Eu te apresento

Muitas vezes, na vida, nos deparamos com pessoas marcantes. Daquelas que nossa memória parece insistir em guardar até o resto das nossas vidas. Isto pode ser motivado por uma beleza estonteante, por um gesto de grandeza, por ser relacionado a um fato engraçado e inúmeras outras coisas. O mais curioso é que, se víssemos estas mesmas pessoas em situações diferentes, tal fixação nunca aconteceria. Assim, não bastam apenas as pessoas serem especiais, há de ocorrer também uma predisposição psicológica nossa para que este ente se torne marcante.

Se trocarmos a palavra pessoa pela palavra personagem nós chegamos ao cerne deste texto. Ao longo da História da Arte, narradores conseguiram fixar em nossa mente personagens muito fortes, em cenas memoráveis. Depreenderam que o óbvio não tem charme, que o oculto pode ser muito mais sedutor e instigante.

Um dos filmes mais adultos dos últimos tempos, “Closer”, dirigido por Mike Nichols, apresenta a personagem Alice, interpretada por Natalie Portman, numa maneira extremamente sedutora. Vemos Alice vindo por uma rua, flertando com a personagem Dan (Jude Law). Um vindo em direção ao outro, por entre a multidão, olhos nos olhos, até a surpreendente conclusão.

Não basta a beleza da atriz, o que mais nos seduz é a situação criada pelo diretor. A lente teleobjetiva que a destaca entre a multidão, a bela música, o flerte casual no meio da rua, o objeto de desejo deliciosamente se aproximando de nós, os vultos que, como na vida real, se interpõem entre o foco de interesse e nossos olhos… Muito provavelmente pras mulheres que estão lendo este texto agora, tudo isto seja aplicado ao Jude Law. Como disse, depende de nossa mente as pessoas se tornarem marcantes.

Um primo meu disse que ficou com esta cena presente por três dias consecutivos em sua cabeça. Acredito.

Mas havíamos falado no segundo parágrafo que o oculto era mais instigante. Criar uma grande expectativa, pra depois revelar, ajuda a criar o mito. O exemplo mais poderoso de que me lembro é a entrada em cena de Butterfly, na ópera de mesmo nome de Giacomo Puccini.

A música começa baixa, sem tanto brilho (pois fora do palco, o que elimina as frequências mais altas), subindo num contínuo crescendo; quando começa a ganhar o palco vamos percebendo todo o esplendor musical, os agudos da voz de Butterfly pairando sobre o comum dos mortais, os comentários das personagens masculinas, tudo nos inebriando e preparando a entrada da personagem principal da ópera de uma forma contundente. Como não se apiedar por sua inocência, como não se apaixonar por ela pelo resto da apresentação?

Em “O Leopardo”, a apresentação da personagem Angélica é exemplar. Quando ela adentra o baile, primeiro a vemos um tanto distante num plano aberto. Depois, corta-se para a reação das pessoas à sua presença, todos deslumbrados. Tudo pára, o tempo parece parar ante sua beleza. Expectativa criada, finalmente vemos um primeiro plano dela, arfando e meio que sem jeito na sua beleza mediterrânea. Este tipo de construção é extremamente eficaz, pois a aprovação, a curiosidade de nossos pares faz atiçar nosso desejo. Quando estamos na rua e vemos várias pessoas olhar pra algo, pra alguém que está passando, invariavelmente nossa curiosidade nos faz olhar também.  Assim o espectador, estimulado pelo olhar dos outros personagens, vê aumentada sua curiosidade e desejo, o que torna a entrada desta personagem um evento.

Nossos primeiros três exemplos são feitos pra nos seduzir, e a forma como são feitos torna estas emoções ainda mais profundas. Mas, muitas vezes, a intenção do narrador é outra.

