Educação Popular e Coletivos de Vídeos: diálogos e ações

O presente artigo tem como objetivo traçar um paralelo entre a educação e o audiovisual em uma perspectiva humanista e transformadora. Para isso, o texto está estruturado em três partes. Na primeira parte aponta-se a concepção de Educação que sustenta as ideias contidas aqui. Na segunda parte, traça-se um panorama sobre a relação entre a educação e o audiovisual, mostrando algumas concepções metodológicas ao trabalhar o audiovisual como processo educativo. Por último, partindo de uma ideia de educação popular e da inserção da realização audiovisual em grupos populares, destaca-se a potencialidade da criação audiovisual como processo de educação transformadora em que o audiovisual esteja integrado no cotidiano das atividades destes grupos populares.

Educação, conscientização, transformação…

A compreensão de Educação que orienta este artigo parte da ideia de que ela é um processo que se dá em toda a nossa vida, ou seja, não está restrita ao espaço escolar, pelo contrário, ela se dá em todos os ambientes sociais em que nos relacionamos com o outro e com o mundo.

Esta compreensão está presente nas pesquisas de Paulo Freire (2005) que nos demonstra que a educação é um fenômeno que se constrói no decorrer do processo histórico através das relações dos seres humanos entre si e com o mundo. Ou seja, não há um momento em que os processos educativos se separam da própria vida vivida. Aprende-se vivendo. Da mesma maneira, Fiori (1986) nos apresenta a educação como um processo contínuo de construção do ser humano, e este processo, que não se dissocia da conscientização, mas a acompanha, se dá, também, nas relações entre as pessoas e delas com o mundo. “Educação e conscientização se implicam mutuamente” (FIORI, 1986, p. 03).

Estas relações entre as pessoas, segundo Freire (2005), nos permitem vislumbrar duas concepções de educação: uma “bancária”, que atua como instrumento da opressão; e outra, progressista e libertadora.

Em relação à primeira concepção, de forma sintética podemos afirmar que há um(a) educador(a) que tudo sabe e um(a) educando(a) que nada sabe, cabendo àquele(a) a função de “educar” (dentro da perspectiva “bancária”). Este “educar” parte do pressuposto, portanto, de que há um sujeito que fala o que sabe, através da narração e um ouvinte passivo a quem cabe apenas o papel de depositário dos comunicados do(a) educador(a). Nesta perspectiva, o(a) educando(a) é cercado(a) de um discurso prescrito, onde a realidade é algo estático, dado, imutável, destruindo, assim, a possibilidade de o(a) educando(a) se tornar sujeito do processo de construção do conhecimento.

A educação libertadora é aquela em que educador(a) e educando(a) são sujeitos do processo de formação humana. O(a) educador(a) progressista pauta seu trabalho em “uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando” (FREIRE, 2007, p. 10).

Ainda no sentido de contrapor a educação “bancária” com a educação libertadora, Freire (2005) vai diferenciar a teoria da ação antidialógica da teoria da ação dialógica.

Importante destacar que o autor reconhece e enfatiza que teoria e ação fazem parte de um mesmo processo que é dialético e se constrói na práxis, ou seja, na articulação constante entre prática e teoria. Na teoria da ação antidialógica, onde se estabelece uma relação de dominação, de opressão, a alteridade é negada. O outro é visto como objeto da ação de quem domina. O outro é conquistado, manipulado, invadido culturalmente para que se mantenha a situação de opressão, evitando, de qualquer maneira, que o oprimido se reconheça como tal. Por outro lado, na teoria dialógica da ação “há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação” (FREIRE, 2005, p. 192). Apenas com a co-laboração, comunhão e o diálogo intersubjetivo, portanto com o outro, é possível construir uma consciência crítica sobre a condição de opressão que conduza a ações que transformem tal condição.

A partir do momento em que o oprimido, inserido criticamente na sua realidade, conscientiza-se de sua condição de oprimido, construindo, portanto uma consciência histórica desta situação, é possível entrever a possibilidade de o oprimido lutar pela sua libertação, pela sua humanização (FREIRE, 1980; 2005).

A conscientização, assim, é parte fundamental na constituição do ser humano como sujeito histórico e, se a conscientização prefigura a ação transformadora, podemos dizer que a libertação e a humanização do ser humano e, por conseguinte, a transformação do mundo em um lugar mais justo passa pelo processo de conscientização, processo este que está enraizado na realidade cotidiana, ou seja, não se trata de uma consciência pura, mas sim de uma aproximação crítica do mundo.

Juntos, consciência e mundo ganham realidade. Um não se perde no outro, perdendo sua identidade: identificam-se, um através do outro. […] O mundo é significado no permanente significar ativo, que não é atividade de uma consciência pura, mas desenvolvimento dialético da consciência do mundo ou do mundo consciente. […] Na medida em que o ser humano dá significados ao mundo, neste se reencontra, reencontrando, sempre, e cada vez mais, a verdade de ambos. Neste momento, a conscientização já se prefigura como ação transformadora e não como visão especular do mundo: refazer-se, com autenticidade, implica em reconstruir o mundo (FIORI, 1986, p. 04).

