Mídia Revolucionária: a mídia alternativa no movimento zapatista

Em 1994, o surgimento de um movimento guerrilheiro indígena no sul do México, provocou um verdadeiro reboliço na mídia ao redor do mundo. No momento em que muito se falava do “milagre econômico mexicano”, das bondades das políticas neoliberais e do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, milhares de indígenas tomavam sete cidades do estado de Chiapas na madrugada do 1 de janeiro e declaravam a guerra ao governo. As propostas inovadoras do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN)1 e a forma surpreendentemente bem-humorada e articulada de comunicá-las suscitaram não apenas o interesse da mídia comercial, mas o surgimento de um movimento de mídia alternativa – nacional e internacional – com efeitos duradouros na forma de se pensar os meios de comunicação global. Ao mesmo tempo, as comunidades zapatistas rebeldes na selva e nas montanhas do sudeste mexicano, que desde então vêm criando sistemas cada vez mais complexos de autonomia como principal eixo da sua proposta revolucionária, têm desenvolvido audaciosos projetos de comunicação autônoma que incluem rádio, produção áudio-visual, comunicações por internet e outros meios. Neste ensaio falamos desses projetos e das iniciativas de mídia alternativa, no México e no mundo, inspiradas pelo movimento zapatista.

O zapatismo: um movimento “pós-moderno”?

Era a primeira metade da década de 1990, a poucos anos do fim da Guerra Fria, divisor de águas na história e o início do que muitos chamavam, com exaltado otimismo, “a nova ordem mundial” – sob a liderança ideológica de George H. W. Bush e Mikhail Gorbachev -, que supostamente acabaria com os conflitos norte-sul graças à cooperação harmoniosa num sistema capitalista globalizado. Entretanto, na América Latina (e no México em particular) as contradições desse capitalismo globalizado estavam levando ao desespero a milhões de indígenas, camponeses e pobres urbanos, graças à invasão de empresas multinacionais que destruíam as pequenas empresas, à privatização de terras comunais e à entrada de produtos agrícolas transgênicos e industriais que arrasavam a agricultura artesanal.

Mas, como resistir a esses embates, quando as velhas ideologias de esquerda, que impulsionaram as lutas de resistência durante todo o século XX na América Latina, estavam desacreditadas e o campo socialista, desarticulado? Entre o otimismo festivo da direita e a perplexidade da esquerda, parecia não haver mais alternativas.

Isso explica a surpresa – e o entusiasmo – causada pela aparição do Exército Zapatista no 1o de janeiro de 1994, justo o dia em que entraria em vigor o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, ponto culminante do suposto “milagre econômico mexicano” neoliberal. Que desvario teria levado a esse bando de índios mascarados a se levantar em armas quando já as guerrilhas estavam tão fora de moda? Quem eram eles? O que queriam? Seriam apenas remanescentes anacrônicos de um tempo extinto ou enunciadores de novas propostas num momento de vazio ideológico?

A mídia nacional e internacional correu a Chiapas e em breve os zapatistas estavam em TVs e jornais pelo mundo afora. Os comunicados escritos pelo Subcomandante Insurgente Marcos (o carismático chefe militar e porta-voz do movimento, com seu olhar penetrante sob a máscara preta e o eterno cachimbo) faziam uma crítica aguda às utopias neoliberais com uma linguagem irônica e bem-humorada, irreverente, cheia de sonoridades do mundo indígena, totalmente distinta dos tradicionais discursos marxistas dos movimentos revolucionários conhecidos até então. Neles se articulava uma proposta igualmente inédita: a criação de um movimento de baixo para cima, sem vanguardas, que não aspirava a tomar o poder, mas à construção de um contra-poder popular, de uma realidade alternativa fundamentada na prática cotidiana da democracia participativa baseada nas autonomias locais e a vinculação solidária com movimentos sociais autônomos ao redor do mundo.

Ao mesmo tempo, surgiu outro fenômeno inesperado. Movimentos sociais e indivíduos de todo o mundo, entusiasmados com as possibilidades da proposta zapatista, começaram a usar a internet (então ainda incipiente) como forma de comunicação e de articulação da resistência global. Alguns intelectuais qualificaram então os zapatistas do “primeiro movimento guerrilheiro pós-moderno” pelo uso das novas mídias como forma de luta, sem se dar conta que não eram os próprios zapatistas que (naquele momento) usavam essas tecnologias, mas a sociedade civil nacional e internacional, que, inspirada por eles, começavam a criar uma rede de mídia alternativa descentralizada. Dalí surgiram experiências duradouras, como a rede de Indymidia, um conceito de mídia popular com importante repercussão em grande parte do mundo.

