O interpretante imediato e dinâmico no filme Rango

Juliana de Souza*

Resumo

Este artigo tem como objetivo demonstrar as divergências apresentadas entre os interpretantes imediato e dinâmico no filme Rango (Gore Verbinski, 2011). Tais interpretantes são definidos com base na semiótica peirceana, através dos estudos de Lucia Santaella. Deste modo, o interpretante imediato é aqui entendido como as possibilidades interpretativas que um determinado signo pode despertar. O dinâmico, por sua vez, é compreendido como o significado concreto que, de fato, o signo produz. Assim, diante da produção mencionada, a primeira impressão é de que esta seria mais um filme de entretenimento, cujo público-alvo seria o infantil. Todavia, após um trabalho de análise, pôde-se perceber que as características iniciais e finais de Rango são bastante divergentes, visto que, com o desenvolver da trama, fica claro que a obra é voltada para espectadores mais maduros, considerando-se que a total compreensão dos conteúdos abordados só pode ser atingida por jovens e adultos.

Introdução

Neste artigo proponho analisar, com base na semiótica peirceana, os interpretantes imediato e dinâmico no filme Rango (2011). Conforme explica Lucia Santaella (2005, p. (Adipex) 59), “(…) a semiótica é a teoria de todos os tipos de signos, códigos, sinais e linguagens. Portanto, ela nos permite compreender palavras, imagens, sons em todas as suas dimensões e tipos de manifestações”. Assim, em função dessa amplitude da abordagem semiótica, este estudo será delimitado, tendo como foco central as divergências apresentadas entre os dois interpretantes mencionados.

O interesse pela análise surgiu de uma experiência pessoal relacionada ao filme em questão. Ao me deparar com o DVD em uma loja de departamentos, com base na sua capa, na sinopse da história¹ e no início do filme, minha primeira impressão (interpretante imediato), foi de que tal produção era uma divertida animação, o típico filme de entretenimento. Todavia, com o desenrolar da trama e um olhar mais acurado (interpretante dinâmico), pude perceber o quão equivocada foi minha interpretação inicial.

O interpretante imediato é o potencial interpretativo de um signo, uma possibilidade em nível abstrato, tudo aquilo que um signo pode vir a suscitar. Pois, como seleciona Barthes (1984, p. 62), “(…) o objeto fala, induz, vagamente, a pensar”. Ainda que utilizado para se referir à fotografia, acredita-se que tal ensinamento pode ser também aplicado aos filmes. Deste modo, ao que se refere ao interpretante imediato, serão levantadas as hipóteses em relação à obra, seu potencial sugestivo, de modo a examinar os aspectos icônico, indicial e simbólico.

Ao que concerne ao interpretante dinâmico, este é definido como o efeito que o signo de fato produz no interpretante. É fruto de um olhar observacional/analítico sobre o fenômeno. No interpretante dinâmico os níveis interpretativos dividem-se em três subníveis: o emocional, o energético e o lógico, que serão melhor abordados na parte de análise. É importante lembrar que neste segundo nível de interpretante, o efeito produzido pelo signo é um efeito singular e varia de acordo com seu intérprete. Assim, as considerações que serão apontadas neste trabalho não têm a intenção de mostrarem-se como definitivas, tendo em vista que a análise será baseada em minha interpretação particular, resultado de minhas vivências.

Portanto, cumpre destacar que, em função dessa singularidade interpretativa, reconhece-se que dedicação e cautela são elementos necessários para o desenvolvimento de uma análise coerente, de modo a evitar a falibilidade do processo. Embora haja o reconhecimento de uma possível falha – o que é comum aos exercícios de análise – apoio-me nos dizeres de Santaella (2005, p. 39), ao afirmar que “é a consciência mesma da falibilidade que deve nos munir de energia e empenho para que a análise seja tão cuidadosa e escrupulosa quanto possível”. Logo, acredito que diante de um objeto repleto de características conflitantes e com a devida compreensão dos conceitos teóricos, um bom trabalho poderá ser apresentado.

O Interpretante Imediato em Rango

Santaella (2005, p. 38) define o interpretante imediato como aquele “(…) que diz respeito ao potencial que o signo tem para produzir certos efeitos e não outros, no instante do ato interpretativo a ser efetuado como intérprete. Sendo interno ao signo, esse interpretante fica ao nível das possibilidades, apenas latente, à espera de uma mente interpretadora que venha efetivar.”