A tomada de consciência de uma situação de opressão não implica a transformação desta situação. Estamos no nível da reflexão. Tampouco a ação, desprovida da reflexão, se constitui em transformação. Contudo, numa perspectiva dialógica, “os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em co-laboração” (FREIRE, 2005, p. 191).

Este encontro entre os sujeitos que possibilita esta co-laboração se dá nas práticas sociais que são “as relações que se estabelecem entre pessoas, pessoas e comunidade na qual se inserem, pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de nação e, notadamente, em nossos dias, de relações entre nações” (SILVA, et al, 2005, p. 1).

Educação e criação audiovisual

Após apresentarmos a concepção de educação que orienta este estudo, traçaremos, agora, um pequeno panorama sobre as várias linhas de pesquisa que trabalham com a relação entre o audiovisual e a educação1. Estas linhas podem ser identificadas nos seguintes grupos temáticos: Leituras dos Meios; Educação a Distância; Tecnologia e Educação Escolar; Educação e Arte; Criação em Imagens e Sons como Processo Educativo e Outras Temáticas.

No grupo temático denominado Leitura dos Meios, encontram-se trabalhos que relacionam a leitura crítica dos conteúdos veiculados pelas mídias com o processo de formação na educação escolar e não escolar, além de trabalhos que fazem uma leitura crítica dos próprios meios de comunicação, num sentido mais amplo, relacionando-os com o processo educacional e, por último, os que sugerem a necessidade da capacitação de professores para trabalharem, de forma crítica, a relação entre mídia e educação e assim por diante.

Em relação ao grupo Educação a Distância, é possível encontrar textos que refletem o fenômeno da educação a distância, abordando questões, tais como: a relação entre professor e estudante no ambiente virtual; processos de avaliação com mecanismos computacionais; análises de práticas de educação a distância e a incorporação crítica dos avanços tecnológicos em processos de educação a distância.

No grupo temático Tecnologia e Educação Escolar são encontrados textos que abordam a inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no ambiente escolar, implicando mudanças de comportamentos no processo de ensino-aprendizagem. Há um destaque para a incorporação de recursos de informática e de produtos audiovisuais (programas de TV, filmes) e como eles podem ser utilizados no ambiente escolar, propiciando um auxílio pedagógico em diversas disciplinas curriculares.

No grupo denominado Educação e Arte há a presença de textos que propõem processos educacionais que trabalham, de forma interdisciplinar, com aportes advindos do teatro, da dança, da música e do cinema. Os escritos apontam questões sinestésicas, tais como a sensibilidade visual e auditiva e a expressão corporal, como formas de auxiliar na construção do conhecimento e no processo de formação.

No grupo temático Criações em Imagens e Sons como Processo Educativo há destaque para textos que trabalham a criação em Imagens e Sons em ambientes escolares e não escolares como prática pedagógica e que propõem a apropriação das tecnologias de criação e de produção de mensagens em imagens e sons, a fim de propiciar um ambiente de construção do conhecimento e formação humana. Sugerem, ainda, uma participação ativa no processo de construção de conhecimento ao invés da posição passiva de receptor de mensagens.

Os textos que não se relacionam com nenhum eixo temático acima foram agrupados em um grupo denominado Outras Temáticas, neste grupo estão incluídos estudos que abordam as seguintes temáticas: a relação entre educação, comunicação e saúde; a incorporação das novas tecnologias no cotidiano administrativo das escolas; panoramas históricos de aparatos audiovisuais e suas implicações nas sociedades; propostas de se trabalhar com jogos eletrônicos e histórias em quadrinhos dentro da escola; a utilização de recursos audiovisuais como registro de pesquisa; as contribuições dos grupos de estudos e pesquisas que trabalham com a interface educação e comunicação e os avanços no conhecimento que os trabalhos produzidos por estes grupos proporcionaram.

Estes grupos tem, simplesmente, a função de sistematizar a construção dos conhecimentos produzidos na interface entre educação e audiovisual. Obviamente que estes grupos não são estanques, uma vez que os estudos se relacionam com várias temáticas, todavia podemos encontrar pontos em comum que permitem estas classificações.

Vamos nos aprofundar mais no grupo temático Criações em Imagens e Sons como Processo Educativo, pois é este o nosso foco neste momento.

Embora a educação, neste artigo, seja descrita como um processo contínuo que se dá nas práticas sociais, é importante fazermos um parêntesis para apontar como se dá a relação entre a educação praticada na escola e o audiovisual.

Quando pensamos na relação da escola com o audiovisual, logo pensamos em mecanismos de recepção audiovisual: TV, filme, DVD… Há uma regra velada que limita o audiovisual a coadjuvante do processo de ensino. Tanto o corpo docente, quanto o corpo discente se colocam e são colocados como espectadores, na maioria das vezes, passivos. Ou seja, o audiovisual na escola se resume a um material de apoio ilustrativo para o conteúdo que já foi ensinado. Há, é claro, exceções, sobretudo quando o conteúdo audiovisual é quem orienta os planos de ensino, como acontece com alguns programas da TV Escola, por exemplo. Porém, os envolvidos no processo educacional ainda se colocam e são colocados como espectadores. É urgente pensarmos a relação entre o audiovisual e a educação prática na escola para além da formação de espectadores. Urge que trabalhemos com processos de criação e realização audiovisual como processo de uma educação mais sintonizada com as possibilidades advindas das novas tecnologias.

