Teorias Cinematográficas aplicadas ao filme “A Pele que Habito”

Virgínia Jangrossi*

Introdução

O trabalho a seguir relacionará o filme A pele que habito (2012), de Pedro Almodóvar, aos textos “O sistema da sutura” e “Identificação, projeção e espelho” de Arlindo Machado; e “Prazer visual e cinema narrativo” de Laura Mulvey.

Para isso, serão explicados os conceitos abordados em cada um dos textos. Em seguida, será feito um resumo, concomitantemente a uma análise do filme na qual se associará os referidos textos ao filme.

A sutura

O cinema clássico hollywoodiano desenvolveu uma linguagem para manter o espectador preso à diegese, para isso, utilizou-se de mecanismos que respeitassem a quarta parede e deixassem o espectador em uma posição inconscientemente passiva.

Refletindo essa linguagem, tais mecanismos foram estudados, e elaborou-se, então, o conceito, inicialmente proposto por Jean-Pierre Oudart (1969), denominado “Sistema da Sutura”. Porém, o termo “sutura” foi proposto somente alguns anos depois por Jacques Alain Miller, entre 1977 e 1978.

No cinema atual, porém, é instigada a alteração dessa linguagem, de modo que seja mostrada a construção fílmica e não se respeite o lugar do espectador intocado.

Esse trabalho, no entanto, abordará o que se mantém, ou se difere desta linguagem clássica em um filme contemporâneo europeu.

Identificação, projeção e espelho

Todas as informações narrativas depositam-se no espectador, como se ele representasse uma segunda tela. Porém, por ser passivo em relação à trama, não pode modificá-la, caracterizando-se, então, como sujeito excluído. Apesar disso, para que a trama faça sentido, além da linguagem audiovisual empregada, o espectador precisa sentir-se identificado com aquilo que vê.

Assim, através do mecanismo de identificação, o espectador pode sentir como se interagisse com aquilo que lhe é mostrado. Isto é, mesmo que os fatos diegéticos não aconteçam a ele por haver uma suspensão temporária do ego, ele os sente como se os tivesse vivenciando. Antes de identificar-se a um dos personagens, ainda há uma identificação, denominada primária, pela qual o espectador se identifica com o olhar agenciador do plano, isto é, com o sujeito vidente.

Após isso, há uma identificação secundária, ou seja, a identificação com um ou mais personagens em cena. Em alguns casos, pode não ocorrer essa identificação com nenhum personagem, mas pode ocorrer uma identificação com o olhar da trama, isto é, o do sujeito. Porém, para que possa identificar-se com alguma destas instâncias, o espectador deve projetar-se em um ou mais personagens, ou mesmo no sujeito fílmico.

Para compreender a projeção, em geral, compara-se o espectador e a tela do cinema a um bebê, entre 12 e 18 meses, diante de um espelho. Pois, nesta fase, o bebê possui a pulsão voyeurista e compreende que aquilo que vê é uma projeção dele, mas por ter pouco desenvolvimento de suas atividades motoras, não se move diante da projeção. No caso do espectador, essa projeção é oriunda de uma falsa percepção.

Prazer visual e cinema narrativo

Segundo Laura Mulvey, o cinema clássico hollywoodiano se estruturou a partir da visão patriarcal da sociedade vigente. Portanto, diz que estes filmes são guiados pelo olhar ativo do personagem masculino, que direciona o olhar a uma mulher extremamente bonita. Assim, o espectador identifica-se com ele pelo fato de ser o responsável pelo desenvolvimento narrativo, conferindo uma sensação de onipotência diante da trama.

A mulher, vista nestes filmes, além de objeto passivo do olhar, funciona como indivíduo exibicionista, que apesar de proporcionar o prazer visual no homem, o relembra da possibilidade de castração, por não possuir um falo. Assim, há duas possíveis saídas para que o homem se livre deste complexo, sendo uma delas, a punição da mulher – pois, em geral, ele se encontra do lado correto da lei, e ela, não  –  e, a outra, uma idealização fetichista.

Resumo do filme “A pele que habito” e a aplicação destas teorias cinematográficas.

Após um stablishingshot do local onde a história ocorrerá, Toledo, 2012, mais especificamente em uma clínica/casa denominada “El cigarral”, a primeira imagem apresentada ao espectador é a de uma mulher, Vera, alongando-se. Ela veste uma roupa que se assemelha à pele, o que demarca ainda mais o contorno corporal dela, erotizando-a. Além disso, ao espectador é apresentado o rosto dela, em um plano próximo, marcando a beleza desta personagem. Vera recebe alimento, roupas e livros através do monta cargas. Ao recebê-los, através de um interfone, ela estabelece contato com Marília, pedindo-lhe outras coisas, como agulhas, linhas e tesoura. No contraplano vemos que Marília, apesar de não estabelecer contato direto com Vera, a vê através de câmeras de segurança.

Segundo a teoria feminista de Laura Mulvey, poderia ser afirmado que Vera é o objeto de visão passivo, pois é uma mulher e, além disso, possui uma beleza quase extra diegética. Porém, por não se tratar de um filme hollywoodiano clássico, deve-se manter a atenção ao longo da narrativa, pois os personagens não são necessariamente lineares e transparentes.