Assim, a partir das cenas iniciais do filme Rango, será exposto o potencial interpretativo sugerido pelos signos.

Os signos nos propiciam um leque de interpretações possíveis, cujos efeitos, segundo Santaella (2005, p. 69), podem “ser de várias ordens, desde o nível da primeira impressão até o nível de um julgamento de valor que o receptor pode e, muitas vezes, é levado a efetuar”. Desta forma, em relação ao interpretante imediato, os efeitos produzidos no receptor são esse da primeira impressão, da intuição, das previsões, realizadas com base nos aspectos icônico, indicial e simbólico. Ou seja, a impressão pode ser compreendida como Erving Goffman a define em seu livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, “uma fonte de informação a respeito de fatos não-aparentes” (GOFFMAN, 1985, p. 228).

No que diz respeito ao ícone, são os aspectos qualitativos do objeto que vêm à tona. São as características visíveis que fazem surgir as primeiras ideias que, embora não sejam precisas nem controláveis, normalmente incitam comparações de semelhança. Em seus estudos, a autora explica que:

Sob o ponto de vista qualitativo-icônico, são analisados os aspectos qualitativos de um produto, peça ou imagem, ou melhor, a qualidade da matéria de que é feito, suas cores, linhas, volumes, dimensão, textura, luminosidade, composição, forma, design, etc. esses aspectos são responsáveis pela primeira impressão que um produto provoca no receptor. A impressão que brota da primeira olhada. Essas qualidades visíveis (…) também sugerem qualidades abstratas, tais como leveza, sofisticação, fragilidade, pureza, severidade, elegância, delicadeza, força, monotonia etc. (SANTAELLA, 2005, p. 70)

Com base nos conceitos acima expostos, nota-se, já no início do filme, que a trilha sonora é introduzida por uma música que remete à aventura, a “desbravar novas terras”, o que produz a sensação de que a história será repleta de cenas divertidas e emocionantes. Seu personagem principal, cujo nome é o próprio título da obra – Rango – é um camaleão muito bem apessoado, com feições engraçadas, levemente atrapalhado, de modo a sugerir um filme divertido. Além disso, Rango está vestindo uma camisa florida, o que lhe dá um visual “praieiro”, arrojado, reforçando a ideia de diversão:

Figura 1

No princípio do filme, assim como na capa do DVD, é apresentado um ambiente colorido, onde prevalecem as cores vermelha, amarelo, azul e verde. Cores são elementos de estímulos que provocam impressões. A exemplo das cores mencionadas, o vermelho significa força, dinamismo, cor de vida, de agitação. Amarelo é uma cor luminosa, vibrante, viva. O azul claro – que é o utilizado nesta parte do filme – é uma cor calma, que transmite tranquilidade. Por sua vez, o verde é a cor da natureza, reporta-se à harmonia, ao equilíbrio. Embora o azul e o verde – cores frias – possuam significados mais semelhantes entre si e mais distantes em relação ao vermelho e amarelo – cores quentes – todas elas, no geral, provocam sensações positivas:

Figura 2
Figura 3 – DVD do filme Rango

Referente ao índice, analisam-se os traços da identidade da produção/objeto, sua relação com o consumidor, suas funções. De acordo com Lawrence Chung Koo (2006, p. 66), este aspecto “refere-se à dimensão contextual na qual o signo está inserido. (…) Os índices representam um objeto semiótico por meio de uma relação causal (causa-efeito), por exemplo, chão molhado, índice de chuva”.

Novamente retorno ao começo do filme para analisar esta contextualização, essa relação filme/espectador. Conforme pode ser observado no decorrer do filme, na maior parte das vezes, as músicas apresentadas são interpretadas por uma banda formada por corujas. Logo na abertura, uma das corujas anuncia:

CORUJA

– Estamos aqui hoje, para mortalizarmos em música, a vida e a morte prematura de uma grande lenda. Acomodem-se aí, relaxem e curtam a pipoca e as guloseimas de baixa caloria enquanto contamos a estranha e espantosa história de um herói que ainda tem que entrar na própria história (RANGO…, 2011, cap. 1)

Neste trecho há vários elementos que transmitem a ideia de um filme alegre, leve, sem censura. O primeiro indício é o fato de um dos personagens pedir aos espectadores para relaxarem. Quase ninguém assiste a um filme tenso, trágico, pesado ou triste de maneira relaxada, logo, supõe-se que a história será descontraída. Do mesmo modo, se procede com a indicação para comer pipoca durante a exibição. Tal sugestão não faria sentido diante de um filme violento, por exemplo, com sangue e ferimentos aparecendo frequentemente. Cabe destacar, ainda, a utilização da palavra “herói”, que normalmente refere-se às ficções, com conflitos não muito intensos ou impossíveis de se realizar na vida real, fator que ameniza a situação dramática. Tudo isso ajuda na criação desta impressão de divertimento causada no início da produção.

