Diferentes proposições no atual cinema chileno

Em 1973, à beira do golpe militar que derrubou Salvador Allende, dois garotos de diferentes classes sociais compartilham a intensidade pré-adolescente mesclada às agitações políticas que tomam conta da capital Santiago. Esta é a base de Machuca, marco da reinserção do cinema chileno no cenário internacional. Em 2004, sua estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes se tornou objeto de orgulho para uma mídia e um público que, depois das marcas deixadas por anos de estagnação durante o governo Pinochet (1973-89), finalmente vislumbravam o fortalecimento de uma vivência cinematográfica própria.

O contexto político em Machuca é emblemático da memória coletiva que assola o país. Um exemplo atual é Dawson Isla 10, dirigido pelo veterano Miguel Littin (El Chacal de Nahueltoro, 1969). Retrato das memórias de exílio do então ministro da Unidade Popular Sergio Bitar, ganhou pré-estreia solene com a presença da presidente Michelle Bachelet e é o representante chileno na corrida pelo Oscar de 2010.

Apesar do inegável potencial de repercussão que a temática da ditadura é capaz de gerar, podemos destacar dois lançamentos de 2009 que apostam em uma nova mirada sobre a contemporaneidade. Os dois diretores estão em seu segundo longa-metragem e já tinham alcançado algum nível de destaque em seu trabalho de estreia.

Não se trata de um movimento geracional organizado, mas pode ser visto como obras dos que cresceram no Chile da Transição. São órfãos de utopias que, sem um ideal coletivo, pressentem a situação atual como uma gigante oportunidade para novas proposições de vida, sociedade e amor. Ambos puderam ser vistos na última edição do Festival do Rio.

La Nana – O fenômeno portas adentro

Muita paisagem, minimalismo e contemplação são características que comumente se aplicam ao cinema latino americano que agrada o gosto internacional. A peruana La Teta Asustada, vencedora do último Urso de Ouro de Berlim, pode ser um exemplo perfeito deste caso. Ao contrário, em declarada posição de combate a esta tendência, está Sebástian Silva, diretor do filme chileno de maior visibilidade do ano, La Nana.

Prezando a evolução narrativa e o entretenimento, La Nana é retrato de um fenômeno facilmente reconhecível dentro de nosso continente: a convivência de uma empregada doméstica e seus patrões no interior da mesma casa. No caso de Raquel (Catalina Saavedra), a situação se perdura por vinte anos e ainda não resultou em uma assimilação completa. O constrangimento de ser obrigada a participar da sua própria festa de aniversário, ou seja, sair da mesa da cozinha e compartilhar a sala de jantar por um dia ao ano, beira o insuportável.

Porém, suas manias e comportamento obsessivo dão complexidade ao caso, impossibilitando uma visão mais simplista de defini-lo apenas como uma questão de luta de classes. É extremamente possessiva em relação à família, tornando infernal a vida das empregadas contratadas para dividir as tarefas de casa. Quando suas reações atingem um nível demasiado assustador, o alívio vem através da chegada da ajudante Lucy (Mariana Loyola), a única capaz de amolecer o casco de Raquel.

A passagem é dada por uma atuação delicada, que contrasta a dureza de seu olhar assustado e cabelo desgrenhado. O trabalho de Catalina Saavedra, elogiado em todas as exibições, recebeu o prêmio de melhor atuação feminina no Festival de Sundance. De fato, muito da sutileza do filme se baseia em sua sensibilidade.

A partir da chegada de Lucy, a alegre garota que chega do campo, caminhamos em direção a um admonitório e conciliador desenlace. Este é um interessante ponto de comparação entre o recebimento da crítica chilena e internacional. A primeira foi quase unânime em denunciar o desvio do enredo para não se aprofundar na ferida patrão-empregada, atitude considerada de um “assistencialismo simbólico”.

Enquanto isso, a crítica internacional enxergou o mesmo desvio como um mérito. New York Times escreveu: “o diretor está em busca de algo mais interessante que sacrificar a burguesia. O fim de La Nana é conduzido de maneira tão inteligente e é tão generosa e honestamente concebido que vale a pena a espera”.