Após a apresentação da personagem feminina, é mostrado Roberto, que, no contexto da teoria de Laura Mulvey, é o personagem masculino, de ponto de vista ativo, que guia o espectador internamente à narrativa. A este olhar é acoplado o olhar do espectador.  Além do olhar de Roberto, há outro olhar que guia o espectador, o do sujeito, é ele que elabora e une estes planos, como uma espécie de narrador que auxilia na coesão da trama.

A apresentação do personagem é feita em uma conferência, na qual ele fala sobre a importância de dar um rosto às vítimas de queimadura e que não basta, apenas, salvar-lhes a vida. Após isso, ele passa em um hospital, no qual pega uma mala. Após isso, ele passa em um hospital, no qual pega uma mala, dirige até El Cigarral e a abre. Através da estrutura campo e contracampo o espectador vê o mesmo que Roberto, uma bolsa de sangue da qual ele retira uma amostragem para vê-la ao microscópio. Depois disso, Roberto caminha até o quarto, onde liga a televisão. A imagem que ele vê é a de Vera, deitada na cama.

Nesse momento, é ressaltado ao ponto máximo o prazer voyeurista de Roberto em relação a ela, pois, além de possuir televisões na cozinha para observá-la, há outra, enorme, no quarto dele. Acrescido a isso, a câmera faz um movimento panorâmico bem lento, mostrando Vera desnuda, que marca o ponto de vista contemplativo e o estímulo sexual de Roberto através do olhar.

Roberto pega uma caixinha que contém ópio e caminha até o quarto de Vera, que ele destranca, mostrando que a mantém presa. Ao entrar no quarto, vemos a expressão de espanto de Roberto no campo fílmico. No contracampo, vemos Vera com os pulsos cortados. Dominado pelo medo de perder seu objeto fetichista, a pega no colo e leva para sala de operações para socorrê-la.

Vemos que a relação de Roberto para com Vera corresponde às duas possibilidades pelas quais o inconsciente masculino pode se livrar do complexo de castração, o primeiro é punindo-a, e o segundo é idealizando-a. Ele a pune, mantendo-a presa, mas ao mesmo tempo idealiza-a ao contemplá-la visualmente.

Há um plano em plongée do tórax de Vera, na qual é reforçada a beleza de sua pele, cujo tom contrasta com o resto do cenário. Além disso, aparenta suavidade e sensibilidade.

Em seguida, há uma sequência de Roberto recebendo um galão que contém sangue de porco e dirigindo-se ao laboratório para fazer alguns testes em um molde do corpo de Vera, dividido em diversos traços, no qual ele aplica delicadamente, com cotonetes, uma pele. Após isso, há uma transição do molde para o real corpo de Vera, no qual Roberto passa uma chama, para certificar a superioridade da nova pele aplicada a ela.

Pelo fato da narrativa não ser transparente, o espectador faz analogias para poder compreender a história. Dessa forma, apesar de Vera aparentar sofrimento, como o personagem de Roberto foi apresentado em uma conferência falando sobre vítimas de queimaduras e agora diz a Vera que isso não ocorrerá mais a ela, o espectador é induzido a acreditar que Vera sofreu queimaduras e que Roberto é o responsável pela melhoria dela, aproximando ainda mais a identificação do espectador a este personagem masculino.

Em outra conferência, Roberto apresenta a pele artificial criada por ele, que recebe o nome da esposa já falecida – vítima de queimaduras em um acidente de automóvel –, Gal. Temos, então, que a obsessão de Roberto é uma outra mulher, a esposa. Ela é o motivo dos experimentos e do empenho dele em elaborar a pele perfeita; ela era o objeto por ele idealizado, e, não aceitando a perda, busca formas de mantê-la consigo.

Para criar a pele perfeita, Roberto utiliza transgêneses, isto é, altera o material genético de porco de modo a adaptá-lo ao do ser humano. Não podendo assumir que os testes foram feitos em um ser humano, por conta de ser estritamente proibido pela bioética, ele diz que os testes foram feitos em ratos de laboratório. Este fato demonstra uma falha no caráter deste personagem, todavia, nesse momento, o espectador não o julga assim, pois, aparentemente, ele está ajudando Vera e, além disso, o espectador está identificado com o ponto de vista dele.

Ao voltar da conferência, Roberto vai para casa e, novamente, liga a televisão para ver e admirar Vera. Ele aproxima a câmera diegética que, antes, mostrava a personagem de corpo inteiro, até mostrar o rosto dela bem próximo. Vera, que estava lendo, para de ler e olha em direção a esta câmera. Ao fazer isso, percebe-se que o prazer sentido por Roberto não é escopofílico, pois Vera sabe que é observada, e este fato a torna um objeto exibicionista.

Apesar de olhar diretamente para Roberto, personagem que direciona a narrativa e o olhar do espectador, o olhar dela é oblíquo em relação à câmera que constrói a narrativa e, consequentemente, ao espectador. Isso preserva a sutura e, assim, mantém preso o espectador à diegese, sem que ele se sinta deslocado de sua posição passiva.

Aparentemente, quem sente incômodo, por ser olhado diretamente, é Roberto. Ao sentir-se deslocado de sua posição voyeurista/escopofílica, para de olhá-la através da televisão, pega a caixinha que contém ópio e vai ao quarto de Vera.