Outro fator que merece atenção é a forma como a narrativa inicial é construída. Rango adora criar peças teatrais, é seu maior passa tempo no aquário solitário em que vive (digo solitário porque ele é o único ser vivo, considerando-se que seus companheiros são um peixe de brinquedo, uma boneca sem cabeça e um inseto morto). Assim, na medida em que ele apresenta os personagens que pode encenar, imediatamente aparece sua imagem desenvolvendo aquele papel. Esse formato ilustrativo normalmente é utilizado para o público infantil, de maneira a sugerir, novamente, um filme agradável, condizente com a faixa-etária dos espectadores para o qual aparenta destinar-se. Pode-se observar, nas figuras abaixo, Rango interpretando um “capitão do mar que retorna de uma longa viagem para reaver o braço mecânico dele” (figura 4), um “antropólogo trapaceiro enfrentando jiboias no Congo” (figura 5) e “o maior amante que o mundo já conheceu” (figura 6). Ele representa, inclusive, a garota que o conquistador pretende paquerar (figura 7):

Figuras 4 e 5
Figuras 6 e 7

Tudo isso se passa dentro do aquário onde Rango leva uma vida tranquila. Porém, durante uma viagem com sua família, seu aquário cai do carro em uma estrada em meio ao deserto. Para chegar à cidade mais próxima, denominada “Dirt”, em português, “Poeira”, o camaleão precisa fazer uma caminhada solitária pelo deserto. Diante desta situação, pode-se pressentir o desencadeamento de uma série de confusões protagonizadas por Rango. E, de fato, tais aventuras acontecem: o camaleão é atropelado por um carro (figura 8), fica pendurado no aro de uma bicicleta (figura 9), sente-se sufocado em meio à lama (figura 10), é perseguido por um gavião (figura 11), entre outros apuros. Essas ações também nos remetem a um filme de aventura infantil, clima que, supostamente, diante dos signos apresentados até o momento, seria mantido até o final da obra:

Figuras 8 e 9
Figuras 10 e 11

Esta atmosfera pueril pode ser examinada, ainda, na maneira desajeitada com que Rango aproxima-se de Beans² para cheirar seu cabelo (figura 12) e na comicidade / inocência das cenas em que ele imita os habitantes de “Dirt” – Beans, para tentar entendê-la em seus “piripaques”³ (figura 13) e outro morador local, com o intuito de não parecer um visitante (figura 14):


Figuras 12, 13 e 14

Por fim, sob o ponto de vista simbólico, a dimensão cultural, os significados associados, e o saber convencionado em relação ao objeto são analisados. Como esclarece Andacht (2005, p. 102), “o símbolo é uma lei ou conceito geral, através do qual compreendemos e ordenamos nosso entorno e conseguimos nos adaptar melhor a ele, compartilhando esse saber convencional”. Sobre este aspecto, Santaella (2005, p. 71), explica que “(…) analisa-se o poder representativo do produto. O que ele representa? Que valores lhe foram agregados culturalmente? Qual o status cultural da marca? Como esse status foi construído? Em que medida o produto está contribuindo ou não para a construção ou consolidação da marca?”

Desta forma, referente ao símbolo, cabe mencionar um ponto bastante visível: o fato desta produção tratar-se de uma animação. Logo, como na maioria dos filmes deste gênero, supõe-se que a obra seja engraçada, divertida, espirituosa, tendo as crianças como seu público alvo. Embora muitas transformações venham ocorrendo em relação às animações, o fato é que já convencionamos como infantil esta capacidade de dar vida a qualquer tipo de ser representado. Como explica Nogueira (2010, p. 59):

É esta ideia de atribuição de ânimo e vitalidade a entidades que não os possuem – e que, no fundo, está já implícita na própria designação animação – que leva muitas vezes a afastar o cinema de animação da noção comum de realidade. E daí talvez, também, que este tipo de cinema, pela liberdade criativa que faculta, faça frequentemente do sonho, da fantasia e das mais diversas abstrações e efabulações o seu motivo temático.