Como o Cinema tem uma relação muito imbricada com a tecnologia, alguns diretores aproveitam equipamentos novos pra criar efeitos novos. As câmeras da marca Arriflex foram uma revolução no seu tempo. Muito mais leves que as precedentes, foram as primeiras câmeras onde se podia ver no visor a exata imagem que ia ser filmada (o chamado visor reflex). Tomando partido destas facilidades, Delmer Daves em “The Dark Passage” apresenta a personagem de Humphrey Bogart em câmera subjetiva, levando longos e excitantes minutos pra revelar sua face. É um exemplar uso dramático da câmera subjetiva. E quando vemos pela primeira vez a personagem num plano objetivo, ela está totalmente subexposta. O que une todos estes planos é a voz, mesmo não vendo nunca a personagem nunca confundimos de quem se trata. É um uso da imagem e do som conjugados, eles não somente se completam como adicionam sentido. O prolongamento do tempo em que não vemos a personagem aumenta a emoção, e em absoluto esta câmera subjetiva impede a narrativa de avançar.

Muitos se questionam se existe amor à primeira vista. Pra Scottie, personagem de James Stewart em “Um Corpo Que Cai”, a resposta é sim. A primeira vez que ele vê Madeleine (Kim Novak), não nos deixa dúvidas. Ele passa a amá-la a partir de então. A apresentação dela é um primor. A câmera languidamente avança sobre ela, seu vestido verde salta em relação ao fundo vermelho. Mas, ao contrário de “Closer”, aqui não há troca de olhares, não há flerte. É puro amor platônico, pura obsessão de uma pessoa pela outra que nem sabe que esta existe.

Muitas pessoas pecam no cinema pela obviedade. É comum, no cinema brasileiro, talvez por influência da televisão, os diálogos serem extremamente didáticos, ou seja, explicam o que já estamos vendo na tela, o que os tornam ridículos, muitas vezes. Quando falamos em malícia, estamos dizendo que o que interessa está nas entrelinhas, no não dito. Em grandes cenas da história do Cinema o diálogo quase nada diz sobre o que interessa, é um mero acessório, escondendo o que de fato o espectador percebe. É algo mais natural, seria similar a quando conversamos numa paquera, pois tudo o que falamos quase não tem importância, o que vibra nossos corpos são as reações, os olhares fugidios, os aromas, os pequenos apartes que damos no discurso do outro sem querer, os olhares se cruzando. É por isto que falar ao telefone é totalmente diferente de uma conversa ao vivo, falta este contexto emocional que percebemos sem quase nos dar conta.

Muitas vezes, quando se fotografa um filme, nos deparamos com questões parecidas. Há uma tendência nas pessoas a considerar o público ingênuo. Desse modo, muitas vezes os diretores querem iluminar tudo, colocar todas as personagens em foco, e por aí vai. Na sua ingenuidade, não percebem que muitas vezes mostrar pouco ou não mostrar pode ser muito mais efetivo, muito mais emocionante e dramático. Uma das cenas mais interessantes que eu conheço deste ponto de vista foi fotografada lindamente por Vittorio Storaro, em “Apocalipse Now”. Durante a maior parte do filme, nós espectadores vamos sendo informados sobre o Capitão Kurtz e, assim como a personagem de Willard, nós vamos nos encantando por esta figura. No último quinto do filme finalmente se encontra Kurtz. Enfim, tudo aquilo que vimos até então era a preparação deste encontro. Pois bem, quando o Capitão Kurtz finalmente aparece só vemos ora parte de seu corpo, ora parte de sua cabeça. O efeito é poderoso e fugidio, ficamos ainda mais fascinados por sua figura e ainda mais intrigados por sua mente. A idéia é tão boa que todos dizem ser seu pai. Marlon Brando em sua biografia fala que foi dele a idéia, uns falam que Coppola usou deste expediente pra disfarçar a obesidade de Brando, e outros ainda acreditam que foi uma idéia do Storaro. Seja de quem for, é de um efeito dramático inesquecível, que é o que importa.

A Arte partilha de muita coisa com a sedução. Sedução não meramente sexual, mas num sentido mais amplo. Na relação que estabelece com o público, suas obras tentam nos seduzir, nos encantar. Assim como nos momentos marcantes de nossa vida, ela procura criar momentos que nos toquem, que nos façam transcender. E isto não está no óbvio, evidentemente. Está naquilo que muitas vezes não percebemos, que nos acontece e não sabemos contar, em coisas que atingem nosso íntimo, que nos rememorem situações ternas de nossa existência.

Narradores que utilizam bem de seus recursos formais fazem a diferença entre o inteligível e o memorável. É a diferença entre simplesmente conhecer uma pessoa ou ser apresentado a alguém que já nos interessa.

Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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