Como objeto exibicionista, Vera pergunta a Roberto se ele gosta do que vê, se há algo que ele queira melhorar, ao que Roberto responde que não há mais nada a ser melhorado, caracterizando que, em relação ao ponto de vista dele, ela é perfeita. Além disso, ele afirma que ela possui a melhor pele do mundo.

Entretanto, os questionamentos de Vera vão além, quer saber o que ele fará com ela, agora que não há mais testes a serem feitos. Ela também se insinua para ele, instiga-o com o charme que possui. Pergunta se eles podem viver juntos como as demais pessoas, deixando-o perturbado. Apesar disso, ele a rejeita.

A reação de Roberto, segundo a teoria feminista, poderia ser justificada pelo fato de que, apesar da personagem proporcionar prazer visual a ele, ela é intimidadora no conteúdo, pois o relembra a todo o momento sobre o complexo de castração.

Para tentar livrar-se desta situação que o atormenta, Roberto caminha em direção à saída do quarto. Vera, porém, corre em direção a ele e para frente à porta antes que ele saia. Ela entrega um objeto pelo qual diz que poderia atear fogo em toda casa. Essa atitude aparenta certa submissão da mulher, que entrega seus artifícios nas mãos do homem. O que o espectador ainda não sabe é que ela toma essa atitude para ganhar a confiança dele.

Antes que ele efetivamente deixe o quarto, Vera aproxima-se muito dele, como se fosse beijá-lo e sussurra que pertence a ele e que foi feita para ele, à medida dele. Isto demonstra que ela sabe ter sido moldada para representar a esposa dele. Apesar disso, ela se oferece a esse protagonista masculino, submissa, aparentando uma posição masoquista. Porém, esta é a arma que será utilizada por ela, seduzi-lo e mostrar-se desarmada para ganhar-lhe a confiança.

Roberto procura a chave para sair do quarto e, por demorar para encontrá-la, Vera aponta e diz que está no bolso dele, inferindo-se, então, que ela também o observa. Para sair do quarto, ele abre o mínimo possível a porta, como sinal de que, caso contrário, ela poderia escapar; traça a porta rápida e euforicamente. No contracampo, Vera o olha sair e, ao lado dela, há uma parede cheia de escritos em preto, na qual a única coisa destacada, em vermelho, é o desenho de uma vagina, – que no inconsciente masculino simboliza a ausência do falo, e reforça o medo da castração –, porém, ainda não há um grande destaque à parede.

Ao chegar no quarto, Roberto olha para Vera e ela, novamente, corresponde a esse olhar. Constata-se então, nesse plano, uma série de olhares, sendo eles: o olhar da câmera, que constrói a narrativa; o olhar do espectador, para quem a narrativa se desenvolve; há também a troca de olhares entre os personagens, porém ela não é direta, e sim interpelada pelo olhar de uma câmera interna à diegese.

Assim, pode-se notar que, apesar de o cinema de Almodóvar não ser hollywoodiano clássico e, portanto, não obedecer a todas as regras e conceitos utilizados nesta análise, até este momento ele respeita os conceitos apresentados, dentre o quais, mantém o lugar intocado do sujeito através da continuidade e obliquidade do olhar, mesmo quando se estabelece um nó de olhares como este.

Visando manter o estado de alerta em Roberto, bem como no espectador, sua mãe, Marília, o adverte quanto ao fato dele ter colocado o rosto ‘dela’ em Vera; que apesar de não mencionar diretamente o rosto que fora reconstituído, o espectador infere que ela se refere à Gal, pois já foi identificado que ela era o objeto por ele idealizado, a ponto de estimulá-lo a criar a pele perfeita. No entanto, ele nega e diz que elas não são iguais.

Sabendo-se correta em sua afirmação, Marília relata os problemas que esse fato acarretará para o futuro de Vera, pois ela não poderá ser vista por ninguém que conhecesse Gal, por isso, diz que ela nunca poderá sair daquela casa, restando apenas duas alternativas para Roberto: mantê-la sempre em cativeiro ou matá-la. Além disso, o alerta sobre o sentimento que ele nutre por Vera, dizendo que isso pode levá-lo a morte.

Preocupado com o primeiro aviso, mas negando o segundo alerta, Roberto pede a Marília que demita os demais funcionários e não permita mais a presença de ninguém na clínica/casa. Porém, após isso, um homem vestido de tigre, Zeca, aparece à porta perguntando pela mãe, Marília, que o expulsa de lá, mas, devido à astúcia do personagem, ele consegue comovê-la.

Neste diálogo, interpelado por uma câmera diegética, vemos no campo uma tela de televisão, em preto e branco, que supomos ser a representação da visão de uma câmera de segurança, porém, no contracampo não vemos essa câmera de segurança, é a própria câmera que constrói a narrativa que se aproxima do personagem, por isso, o olhar em relação a ela é obliquo. Se esta câmera correspondesse à câmera diegética, o personagem teria de olhar diretamente para ela e quebraria a quarta parede.

Há um clima de tensão presente, oriundo da sequência anterior, pelo fato de que Marília não poderia deixar ninguém adentrar em “El cigarral”, mas Zeca a empurra e entra.