Em virtude disso, ainda que essa atitude seja um tanto generalizada, ao querer “que a escolha do filme como meio de expressão, como forma de dizer, limite por si só, de entrada, o campo do dizível e motive a adoção preferencial de determinados assuntos” (METZ, 1972, p. 225), o fato é que os filmes de animação, de maneira geral, são culturalmente conhecidos como filmes de entretenimento, com o objetivo de divertir a garotada com uma leve função educativa, através da famosa “moral da história”. Todavia, esse “ensinamento” é geralmente transmitido com sutileza, de modo que a diversão se sobressaia.

Assim, tendo como fundamento as cenas analisadas e os argumentos expostos, pode-se perceber que, ao menos no início, a história foi construída para identificar-se com o público infantil. O contexto desenvolvido apresenta uma relação direta com a fantasia, com o lúdico, dando a impressão de que o contentamento do espectador seria sua principal função.

O Interpretante Dinâmico em Rango

“Quando, na análise de uma semiose, chegamos na etapa do interpretante dinâmico, estaremos explicitando os níveis interpretativos que as diferentes facetas do signo efetivamente produzem em um intérprete, no caso, o próprio analista” (SANTAELLA, 2005, p. 40). Como já mencionado, esses níveis interpretativos também se dividem em três camadas: a emocional, a energética e a lógica. Assim, através da análise detalhada destas três camadas, serão apresentados – em oposição às primeiras impressões sugeridas pela obra – os efeitos que de fato o filme produz.

Para que o leitor possa ter uma ampla visão em relação à análise, é preciso, primeiro, fazer um breve resumo do que acontece a partir do momento em que Rango chega à Poeira até o final do filme. Chegando à cidade, o camaleão entra em um bar e, para se “enturmar” com os habitantes locais, ele inventa que matou os sete irmãos Jenkins com uma só bala. E, como o destino estava agindo a seu favor, ele ainda consegue matar com um único tiro – embora tenha sido por sorte – a grande águia que atormentava os moradores. Depois disso, o prefeito o chamou para conversar e o nomeou xerife da cidade. Aos poucos a narrativa nos mostra que a moeda local é a “água”. Os depósitos feitos no banco são de água, as negociações são feitas através de garrafas de água, tudo gira em torno do líquido, ou melhor, do pouco que sobrou na cidade. Um dia, o banco é assaltado e roubam o grande galão de água. Rango e alguns companheiros saem à procura dos ladrões e infelizmente não descobrem nada, e tão pouco trazem a água de volta. Ao perceberem que Rango mentiu sobre sua origem, o povo fica decepcionado e ele vai embora da cidade. Ao deixar Poeira, Rango percebe que lá é o seu lugar e que ele precisa ajudar aquelas pessoas. Assim, começa a lembrar de algumas coisas importantes sobre a água que o prefeito havia lhe dito. Através de suas lembranças e novas investigações, ele descobre que o prefeito estava desviando a água de Poeira para construir uma cidade futurística.

Voltando-se à análise, o efeito emocional pode ser definido como a qualidade de sentimento que o signo pode provocar em seu interpretante que, dependendo do objeto, pode estar mais ou menos evidente, visto que “interpretantes emocionais estão sempre presentes em quaisquer interpretações, mesmo quando não nos damos conta deles” (SANTAELLA, 2005, p. 25). Contudo, a autora nos alerta para o fato de que “não se deve entender “qualidade de sentimento” no sentido de emoções clichês (SANTELLA, 2005, p. 130).

O primeiro momento em que é muito difícil se manter indiferente, refere-se à cena em que o prefeito nomeia Rango como o novo xerife. Eles estão conversando quando o chefe da cidade lhe mostra a vista do pequeno vilarejo e pergunta:

PREFEITO

– Está vendo-os, Sr. Rango? Os meus amigos e vizinhos? A vida aqui é dura. Muito dura. Sabe como sobrevivem a cada dia? Eles acreditam. Acreditam que será melhor. Acreditam que a água virá. Contra todas as possibilidades e evidências, acreditam que o amanhã será melhor. As pessoas têm que acreditar em algo. Neste momento, elas acreditam em você (RANGO…, 2011., cap. 6)

Enquanto o prefeito fala, a câmera filma demoradamente os habitantes, todos caminhando cabisbaixos, com um olhar desanimado, a melancolia paira no ar. A cena é o próprio sinônimo de tristeza, é pouco provável não se comover com a situação:

Figura 15

É também muito comovente o ritual que acontece todas as quartas-feiras, ao meio dia. Este é o momento em que o prefeito libera a água aos moradores, é chamado de Dia da Redenção (figura 16). O grande cano filmado em contra-plongée (figura 17), demonstra a ânsia da população por um pouco de água. Porém, na quarta-feira em que Rango chegou à Poeira, ao invés de água, saiu barro do cano (figura 18). A aflição na expressão dos habitantes é desconcertante (figura 19).