Sem dúvida, o desvio não foi inconsciente. Longe de ser covarde, Sebástian Silva apresenta claras proposições sobre o que quer para seu cinema e sobre a sociedade. Ressentimento, culpa coletiva e peso histórico se relacionam muito mais à estética preto-e-branco das fotocópias da ditadura. As cores que dá ao seu filme podem aparentar neutralidade, mas um olhar atento detecta a irrupção de uma nova sensibilidade. Ao fim, correr pelo bairro acompanhado de um tocador MP3 pode sim ser um significativo modo de sentir a contemporaneidade.

Navidad – A nova adolescência chilena

Ter uma experiência transformadora aos dezessete anos é uma das possibilidades mais prazerosas que a vida pode proporcionar. É como se despertar depois de uma madrugada muito intensa e necessitar de mais alguns minutos sem se mover, apenas para desfrutar o frescor dos últimos acontecimentos. Aqui já se sabe que o vivido ocupará para sempre um espaço privilegiado na memória.

A sensibilidade de Navidad está no respeito dado a toda a complexidade que uma vivência adolescente pode conter. Aos pés da Cordilheira dos Andes, três jovens passam uma excêntrica noite de 24 de dezembro, sem fartura de comida, nem presentes familiares.

Todos estão com a vulnerabilidade à flor da pele, prontos para o arrebato de uma noite de iniciação. Assim como o cinema, juntos criam uma experiência em outra esfera, um mundo particular com maneiras próprias, onde cada um pode ser o que imaginar.

A belíssima atriz Manuela Martelli interpreta outra vez um personagem chave do cinema chileno. Agora com vinte e cinco anos, se tornou mundialmente conhecida em Machuca, quando ainda era uma garota com leite condensado em seus lábios. Sua personagem Aurora é quem dá o pontapé inicial da estória ao empreender uma busca pelos discos antigos de seu pai numa casa abandonada na região de Los Cañas, próxima a Santiago. Vai acompanhada pelo seu “quase namorado” Alejandro e ali ajudam a frágil Alicia a superar sua desilusão natalina.

Os discos são uma homenagem à arte da década de sessenta. Los Blob e Los Jockers, com a divertida “Debes ser libre”, são a trilha sonora para o movimento dos corpos. Todas as influências ressoam entre si de maneira poética, muito mais que discursiva. Há uma relação viva que libera novos efeitos de sentido, resultados que não são programas políticos.

O diretor Sebastián Lelio é dos que se posicionam como individualistas. Assim como em seu trabalho anterior, La Sagrada Familia, os personagens criam a oportunidade de compartir suas crises pessoais e a partir do desejo de romper com algo de si mesmos culminam em um radical encontro físico. Uma cena erótica de seis minutos, onde a energia sexual é convertida em energia de consciência, mostra com maestria a representatividade revolucionária do ato.

O diálogo telepático construído entre os atores transluz em seus corpos todo o misto de hesitações e desejos. Um olhar, uma inclinação de ombro ou a franja que insiste em cobrir o rosto são detalhes captados por uma câmera movediça que se deleita com a ambiguidade das cenas. O dom de intensificar cada oportunidade surgida e de transformar uma grama qualquer no lugar mais belo do mundo é um privilégio que todo jovem deveria reconhecer em si mesmo.

Ao fim, podemos dizer que estão transformados. A discussão inicial sobre uma possível bissexualidade de Aurora agora já parece um pouco tonta e sem sentido. Os parâmetros são outros. O descolamento sobre a realidade exterior dá força para enfrentá-la. Nesse refúgio provisório, os personagens conquistam mais algumas ferramentas para tomarem conta de suas próprias vidas.

Generosos com a experiência dos personagens, toda a equipe se esforça a filmar as últimas sequências da maneira mais bela possível. Há um misto de nostalgia pelo que se viveu e valentia para seguir em frente. Se o cinema filma o movimento, as estradas compõem o melhor cenário para as imagens finais. Desfrutando de sua languidez e altivez, Aurora, Alejandro e Alicia seguem, transformados, cada um o seu caminho.

Regiane Ishii é graduanda em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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