O audiovisual permite a criação de conteúdos pelos próprios estudantes, professores e demais funcionários. Imagine um vídeo que fale sobre o ciclo da água realizado pelos próprios estudantes? Imagine um vídeo que fale sobre a história do bairro em que está inserida a escola? As possibilidades são muitas… Não se trata de descartar os conteúdos audiovisuais produzidos por grandes produtoras e redes de televisões, mas sim de construirmos um diálogo entre estes conteúdos com os conteúdos gerados em âmbito local por meio da criatividade dos que fazem parte da escola. Este é um exercício que fortalece as comunidades escolares, uma vez que ela passa a ser produtora, realizadora, criadora de conteúdos. Dessa forma, é extremamente necessário que as instituições formadoras de formadores se dediquem para a implantação e consolidação de um programa de educação audiovisual que capacite os professores a utilizarem as novas tecnologias de criação audiovisual como processo pedagógico.

Fechando este longo e importante parêntesis é interessante apontar o papel formador que a escola tem em nossas vidas, sem, contudo, fecharmos os olhos para o papel (de)formador das mídias que, assim como a escola, faz parte do cotidiano das pessoas.

Coletivos de Vídeos Populares

Nos últimos anos, uma das manifestações mais interessantes em relação ao audiovisual é a constante formação de coletivos de vídeos populares.

O que são esses coletivos? Geralmente são grupos populares de pessoas que se unem em torno da realização audiovisual e utilizam este meio para expressarem os anseios das comunidades em que estes grupos estão inseridos.

Nestas realizações, o audiovisual é articulado com um processo de conscientização. Por isso que além de ser uma ferramenta de luta, pois através das imagens e dos sons é possível ampliar as atuações e amplificar as vozes, o audiovisual também se configura como um processo de construção de autonomia em relação a comunicação, possibilitando a troca de visões de mundo e a integração do indivíduo na comunidade em que vive.

Dessa forma é possível que grupos marginalizados pela grande mídia conquistem/construam redes de parcerias que permitem com que tais grupos, em contato com o audiovisual, se afirmem como seres humanos e que promovam seus valores culturais, atuando como comunicadores de uma grande parte da sociedade que sempre foi silenciada pela mídia hegemônica.

A formação dos Coletivos de Vídeos Populares se intensifica cada vez mais por conta das facilidades de acesso aos meios de produção e por iniciativas de cursos de realização audiovisual engajados em proporcionar que um número maior de pessoas possa ter o conhecimento para se comunicarem através do audiovisual.

Nestes espaços, o audiovisual é articulado dentro de um processo de educação popular que concebe a formação humana de forma integrada: saber ler e escrever está intimamente ligado com o processo de conscientização, com a formação política.

É muito comum a gente ouvir que o audiovisual é uma ferramenta para a educação. Mas será que é só isso mesmo? Pode-se dizer que o audiovisual é mais que uma ferramenta, é um processo.

A utilização do audiovisual na educação pode sim ser restringida a uma ferramenta, caso o audiovisual esteja sendo utilizado em uma proposta de educação retrógrada, em que o saber está apenas com o professor, a quem os alunos devem ouvir e decorar, como acontece em uma educação “bancária” conduzida de forma antidialógica. Pensar o audiovisual como um processo de educação significa aprender e ensinar através da utilização da linguagem audiovisual aplicada a criação e realização de conteúdos em imagens e sons. O audiovisual como um processo de educação coloca educadores e educando em uma atividade coletiva de criação. Nesta atividade, os saberes são compartilhados de forma coletiva.

Aí está um desafio para os cursos que formam realizadores audiovisuais: a formação de profissionais que estejam aptos a trabalharem com grupos populares e movimentos sociais em uma perspectiva de transformação por meio de uma educação audiovisual que valorize a criatividade humana e respeite os saberes dos sujeitos engajados nesta proposta.

Bibliografia

FIORI, Ernani Maria. Conscientização e Educação. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. 11(1): 3-10. Jan. jun. (1986).

FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Moraes, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

RIBEIRO JUNIOR, Djalma. Criação audiovisual na convivência dialógica em um grupo de dança de rua como processo de educação humanizadora. São Carlos: Dissertação (mestrado) UFSCar, 2009.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. et al. Práticas sociais, o que são? (Versão preliminar de artigo). São Carlos. UFSCar/DEME, 2005.

Djalma Ribeiro Junior é graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e atualmente mestre em Educação pela mesma Universidade.

1 Estas linhas de pesquisa são apontadas na dissertação de mestrado “Criação audiovisual na convivência dialógica em um grupo de dança de rua como processo de educação humanizadora” e pode ser acessada em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp096350.pdf

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