A comunicação zapatista

Com o levantamento armado em 1994, fazendeiros e latifundiários, que até então exploraram os índios em condições de semi-escravidão, fugiram de Chiapas, abandonando suas terras, que os rebeldes zapatistas “recuperaram” (sendo indígenas maias, as terras lhes pertenciam historicamente, tendo sido usurpadas pelos fazendeiros mestiços). Nesse vasto território eles vêm construindo, nos últimos 16 anos, um complexo sistema de autonomia que inclui um governo próprio (através de assembléias comunitárias, conselhos municipais e “Juntas de Buen Gobierno” regionais), sistemas de educação e de saúde autônomos, mecanismos de produção coletiva e comércio solidário. E, sem dúvida, diversos mecanismos de comunicação autônoma.

“A comunicação [autônoma] é uma demanda e um direito dos povos zapatistas, porque nos demos conta de que todos os meios de comunicação controlados pelo mau governo e pelas grandes empresas, como a televisão, a rádio, os jornais, as revistas e demais, não estão ao serviço dos povos”,2 disse um representante da Junta de Buen Gobierno de Oventik durante o Primeiro Encontro entre os Povos Zapatistas e os Povos do Mundo, em janeiro de 2007, realizado em território zapatista. A comunicação autônoma não é apenas uma estratégia, mas uma reivindicação como direito fundamental.

Em fevereiro de 2002 nasceu Radio Insurgente, la voz de los sin voz, projeto radiofônico do EZLN.3 “Voz oficial do Exército Zapatista de Liberação Nacional”, Radio Insurgente transmite em três regiões zapatistas (Los Altos – as montanhas ao norte de San Cristóbal de las Casas -, na selva tzeltal e na selva da fronteira com a Guatemala), todas em FM, e mais uma em onda curta. Os locutores e locutoras são todos insurgentes, e a programação inclui temas de saúde, educação, direitos, gênero, campanhas contra o alcoolismo, contos para crianças, música, política, comunicados do EZLN, áudio-teatro com temas de resistência e autonomia, etc. Dependendo da região, a rádio transmite em diversas línguas indígenas maias (tzeltal, tzotzil, tojolobal, chol, mam) além de espanhol. A rádio é ouvida com avidez não só pelos próprios zapatistas, mas também por outros grupos indígenas e até por soldados do exército mexicano (parte da programação é frequentes mensagens aos solados e aos paramilitares, com a intenção de sensibilizá-los a não lutar contra os seus irmãos indígenas). Além de Radio Insurgente, um bom número de rádios comunitárias tem surgido em território zapatista nos últimos anos, com propostas similares, mas por iniciativa do zapatismo civil (independente do EZLN).

Em 1998, através de uma cooperação entre os zapatistas e uma parceria de organizações não governamentais do México e dos Estados Unidos (Chiapas Media Project e Promedios de Comunicación Comunitaria), iniciou-se um projeto de treinamento de “promotores de comunicação” em gravação e edição de vídeo. Esse processo levou, nestes 11 anos, ao desenvolvimento de uma vasta produção de documentários autônomos. Nesses vídeos, o domínio cada vez maior da tecnologia e da estética audiovisual combina-se com a visão particular dos povos indígenas zapatistas na representação da sua própria realidade: a luta pela terra, o papel da mulher, a construção da autonomia. Trata-se de materiais tanto internos (muitos deles em línguas maias) quanto os destinados a um público externo, com distribuição internacional através do Chapas Media Project.

Outro mecanismo de comunicação, mais imediato, é a pintura mural que cobre as paredes das construções comunitárias em todo povoado zapatista. Estas obras, de um surpreendente colorido, contam a história da luta zapatista e representam o ideal ao qual aspiram o EZLN e as comunidades. Esta arte mural tem raízes profundas: ela inspira-se na tradição da pintura mural modernista posterior à Revolução Mexicana de 1910, que preencheu edifícios públicos em todo o país como meio de articular os valores (e as críticas) revolucionários da época. Esse movimento teve tal impacto que os artistas chicanos nos Estados Unidos retomaram a tradição e criaram uma arte própria de resistência ao racismo e à exclusão. Mas a arte mural mexicana tem raízes ainda mais profundas. Por um lado, os muralistas (Diego Rivera, Alfaro Siqueiros, José Clemente Orozco e outros) eram parte do movimento modernista e beberam das fontes da arte européia. Ao mesmo tempo, os questionamentos identitários provocados pela revolução os levaram a estudar a arte mural dos maias e dos astecas, resultando numa criação híbrida e única. A arte mural zapatista contemporânea inspira-se em todas essas tradições para expressar a sua própria realidade. Alguns anos atrás, com o apoio de grupos solidários espanhóis, produziu-se um belíssimo livro quatrilíngüe com imagens dos principais murais zapatistas, que se utiliza como ferramenta pedagógica nas escolas autônomas.