Figuras 16, 17, 18 e 19

Cabe mencionar, ainda, a pequena Priscila, personagem que realmente acredita em Rango. Antes de partir em sua caça aos ladrões de água, Priscila lhe pergunta: “– Xerife, vai trazer a água, não vai?” (RANGO…, 2011, cap. 11). Ao que ele responde: “– Pode apostar, irmãzinha” (RANGO…, 2011, cap. 11). A esperança contida no olhar de Priscila é realmente emocionante:

Figura 20

Infelizmente, Rango e os demais “investigadores” retornam sem encontrar a água. A cidade fica sem expectativas, afinal, sem água não há vida. Em seguida, aparece um pai, penteando o cabelo de seu filho e alertando-o: “– Fique quieto! Tem que estar apresentável diante do criador” (RANGO…, 2011, cap. 15). Essa aceitação da morte como fato certo chega a ser perturbadora:

Figura 21

Outra cena que merece destaque é quando a farsa de Rango foi descoberta e ele deixou a cidade. Embora o camaleão tenha mentido sobre sua verdadeira identidade, ele era a única esperança de uma vida melhor em Poeira, ou melhor, a única esperança de sobrevivência, considerando que não havia mais água na cidade.

Figura 22

Para finalizar o efeito emocional, há duas imagens que provocam grande indignação ao público: são cenas da nova cidade construída pelo prefeito, totalmente o oposto de Poeira. Uma cidade, bonita, colorida, alegre, bem desenvolvida, e o principal, com água em abundância (figura 23). O primeiríssimo plano no sistema de irrigação enfatiza essa riqueza de água (figura 24):

Figuras 23 e 24

Passando à segunda camada, tem-se o efeito energético. É quando o intérprete realiza uma ação em função da mensagem recebida. Para Santaella (2005, p. 25), o efeito energético “corresponde a uma ação física ou mental, quer dizer, o interpretante exige um dispêndio de energia de alguma espécie”.

Para exemplificar este segundo efeito, o filme apresenta diversas cenas que nos fazem refletir sobre a importância da água e, consequentemente, de sua economia para a sobrevivência não só dos seres humanos, mas de todo o nosso planeta. Essa conscientização provocada pelo filme é a reação mental do efeito energético, sendo que nossas atitudes para preservar/poupar água provindas desta conscientização são as reações físicas deste efeito.

A primeira imagem que nos alerta para a essencialidade da água é a cena em que no cofre do banco encontra-se um enorme galão de água ao invés de dinheiro, joias e outros objetos que, até então, eram sinônimos de valor. Ainda mais assustador é perceber que o nível de água do galão está bastante baixo:

Figura 25

Outro momento em que é enfatizado o papel fundamental da água para existência da vida é quando o prefeito, com um conta gotas (figura 26), coloca uma gota de água em um aquário aparentemente vazio (figura 27). No instante em que a gota cai

na areia, imediatamente, surgem vários micro-organismos sedentos pelo líquido (figura 28). Durante essas ações, o prefeito explica lentamente a Rango: “– Água, Sr. Rango. Água. Sem ela, não há nada além de poeira. Mas com água, há vida” (RANGO…, 2011, cap. 6):


Figuras 26, 27 e 28

Cabe também destacar outras duas cenas importantes que demonstram o caos que a disputa por água pode causar. A primeira delas é a cena em que o povo descobre que o cofre do banco foi arrombado e suas reservas foram roubadas, a fúria toma conta da população (figura 29). A segunda, é a cena em que Rango e seus companheiros estão fugindo dos ataques dos suposto ladrões de água. Os vilões atiram sobrevoando a equipe de Rango montados em morcegos. Esta imagem se parece com uma cena real de guerra, a trilha sonora é aplicada de modo a dar a impressão de que os morcegos são verdadeiros aviões de combate (figura 30).

