ora, a tal contraposição entre palco e vida nos é transmitida justamente por uma espécie de palco, que é a tela do cinema. A junção dessas duas esferas no retrato cinematográfico faz com que tanto as pessoas reais do backstage como as personagens que estas interpretam se tornem todas personagens na nossa perspectiva.

Mimi Le Meaux (Miranda Colclasure)

Por isso, o final algo abrupto de Turnê, que me deixou perplexo num primeiro momento, fez todo sentido depois. Por um lado, como registro da vida, o filme não é mais que um segmento de reta. Mesmo as maiores cinebiografias, ou os filmes em tempo real (pense-se no faroeste Matar ou morrer, por exemplo), são intervalos entre pontos específicos. A arte, embora grandiosa, é limitada. A vida continua. Por outro lado, como registro do show, Turnê não pode ser eterno: uma hora, a cortina sempre se fecha.

*João Paulo Capelotti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e mestrando em Direito das Relações Sociais na UFPR.

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