Ao aparecer notícias carnavalescas na televisão é justificado o motivo pelo qual Zeca está vestindo uma fantasia de tigre. Segue-se, porém, um relato de furto em uma joalheria, na qual vemos que Zeca é um dos ladrões e, devido à oportunidade do disfarce, pôde caminhar livremente pelas ruas da cidade.

O espectador, então, alerta-se em relação a esse personagem que, além de ser um ladrão, para conseguir esconder-se e ter o rosto operado por Roberto, sugere o sequestro da própria mãe, porém, logo vê suas expectativas frustradas.

O clima de tensão da cena é aumentado ainda mais quando Zeca dirige seu olhar para as televisões que se encontram na cozinha. Ao ver o rosto de Vera, ele a reconhece como Gal e expressa sua contemplação lambendo a tela da televisão. Marília, que previamente pegara um revolver, o direciona para Zeca que avança em direção a ela, dominando-a, amarrando-a em uma cadeira e colocando um pano em sua boca.

Apesar da pulsão sexual que Zeca direciona a Vera, ou, mais precisamente, à Gal, ele não a tem como obsessão da mesma forma que Roberto, pois o prazer dele não se concretiza através do olhar, e sim, em possuí-la. Além disso, vê na personagem seu álibi para pedir a Roberto que lhe opere o rosto.

Apesar do desejo de se ver livre de seu atual cativeiro, caso fosse sequestrada por Zeca, Vera aparenta uma tensão, aumentada ainda mais pela música que gradativamente torna-se mais alta a ponto de tornar-se incômoda. A personagem tenta ludibriá-lo para fugir, porém não consegue e é estuprada.

Ao cortar para a cena do estupro, é utilizado um plano próximo para demarcar a expressão de dor e as lágrimas de Vera. Durante essa sequência, há um diálogo no qual Zeca diz que antes ele a “deixava louca”, o que certifica ao espectador que ele e Gal mantinham relações sexuais.

Há um corte para Marília, posicionada diante dos dois televisores da cozinha, com expressão de espanto, ainda com um pano na boca. Ela observa tudo que acontece no quarto, mas está impossibilitada de agir, pois está amarrada à cadeira. A situação dela demonstra a mesma do espectador, que vê, sente angústia, mas está preso à cadeira e, portanto, não pode fazer nada para impedir que aquela situação ocorra. Apesar do choque,a pulsão voyeurista não permite que, tanto o espectador quanto Marília, deixem de olhar.

Neste ponto, a identificação com o olhar do personagem masculino começa a ser questionada, pois, desde a demissão dos criados até o estupro de Vera, Roberto encontra-se ausente e, portanto, não é ele quem vê e guia o olhar do espectador.

Apesar disso, o espectador continua preso à narrativa, mas agora, é guiado pelo olhar de Zeca. Contudo, não há identificação com este personagem pelo fato de ser um fugitivo da polícia e agir rudemente com a mãe e com Vera. Paradoxalmente, o espectador se identificava com Roberto que fazia testes irregulares,proibidos pela bioética, e mantinha Vera presa, além de dar a ela o rosto da ex-mulher, para satisfazer-lhe uma obsessão fetichista.

Tem-se então, o início da identificação com a personagem feminina, ao compadecer-se do sofrimento dela. Contrariando, assim, as teorias de Mulvey, que dizem que a identificação, se dá com o personagem masculino, onipotente, presente na construção fílmica.

A passividade do espectador em não poder fazer nada é suprida pela chegada de Roberto, que primeiramente vê Marília amarrada e depois olha para as imagens das televisões e vê Vera sendo abusada.

Inicia-se, novamente, um nó de olhares: o da câmera diegética, através da qual Marília pode ver o que ocorre no quarto de Vera; o olhar de Roberto; o olhar de Vera. Além do olhar do sujeito/narrador fílmico e do olhar do espectador. Porém, o olhar do espectador acopla-se ao do sujeito e ao do personagem do campo ausente, isto é, aquele que vê o campo fílmico.

Campo da visão do sujeito/espectador.
O campo invisível da visão de Marília torna-se o campo fílmico.
Campo da visão de Roberto.
Campo da visão de Vera.

Vemos o olhar de raiva de Marília, que observa a cena através da tela em preto e branco da TV, a câmera faz um movimento no qual vemos que Roberto entrar no quarto com uma arma na mão, porém isso poderia ser entendido como uma subjetiva do que Marília vê, visto que a câmera de segurança não faz esse movimento.

Ao entrar no quarto há um jogo de plano e contraplano, alternando o campo visível e o campo fílmico, entre Vera e Roberto. Durante essas mudanças de plano, Roberto, que primeiramente havia direcionado a arma para Vera, muda a direção da arma e dispara em Zeca. Ainda nesse jogo de olhares, há o olhar de Marília que deseja que ele também mate Vera, mas ele não o faz.

Ao limpar o sangue presente na cama de Vera, Marília conta a Vera que é mãe de Roberto e Zeca, porém são filhos de pais diferentes, e diz que, apesar disso, ambos são loucos. A partir desse momento a narrativa se desenvolve pela narração de Marília à Vera, que revela a verdade de Gal à Vera, através de flashbacks.

Começa por relatar a criação do filho Zeca, a qual não pôde acompanhar. Diz que, desde os sete anos, transportava drogas e que uma vez o deu abrigo para escondê-lo da polícia, mas Gal o descobriu e o pegou como capricho sexual. Fugiram juntos e sofreram um acidente de carro, no qual Zeca sobreviveu e Gal ficou com o corpo todo carbonizado, mas fora resgatada por Roberto.