Figuras 29 e 30

Por fim, vale mostrar a imagem de quando se encerram as buscas realizadas pelo grupo de Rango. Eles retornam à Poeira sem encontrar o galão de água roubado. As pessoas paradas esperando com seus recipientes vazios e a visível frustração nos olhos de Rango e Beans salientam a essencialidade da água pra a vida.

Figura 31

Em última análise, cabe refletir sobre o efeito lógico. De acordo com Santaella (2005, p. 25):

O terceiro efeito significado de um signo é o interpretante lógico, quando o signo é interpretado através de uma regra interpretativa internalizada pelo intérprete. Sem essas regras interpretativas, os símbolos não poderiam significar, pois o símbolo está associado ao objeto que representa através de um hábito associativo que se processa na mente do intérprete e que leva o símbolo a significar o que ele significa.

Embora seja uma obra ficcional, tal filme retrata problemas reais e utiliza-se de piadas e diálogos que nos dão a certeza de que Rango não é um filme feito para crianças. O sarcasmo e certo teor levemente pornográfico de algumas conversas mostram que a produção analisada quebra com a regra interpretativa internalizada.

Para começar, há uma piada que reforça esse caráter adulto do filme. É uma cena em que Rango e seu grupo estão procurando os rastros dos ladrões. No alto de uma montanha, os personagens dialogam:

ÍNDIO

– Achei um rastro. Três homens seguindo a Oeste. Um cego, um com… a próstata aumentada, em sela lateral.

PERSONAGEM 2

– Alguém está com a válvula ruim

PERSONAGEM 3

– Quem é que está precisando de um check-up? (RANGO…, 2011, cap. 12)

Ao término desta frase, aparece a seguinte imagem que faz referência ao exame:

Figura 32

Mantendo a linha de chiste sarcástico, há a cena em que os aventureiros de Poeira estão fazendo uma encenação teatral para tentar enganar os ladrões. Rango é quem está narrando a peça: “– A princesa vai tirar a própria vida. (…) Com toda a pompa, chega o idoso pai. Flechado pelo cupido” (RANGO…, 2011, cap. 13). Rango satiriza o fato de um dos personagens ter uma flecha enfiada em seu olho direito. Como na cena anterior, dificilmente uma criança compreenderá a “piada”:

Figura 33

Há, também, outra cena que reforça esta característica “não infantil” de Rango. A cenas retrata um problema bastante sério em nossa sociedade e que no filme é introduzida de modo a parecer cômica. Quando os “mocinhos” param as buscas durante a noite, um dos personagens desabafa enquanto estão assando marshmallows (figura 34): “– Comia marshmallows a noite toda quando acampava com o papai. Depois ele mandava eu regurgitar para o café da manhã” (RANGO…, 2011, cap. 12). Essa cena denuncia à violência infantil sofrida por crianças dentro do próprio lar.

Figura 34

Ainda cumpre mencionar a cobra Jake, outro vilão da trama. A caracterização do personagem é um pouco pesada. Jake é uma cobra que possui uma metralhadora ao final de sua cauda e balas ao redor de seu corpo (figura 35). O vilão não hesita em utilizar sua arma (figura 36):


Figuras 35 e 36

Mantendo o foco no personagem Jake, há outra cena em que sua crueldade é destacada. Desta vez, Jake está tentando convencer Beans a vender sua fazenda, pois o terreno da garota está atrapalhando os projetos do prefeito:

JAKE

– Assine essa droga de papel, mulher!

BEANS

– Vá para o inferno!

JAKE

– De onde acha que eu vim? Olhe nos meus olhos. Quero vê-la morrer (RANGO…, 2011, cap. 18)

Nota-se que o conteúdo da conversa é bastante denso e a construção visual chega a ser impactante:


Figuras 37, 38 e 39

Também referente ao campo visual, trago à discussão à imagem da banda de corujas cantando uma música cuja letra é “A morte chegou. Como o herói sobreviverá?” (RANGO…, 2011, cap. 15). A música começa a ser tocada logo após a cena já abordada do pai, arrumando o filho para a morte. Aqui, as corujas aparecem enforcadas. A cena é, no mínimo, incômoda:

Figura 40

Através do interpretante dinâmico, pôde-se notar que Rango não é um filme destinado ao público infantil, pelo contrário, retrata problemas sociais e ambientais bastante sérios, problemas, inclusive, que nos preocupam na realidade, como falta de água, corrupção, violência, entre outros. Além disso, o teor um tanto arrojado demais de suas piadas deixam claro que o conteúdo abordado não foi feito para ser compreendido por crianças.