Finalmente, para além da rádio, do vídeo, da internet e da arte mural, um elemento fundamental da comunicação zapatista são os encontros com a sociedade civil nacional e internacional, que ocorrem periodicamente em território rebelde, e que se tornam espaços de intercâmbio de experiências e de luta. Neles, a cosmovisão indígena encontra-se com as realidades de outras raças e culturas, numa retroalimentação em muitos sentidos responsável pela continuada vigência das propostas zapatistas.4

A “outra comunicação” –  redes alternativas

Com o levantamento zapatista, surgiram inúmeras iniciativas de mídia alternativa no México e no mundo, utilizando sobretudo a internet, que justamente nasceu no início dos 90. A mais notável dessas iniciativas é a rede de mídia independente Indymídia, que democratiza o acesso à informação e a produção jornalística independente e que hoje tem projetos em todos os continentes do mundo.5

Além da internet, multiplicam-se outras mídias, em particular as rádios comunitárias. No México, elas têm um papel muito importante, sobretudo nas comunidades indígenas e camponesas, mas também nos centros urbanos. Todas estas iniciativas surgem independentemente do EZLN, mas articulam-se entre si conforme a proposta zapatista de vinculação em rede, de forma não hierárquica, de autonomias locais.

Estes meios de comunicação denunciam abusos, violações e repressão por parte dos governos, das forças policiais e das grandes empresas, que não recebem cobertura na mídia comercial. Mas também funcionam como articuladores da resistência e da luta contra os atropelos do capitalismo, compartilhando informações sobre atividades em diversas partes do país e do mundo, análises políticas e novas formas de organização.

Um claro exemplo disso foi a rebelião popular no estado de Oaxaca em 2006. A violenta repressão, por parte do governo estadual, de uma manifestação de professores no centro da capital, em maio desse ano, levou a um levantamento popular de mais de 300 organizações sociais e milhares de indivíduos, que ocuparam a cidade durante mais de seis meses. Durante a ocupação, a luta mais cruenta foi pelo controle dos mecanismos de articulação das reivindicações do movimento.6 Rádios independentes, por um lado, funcionaram como meio de conscientização e articulação da resistência, enquanto a mídia comercial lançava uma campanha de desprestigio do movimento. Grupos paramilitares atacaram as instalações de Radio Plantón, uma das principais rádios do movimento, enquanto ativistas ocupavam as rádios comerciais e inclusive uma estação de TV.

Em novembro desse ano, milhares de tropas da polícia federal invadiram a cidade e intentaram tomar Radio Universidad, que estava em mãos do movimento. Rádios independentes na Cidade do México retransmitiam via internet as transmissões da rádio universitária, que por sua vez eram retomadas por outras rádios em todo o mundo, ajudando a mobilizar protestos em consulados e embaixadas em diversos países. Ao mesmo tempo, Radio Universidad comandava a resistência na própria cidade de Oaxaca, instruindo as pessoas a se movimentar nas diferentes barricadas e informando da posição das tropas policiais. Enquanto, na Califórnia, um grupo de ativistas organizávamos uma manifestação na frente do consulado mexicano em San Francisco, recebemos uma ligação de Roma, onde ativistas zapatistas tinham colocado um caminhão com caixas de som na frente da embaixada mexicana, transmitindo Radio Universidad ao vivo, que nesse momento realizava uma entrevista telefônica com ativistas alemães na frente do consulado em Berlim. Essa impressionante mobilização da mídia alternativa conseguiu, depois de uma longa luta, frear o ataque policial.

A comunicação independente não  é, evidentemente, âmbito exclusivo do movimento zapatista. Ela surge da necessidade de informações e pensamento crítico, no contexto do controle cada vez maior da mídia comercial pelos interesses do capital. Romper o cerco informativo da grande mídia, democratizar a informação, criar espaços para a expressão de vozes silenciadas: esses são alguns dos objetivos da crescente rede de mídia alternativa.

Alguns sites de mídia independente

Alejandro Reyes-Arias é jornalista e tradutor.

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