Essa fuga de Gal mostra o primeiro fracasso no complexo de castração de Roberto, que não consegue manter o objeto de desejo consigo. Porém, ao resgatá-la, pesquisa inúmeras formas de reconstituí-la, para recuperar o objeto por ele idealizado e, para que assim, supere essa primeira derrota.

Além disso, para preservá-la da imagem desfigurada que possui, Roberto retira todos os espelhos da casa. Ao começar a melhorar, ouve a filha, Norma, cantar e se emociona. Caminha para vê-la e, ao abrir as cortinas, se vê no reflexo da janela. Segundo Marília, ela não parecia um ser humano – diferente do que ocorre no mito de narciso (que se apaixona pela imagem de si próprio refletido na água), ao ver a própria imagem, Gal assusta-se, pois já não possui mais a beleza semelhante à de Vera. Por não aceitara nova imagem, atira-se pela janela. Instaurando a segunda derrota de Roberto no complexo de castração pois, novamente, ele não consegue manter consigo o objeto idealizado.

Outro fator importante para o desenvolvimento narrativo está no fato de que o corpo de Gal cai diante da filha, ainda criança. Isso acarretará alguns problemas psicológicos em Norma que se desenvolverão ao longo da narrativa, e culminará no mesmo destino da mãe, isto é, outro suicídio através da janela.

Ao matar Zeca, ele se livra do objeto que Roberto julga ser o responsável pela perda, dupla, do objeto fetichista.  Decide, então, possuir o objeto reconstituído, para superar os fracassos. Porém, Vera pede que deixem para o dia seguinte. Assim, mais uma vez, ele não vence a castração, pois não pode possuir o objeto idealizado.

Neste momento há uma dupla identificação do espectador, isto é, identifica-se tanto com Vera, quanto com Roberto. Identifica-se com ela por sua condição de submissão forçada, pelo fato de estar presa e, também, por ter sido estuprada. Já a identificação em relação a Roberto se dá pelo fato de que fora traído pela esposa que tanto amava, a ponto de não suportar essa perda e tentar reconstituir, em outra pessoa, o objeto por ele idealizado. Essa reconstituição não é vista negativamente, pois o espectador acredita que Roberto a reconfigurou de um acidente provocado por uma queimadura, dando a ela um novo e belo rosto, com uma pele que não sofrerá este mal.

Há uma transição de tempo, para seis anos atrás, que esclarecerá a realidade dos fatos dentro da diegese e irá alterar essa identificação.

A câmera que enquadrava ambos, em um plano mais aberto, faz de modo a enquadrar somente Roberto. Através do letreiro: “Seis anos atrás”, o espectador é guiado a um flashback.

Durante uma festa de casamento, Roberto conversa com a noiva, Cassilda, que comenta que Norma parece ter superado a fobia social. Essa conversa se dá em um campo, tendo Norma como contracampo, quando é apresentado novamente ao espectador o contracampo sem Norma, têm-se um sinal de alerta, o qual é certificado pelo fato de Roberto sair em busca da filha.

Durante a busca, vê um rapaz saindo de moto, e, em seguida, vê objetos pertencentes à filha espalhados pelo chão. Quando a encontra, desmaiada, ele tenta acordá-la, mas ao olhar para o pai ela grita e o empurra. Dessa forma, o espectador, guiado pelo olhar de Roberto, pode inferir que ela fora abusada sexualmente. Há um corte para o presente, no qual Roberto aparece dormindo.

Apesar do corte entre os planos, devido à sutura, esse retorno ao presente não faz com que o espectador se sinta deslocalizado internamente, visto que o letreiro que apareceu, indicando o tempo, tinha a função de situá-lo. Além disso, a continuidade dos planos se mantém principalmente por conta do som, pois, enquanto os gritos de Norma continuam, já aparece no campo fílmico a imagem de Roberto, transpirando e se movimentando, como se estivesse tendo um sonho perturbador.

Esse pesadelo de Roberto reforça a ideia de que, pela terceira vez este personagem falha ao tentar proteger uma mulher a qual ele devota algum sentimento, seja paternal, no caso de Norma, ou erotizado, como no caso do estupro de Vera e suicídio Gal.

Roberto acorda e o movimento da câmera se inverte. A câmera, que enquadrava somente ele, passa a enquadrar ambos em um mesmo plano. Roberto se aproxima dela e a abraça. O movimento de câmera anterior ao flashback se repete, porém, fecha o plano em Vera.

Devido a essa repetição da estrutura audiovisual, não é mais necessário o uso de letreiros explicativos, visto que o espectador já compreende que se iniciarão as lembranças/sonho de Vera, também seis anos atrás.

O plano que inicia a nova sequência apresenta um homem, Vicente, que o espectador identifica como sendo o homem que abusara de Norma. Ao conversar com outra, Cristina, ele a oferece um vestido de presente, que recusa e diz para que ele mesmo vista.

É o olhar deste personagem masculino que guiará esse flashback, porém, como o espectador o julga como estuprador, ainda não há identificação.