Considerações Finais

Ao término desta exposição, é possível notar as diferenças entre os interpretantes imediato e dinâmico por mim atribuídas em relação ao filme Rango. Ao nível do interpretante imediato, com base em minha intuição e nos efeitos que os signos despertaram, tive a sensação de que esta seria mais uma divertida animação infantil. Contudo, essa primeira impressão foi se modificando com o desenrolar da trama.

Embora, de fato, existam cenas engraçadas, como um todo, pode-se perceber, através do interpretante dinâmico – não mais baseado em possibilidades, mas em efeitos concretos – que a produção é voltada para um público mais maduro, constituída de agressões – tanto físicas quanto psicológicas – e insultos declarados.

Ao debater problemas que são vivenciados em muitas sociedades contemporâneas, mesmo sendo interpretados por animais, a obra quebra com o clima fantasioso, de modo a atenuar sua característica de entretenimento e a aumentar seu nível de reflexão e conscientização. Ainda que o filme não represente a realidade em si, ele funciona como um elemento de aproximação com esta. A esse respeito, Andacht (20–, p. 104) afirma que “(…) os signos procuram e, de fato, conseguem revelar aspectos sucessivos do real a uma criatura falível como o ser humano, e assim a aproximam à verdade. Postular uma tendência aproximativa em direção à verdade não é o mesmo que negar absolutamente tal possibilidade.”

Ainda referente à relação da obra com o real, Erich Auerbach (1957), declara que, ao se tratar de heróis – como é o caso do personagem Rango – “enquanto ouvimos ou lemos a sua história, é-nos absolutamente indiferente saber que tudo não passa de lenda, que tudo é ‘mentira’”.

Trata-se, portanto, de um filme cujas características iniciais e finais são bastante divergentes, causando uma falsa impressão ao espectador, ideal para exemplificar a proposta deste trabalho. Como também me parece servir de exemplo o recente e polêmico filme TED (Seth MacFarlane, 2012), talvez tais produções exemplifiquem uma nova proposta dos filmes de animação ou uma mistura de animação e live action, cujo público-alvo já não é o infantil, visto que a total compreensão destas obras só pode ser atingida por jovens e adultos.

*Juliana de Souza é mestranda do curso de Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Especialista em Língua Inglesa: metodologia do ensino e tradução, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2010). Graduada em Letras, pela Universidade da Região de Joinville (2007). Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal Catarinense.

¹Rango (Johnny Depp) é um camaleão da cidade grande que vai parar, após um acidente, em pleno velho oeste, na cidade de Poeira no deserto do Mojave, na Califórnia. De uma hora para outra, sua rotina de animal de estimação mudou radicalmente e agora ele precisa deixar a vida “camuflada” para enfrentar os perigos existentes no mundo real, fazendo com que ele vivencie a experiência de fazer amigos, conhecer inimigos e até, quem sabe, se tornar um herói.

²Beans é a personagem feminina de maior destaque na trama.

³Como mecanismo de defesa, a personagem fica paralisada em situações complicadas.

Referências Bibliográficas

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ANDACHT, Fernando. Duas variantes da representação do real na cultura mediática: o exorbitante Big Brother Brasil e o circunspeto Edifício Master. Contemporânea. Revista de Comunicação e Cultura. v. 3, n 1, 2005. p. 99-126. Disponível em: < http://www.compos.org.br/data/biblioteca_587.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2012. AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. 1957. Disponível em: <http://www. noigandres. net/textos/ cicatriz_de_ulisses.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2012.

BARTHES , Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985

KOO, Lawrence Chung. Estudo da atratividade dos ambientes de comunidades virtuais: análise comparativa LinkedIn e Orkut. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/3/TDE-2007-04-26T07: 29: 41Z-2984/Publico/COS%20-%20Lawrence%20Chung%20Koo.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2012,

METZ, Christian. O dizer e o dito no cinema: ocaso de um verossímil. IN: ______. A significação no cinema. São Paulo: EDUSP, 1972.

NOGUEIRA, Luís. Manuais de cinema II: géneros cinematográficos. Covilhã: Labcom, 2010.

SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2005.

Filmografia

RANGO. Direção: Gore Verbinski. Estados Unidos. Paramount Pictures, 2011. DVD (107 min).

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