Interior. Leather Bar (James Franco e Travis Mathews, 2013)

Por Henrique Rodrigues Marques*

Um jovem policial é designado a se infiltrar no submundo gay da Nova Iorque dos anos 70 para capturar um serial killer que assassina homens homossexuais. Essa é a premissa – inspirada em uma série de homicídios reais –  do longa “Parceiros da Noite”, clássico cult que gerou enorme repercussão na época de seu lançamento, enfrentando uma série de obstáculos que quase engavetaram o projeto. Em meio a protestos feitos pela própria comunidade LGBT tentando impedir a finalização do filme, acusando-o de conteúdo homofóbico, discussões com os produtores e sérios problemas com a censura, o diretor William Friedkin buscou ao máximo traçar um retrato fiel da vida noturna e dos clubes fetichistas da época, chegando até mesmo, em atitude um tanto quanto audaciosa, a filmar em clubes de sexo reais. Mas nem a fama do diretor de “O Exorcista” foi capaz de levar a obra aos cinemas em sua plenitude, sendo, segundo boatos nunca confirmados, 40 minutos de película retirados do filme por “conteúdo impróprio”. “Não existem ‘Xs’ o bastante no alfabeto para classificar esse filme”, teria dito o presidente da organização de censura na época. O choque causado pelas imagens foi tão estrondoso que o órgão optou por destruir o material. Verdade ou não, o fato é que essas cenas nunca mais foram vistas.

Em 2013, 30 anos, muita polêmica e poucas mudanças depois, o ator James Franco convida o diretor Travis Mathews para recriar esses 40 minutos perdidos. E a partir daí nasce o projeto “Interior. Leather Bar”.  O filme é uma mescla de documentário e ficção, que utiliza ferramentas metalinguísticas para falar sobre o processo de concepção da obra, suas motivações e exibir os bastidores da produção, intercalando tudo isso com cenas do resultado final da recriação do material cortado. Fica claro desde cedo que o filme não se propõe a entregar os 40 minutos de ficção recriados, mas sim o de analisar os impactos gerados pela própria decisão de recriá-los. Nos bastidores, a câmera investiga as conversas nos corredores e camarins buscando as opiniões dos atores envolvidos no projeto e, mais do que isso, o que eles enxergam nesse tipo de projeto. Existe arte? Existe discurso político? Esse desbunde é transgressor? As conversas vistas no set de produção são um reflexo dos mesmo debates que acontecem em rodas de bares e grupos de amigos. E é disso que o filme trata.

A escolha de Franco ao convidar Mathews para ser seu cúmplice não é por acaso. O jovem diretor gerou muita discussão em festivais mundo afora no ano passado com o seu “I Want Your Love” que abusa de sexo explícito ao retratar o cotidiano de um grupo de amigos gays em São Francisco, depois de já ter executado uma série de documentários em que entrevista homens gays em cidades icônicas como Londres e Berlim. Com esse currículo, ninguém seria mais indicado para tirar o projeto do papel, já que Mathews está bastante familiarizado com as temáticas fundamentais de “Interior. Leather Bar”.

Numa primeira análise, pode-se dizer que a homenagem serve como um acerto de contas histórico entre a comunidade gay e a obra de Friedkin. Nunca entendi completamente as acusações que o filme recebeu sobre homofobia, já que o personagem mais virtuoso do filme é gay, e o próprio Friedkin já havia dirigido alguns anos antes a comédia “Os Garotos da Banda”, outro marco do cinema gay. Foi somente em meados da década de 90, com o lançamento do filme em VHS, que o filme foi redescoberto como cult e seu valor foi resignificado, tornando o filme elemento assaz importante para a construção de uma filmografia queer. Rodado em 1980, o filme marca um período bem específico da expressão sexual gay, antes da eclosão da AIDS, o apogeu dos “leather bars” e um momento de enorme agitação ativista. Além disso o filme também faz parte da safra de filmes responsáveis por inserir a temática GLS na produção hollywoodiana. Em contraste com os protestos ocorridos nas filmagens de “Parceiros da Noite”, aqui encontramos vários gays dispostos a participar do polêmico documentário como forma de prestar tributo ao original, apesar de todos os riscos envolvidos nessa participação. Em uma das cenas mais cinematográficas do filme, Mathews pede para que os atores flertem, ou melhor, façam um “cruising” (prática comum na comunidade gay que consiste na demonstração de interesse no outro pelo olhar e título original do filme de Friedkin) com a câmera, numa deliciosa celebração do estilo de vida queer.

O título é outro componente que se prova bastante pertinente ao longo da trama, recebendo uma série de significados. Referência direta a construção de um roteiro (“Interior” é a marcação que indica que a cena será gravada em ambiente interno) e  ao mesmo tempo as cenas perdidas de “Parceiros da Noite”, o título também traz em si o estigma do secreto, do marginalizado que o documentário toca frequentemente. Não se deve falar sobre – e muito menos mostrar – o que acontece nesses espaços profanos. E a questão da construção do roteiro – ou exposição dos artifícios da ficção – também ganha seus ecos. Após alguns minutos de filme percebemos que a reencenação em si não é o foco de interesse da dupla de diretores: eles direcionam muito mais o olhar aos bastidores (seriam ensaiados?), fixando-se no desconforto do ator Val Lauren convidado a interpretar o protagonista (feito por Al Pacino no original) e que aceita apenas por ser grande amigo de Franco. Ele faz o papel de espectador geral: heteronormativo e, como o próprio diz, aquele que não enxerga nada de artístico na proposta. Aqui nos deparamos com um curioso paralelo entre ele e o policial de “Parceiros da Noite”. Alheio a realidade desses espaços, e vulnerável por seu caráter minoritário,  Val entra nesse universo com um misto de receio e fascínio. Não são poucos os momentos em que o ator questiona as razões de Franco ao fazer o filme, mas em nenhum momento desiste de participar. Após assistir uma das cenas de sexo oral Lauren pergunta a Franco “você realmente acha que isso é necessário? Você acha que isso devia ser exibido em um cinema?”, ao passo que o diretor responde “sim, pois é uma ótima ferramenta para contar histórias”.

Em toda a história da arte o sexo serviu como fonte de inspiração e a nudez foi retratada com naturalidade na pintura, na escultura e na fotografia. Mas por ser a mais dependente de mecenatos e financiadores, a sétima arte acaba sendo a mais mutilada para que se encaixe nos padrões. E é aqui que reside a força do discurso do filme. “Tudo bem mostrar cenas de morte e violência em filmes comerciais, mas sexo? Não, isso já é demais” ironiza James Franco em uma das conversas do filme. Chega a ser risível constatar que, três décadas depois, uma sociedade pós-Sasha Grey ainda trata o sexo da mesma forma. E se sexo real choca, imagina a comoção atingida pelo sexo gay entre homens sadomasoquistas.  Nesse sentido, “Interior. Leather Bar” acaba não apenas formando um discurso de defesa da expressão sexual ou da preservação da cultura queer, mas também um manifesto da liberdade do artista. Em defesa dos Friedkins, Breillats, LaBruces e quem mais teime em utilizar o sexo – e toda sua visceral potência narrativa – como instrumento para contar histórias. E a cada vez que uma dessas obras atingem as salas de exibições fica a certeza de que o papel primordial da arte está sendo exercido e minhas esperanças pelo dia em que o termo “censura” existirá apenas em livros de história do audiovisual se renovam.

*Henrique Rodrigues Marques é graduando do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editor Geral da Revista Universitária do Audiovisual.

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