Há uma transição que mostra novamente Vera e Roberto em quadro, a câmera dirige-se novamente em para Vera. Nessa transição, porém, vemos por um longo tempo Vera, dormindo, e Vicente chegando à festa. Ambos aparecem em quadro, como se ele olhasse para ela.

Quando a transição termina, vemos que a troca de olhares se dava entre ele e Norma. Ao aproximar-se de Norma e estabelecerem um diálogo, ele, por estar sob efeito de drogas não consegue assimilar corretamente o que Norma diz e, ela, por ser inocente e ter problemas psicológicos – sabemos isso, pois ela cita os inúmeros remédios que toma – também não o compreende corretamente.

Vicente, então, interpreta as falas dela de modo a achar que Norma deseja ter relações sexuais com ele e, ela, por não saber sequer do que ele está falando, deixa que ele comece a despi-la.

Há um corte para a cantora da festa que oferece a música “Preciso de amor”, a mesma música que Norma cantava ao comover a mãe, antes desta suicidar-se. Agora, porém, é cantada em espanhol. A música inicia-se quando a festa corresponde ao campo fílmico e permanece mesmo quando este campo se altera para o de Vicente e Norma. Há, porém, uma transição da pessoa que canta para a voz de Norma, criança, cantando a música em português. A presença da mesma música que precedeu um momento traumático na vida de Norma aparece, novamente, antecedendo um novo trauma, o estupro.

Após isso, vemos Vicente comentando que deseja mudar-se do local onde mora. Em seguida, sai para espairecer e é capturado por um homem, que futuramente poderá ser identificado como Roberto.

Ao ver que o filho não voltara pra casa, a mãe de Vicente vai à delegacia, porém, pelo fato do delegado saber da vontade dele em ir embora da cidade, não leva a sério a busca do rapaz.

O caráter sádico da narrativa começa a assumir grande peso, Vicente acorda em um lugar sombrio, acorrentado tanto nos pulsos quanto nas pernas e, ao lado dele, há um pote com água, a qual ele bebe como se fosse um animal.

Roberto sente prazer em fazer Vicente sofrer para amenizar-lhe a culpa de não ter protegido a filha e por ser agora identificado, por ela, como o estuprador. Inclusive, perde o controle ao ir visitar Norma no hospital psiquiátrico, pois o médico pede que ele a visite com menos frequência, pois ela piora quando vê o pai, por identificá-lo como estuprador. Após isso, há um corte para um cemitério, no qual Roberto recebe os pêsames pela morte de Norma, que se atirara pela janela, aumentando ainda mais o ódio de Roberto em relação a Vicente.

Após o enterro, Roberto aparece barbeando Vicente, deixando tanto o espectador, quanto Vicente, apreensivos ao verem-no segurando a navalha, pois ambos já sabem que Roberto possui personalidade sádica. Ampliando o clima de tensão, Vicente pergunta se Roberto tem uma filha, pois vê brinquedos femininos próximos a ele. Roberto diz que acaba de enterrá-la. Nesse momento, o plano detalhe mostra Roberto com a navalha passando pelo pescoço de Vicente, que engole a própria saliva, expressando o medo. Contudo, Roberto não o mata. Porém, após barbeá-lo, coloca uma substância no nariz de Vicente que o faz dormir.

No enterro da filha, Roberto havia dito que iria trabalhar para ocupar a cabeça, e agora, ao ver Vicente em uma maca, percebe-se que ele irá operar o rapaz em El Cigarral, e, mesmo sem relatar qual será a cirurgia, o espectador já supõe algo bastante sádico vindo de Roberto, visto que Vicente é um refém dele e não sabe que será operado.

Ao acordar, Vicente, ainda sob efeito dos remédios, pergunta a Roberto o que acontecera. Roberto responde que fez uma vaginoplastia. Vicente repete a palavra e quando se dá conta do significado se recusa a acreditar e uma expressão de tristeza domina-lhe o semblante.

Roberto pune Vicente com o castigo que mais atormenta o inconsciente masculino: a castração.  Através deste ato, transfere a culpa que sente, por não ter evitado o estupro e o consequente suicídio da filha, a Vicente, para tentar minimizá-la.

No texto de Laura Mulvey, ela diz que é a presença da mulher que relembra o homem dessa possibilidade. Vicente aparentemente não tinha esse medo em relação à presença de Norma. Além disso, Vicente ainda não tem consciência do motivo pelo qual está sendo castigado.

Já no quarto, Vicente sobe em uma cadeira e tenta ver seu novo órgão genital, ele abre o roupão vagarosamente, mas não tem coragem de vê-lo, simbolizando a vergonha que sente por agora possuir uma vagina.

Aterrorizando ainda mais o rapaz, Roberto apresenta os dilatadores de diversos tamanhos que ele deverá utilizar para manter o orifício vaginal aberto. Ao vê-los, Vicente apresenta uma expressão terrificante.


Demarcando a psicose de Roberto, aparece um plano dele olhando para o órgão genital de Vicente, que humilhantemente chora e pede para ir embora, e tem seu pedido negado.

Somente agora esclarece ao rapaz o motivo pelo qual o castrou. Em plano próximo, expressa uma enorme raiva ao dizer que ele violou Norma.

Nesse momento, o espectador passa a identificar-se mais com Vicente, que está em uma condição humilhante e passiva em relação às vontades sádicas de Roberto.

Até então o espectador julgava que ele castigava Vicente e fazia testes irregulares em Vera. No entanto, há uma transição do rosto de Vicente para um rosto feminino, mais especificamente, de Vera, que faz com que o espectador compreenda que Roberto transformou Vicente, em Vera, ou, no caso, reconstituiu nele, Gal.

Transição do rosto de Vicente para o rosto de Vera.

Demarcando a psicose de Roberto, aparece um plano dele olhando para o órgão genital de Vicente, que humilhantemente chora e pede para ir embora, e tem seu pedido negado.

Somente agora esclarece ao rapaz o motivo pelo qual o castrou. Em plano próximo, expressa uma enorme raiva ao dizer que ele violou Norma.

Nesse momento, o espectador passa a identificar-se mais com Vicente, que está em uma condição humilhante e passiva em relação às vontades sádicas de Roberto.

Até então o espectador julgava que ele castigava Vicente e fazia testes irregulares em Vera. No entanto, há uma transição do rosto de Vicente para um rosto feminino, mais especificamente, de Vera, que faz com que o espectador compreenda que Roberto transformou Vicente, em Vera, ou, no caso, reconstituiu nele, Gal.

Longe de ser o lugar de síntese da consciência do sujeito por ele mesmo, o eu se define sobre tudo pela função de desconhecimento: pelo jogo permanente de identificação, o eu se encontra devotado desde a origem pelo imaginário, ao engano. Ele se constrói por identificações sucessivas, como uma instância imaginária na qual o sujeito tende a se alienar e essa é portanto a condição sinequa non da marcação do sujeito por ele mesmo, de sua entrada na linguagem, de seu acesso ao simbólico. (Aumonter AL., 1983, p. 180)

Uma nova transição temporal se dá por um letreiro escrito “Algumas semanas depois”. Agora, novamente, situado espaço-temporalmente dentro da diegese, o espectador vê Vicente retirar a máscara de silicone que moldava o rosto dele, aparentando agora traços femininos da personagem que o espectador previamente já havia visto, Vera.

A partir desse momento, sabemos que Vicente e Vera são a mesma pessoa e que o nome feminino fora dado por Roberto. Após isso, Roberto entrega a ela vestidos, que ela rasga, e maquiagens, que ao invés de utilizá-las no rosto ela usa para escrever na parede.

Agora é enfatizada a parede a qual já havia sido mostrada com várias coisas escritas e o desenho de uma pessoa com a vagina em vermelho, que agora sabemos ser a representação dos pensamentos de Vera.

Após isso, para localizar o tempo de cativeiro de Vera, há um corte para um plano de Marília chegando ao Cigarral, dizendo que há quatro anos não vê Roberto.

O próximo mecanismo utilizado para demarcar a passagem de tempo é dado pela ação da personagem Vera escrevendo na parede. No início do plano ela ainda possui o cabelo curto, e, ao chegar à parte inferior já está com o cabelo maior, do tamanho que estava no começo da trama.

Apesar de o flashback pertencer às memórias de Vera, o ponto de vista que temos se divide entre os personagens Vicente/Vera e Roberto. Há fatos que só foram vistos por Vicente/Vera, os quais Roberto não tem conhecimento – como o que ocorrera entre ele e Norma – e outras que só poderiam ter sido vista por Roberto, pois Vicente várias vezes ficou inconsciente, além de estar preso.

Porém, a identificação não oscila, ao contrário, o espectador define sua identificação ao personagem de Vicente/Vera.

A volta ao presente diegético se dá por um letreiro e de um primeiro plano de facas, sendo uma delas utilizada por Vera. Como o espectador volta do flashback, tendo o conhecimento do que ocorrera na trama, entra em estado de alerta, mas Vera corta um abacaxi que será servido no café da manhã de Roberto.

Para levar a bandeja, Vera utiliza o monta-cargas pelo qual ela recebia comida. Porém, para poder pegar a bandeja ela tem de entrar em seu antigo cativeiro e, ao passar pela parede repleta de escritos, para diante dela.

Volta o olhar para a câmera de segurança e, pela primeira vez, vemos a câmera através da qual Roberto a monitorava. Olha para o sangue na cama e para os objetos artesanais que fazia enquanto estava em cativeiro. Pega a bandeja e leva até Roberto.

Ao acordar há uma subjetiva de Roberto, por isso, apresenta uma imagem desfocada. Há um diálogo entre eles, no qual há uma troca de promessas entre eles, para certificar os fatos que ocorreram diegeticamente enquanto a narrativa era revelada ao espectador. Dentre estas promessas está a de Roberto deixar Vera livre e, em contrapartida, há a promessa de Vera de jamais abandoná-lo.

Marília, assim como o espectador, continua apreensiva, tenta alertar Roberto, mas as palavras dela não surtem efeito.

Assim como Marília, o espectador também está em estado de alerta, entretanto, Roberto ignora os avisos.

Enquanto Marília e Vera estão ausentes, Roberto recebe a visita do médico Fulgêncio, que mostra a ele um jornal com fotos de pessoas desaparecidas no qual vemos a foto de Vicente. Fulgêncio questiona sobre a vaginoplastia feita por eles no jovem, relatando que os documentos utilizados eram falsos. Porém, ao afirmar que a cirurgia ocorrera pela falta de escrúpulos de Roberto e ameaçar denunciá-lo para a comunidade científica, Fulgêncio se vê intimidado por Roberto que aponta uma arma em direção a ele.

Interrompendo esse diálogo, Vera chega e contrariamente a reação esperada pelo espectador, Vera defende Roberto ao invés de denunciá-lo, assume que todas as experiências foram feitas com o consentimento dela.  Estrategicamente, ao fazer isso, Vera certifica a confiança de Roberto nela.

Após isso, ao tentarem novamente estabelecer uma relação sexual, Vera expressa dor, mas diz que comprou um lubrificante e que irá buscá-lo. Ela desce até o escritório onde estavam, pega a bolsa com o lubrificante, porém, abre a gaveta que continha uma arma e a coloca na bolsa. Vê sobre a mesa uma foto de Vicente no jornal e contempla-o/contempla-se, beijando o jornal.

Ao entrar no quarto, Vera apresenta um olhar de raiva, joga o lubrificante para Roberto, que, distraído, não a vê pegando a arma; contudo, mesmo após vê-la armada, não acredita na ameaça devido às promessas trocadas na noite anterior. Porém, Vera dispara e o mata.

Neste momento é determinado o último e maior fracasso de Roberto em relação à castração. Isto é, apesar de reconstituir o objeto por ele idealizado, não consegue possuí-lo.

Corta para Marília que, ao ouvir o barulho, assusta-se. Caminha em direção ao quarto do filho, com uma arma na mão. Bate no quarto e chama por ele, quem responde é Vera, que diz que ele está dormindo e pede que Marília também volte para cama. Vemos Marília se distanciando, mas a sombra dela volta a se aproximar, a música de tensão aumenta.

Marília entra no quarto e vê o filho morto. Há uma câmera subjetiva que simboliza o olhar desta personagem procurando Vera. Vemos então uma arma que indica a localização de Vera embaixo da cama, ela dispara e mata Marília que, ao cair no chão, já sabia que isso iria acontecer.

Para justificar o fato de Vera não ter entregado Roberto ao outro médico, pode-se interpretar que ela queria sim vingar-se Roberto, mas ela mesma deveria fazê-lo, punindo o homem que até então agia de maneira onipotente sobre ela.

Vera vai até a antiga loja em que trabalhava, vê a mãe e Cristina. A mãe não o reconhece e pede que Cristina a atenda. Nesse momento, ela, então, revela a verdade a Cristina. Porém, para que ela acredite no que Vera diz, ela recorda-a do episódio do vestido que Vicente havia oferecido a ela por achá-lo bonito. Como, diegeticamente, havia apenas os dois personagens durante este diálogo, Cristina começa a chorar, reconhecendo a veracidade na fala de Vera. A mãe de Vicente se aproxima e pergunta o motivo pelo qual ambas estão chorando, há um momento de silêncio e, então, Vera diz que é Vicente. Não é mostrada a reação da mãe dele, pois há um fade to black, que encerra o filme.

Conclusão

A análise realizada aborda um filme europeu contemporâneo, que, portanto, não segue todas as regras do cinema clássico estadunidense.

Apesar disto, Almodóvar mantém os mecanismos de sutura para preservar a ambientação do espectador internamente a narrativa. Utiliza-se de campos e contracampos, mantém intacta a continuidade e obliquidade do olhar. E, mesmo quando utiliza os letreiros que indicam mudança temporal, não quebra este mecanismo, pois, conduz o espectador a localizar-se temporalmente.

Porém, o mecanismo de identificação – que se mantém constante em um único personagem, na maioria dos filmes clássicos – não se mantém em A pele que habito.

O sujeito fílmico, por não apresentar linear e claramente a narrativa, ludibria o espectador, fazendo com ele se identifique por um longo tempo com Roberto, personagem que, futuramente, explicitará seu caráter sádico-obsessivo e psicótico.

Em relação à teoria feminista, o olhar, em geral, se mantém guiado pelos personagens masculinos – Roberto e Vicente – porém, há uma confusão, acarretada pelo fato de Vicente ter sido transformado em uma mulher extremante bela, o que faz com que o espectador seja enganado e acredite estar sendo guiado pela visão de uma mulher.

Tanto Roberto quanto Vicente passam pelo processo de castração. Roberto, porém, é derrotado inúmeras vezes: pela esposa Gal que foge com o amante e, depois, ao ver-se desfigurada, se suicida; e, por não conseguir possuir Vera, que é a reconstituição de Gal, objeto fetichista deste personagem.

Vicente, porém, sofre a derrota real da castração. Sendo punido por Roberto, quando este julga que Vicente abusou de Norma, filha dele. Porém, apesar de não ter seu falo reconstituído, ao matar Roberto, Vicente tem uma vitória parcial sobre este complexo, e, Roberto, a derrota total.

*Virgínia Jangrossi é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e é editora da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

Bibliografia

AGUIAR, Gustavo. “Olhando Kieslowski e Hitchcock: Questões do olhar e da representação no cinema”, in Revista Universitária do Audiovisual, disponível em http://www.rua.ufscar.br/site/?p=7122

MACHADO, Arlindo. “Identificação, projeção e espelho” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 95-105.

________________. “O sistema de sutura”. in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 71-81.

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 435-453.

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