NO DECURSO DO TEMPO (1976), DE WIM WENDERS: análise das matrizes do road movie na sequência inicial do filme

Gustavo Aguiar *

“Tudo deve mudar. Até logo, R.” Este é o bilhete que o personagem Robert – algo como um pediatra/linguista, conforme ele mesmo se define – deixa quase ao final do filme, marcando a separação entre ele e seu amigo de estrada Bruno – que é uma espécie de projecionista itinerante em cinemas decadentes de pequenas cidades. O bilhete evidencia duas questões importantes: primeiro, para o filme, que se baseia muito na escrita, citada por Robert em algumas situações; assim como para o gênero road movie, no qual a mudança, a transformação são elementos definidores.

Quanto à questão da escrita, ela é citada durante o desenvolvimento da narrativa, mas o papel metafórico dela dentro da narrativa apenas é mostrado, de forma mais clara, durante a sequência – praticamente ao final do filme – em que Bruno e Robert passam a noite em uma casa abandonada. Neste local, eles abandonam os longos silêncios que perduraram por quase todo o filme e conversam de forma mais aberta e sincera – fato que acarreta um desentendimento entre ambos. O pediatra/linguista, então, explica sua relação com a escrita, dizendo que seu trabalho era analisar como crianças percebiam-na e como viam os símbolos que a constituíam: primeiramente, as figuras e letras são entendidas como uma aventura, para, depois, tornarem-se corriqueiras. Ele cita um garoto que entendia as linhas como rotas, pelas quais as letras moviam-se como se fossem uma motocicleta – toda essa história contada por Robert metaforiza o próprio universo dos road movies e do filme No Decurso do Tempo (1976).

Ainda há o fato de o bilhete de Robert dizer que “Tudo deve mudar”, sendo que o verbo mudar reitera a condição dos personagens em um filme de estrada, a condição de pessoas que vagam pela estrada em busca de uma identidade, em meio a uma jornada de descoberta e de formação. Ligando esses dois pontos, percebe-se que a aventura da estrada não pode ser eterna – e quem desvenda isso, primeiramente, é Robert. Bruno possui algo de romantizado, é uma espécie de cavaleiro solitário do western: assim como o personagem de John Wayne, em Rastros de Ódio (1956), que, na emblemática cena final do filme, deixa a casa de seus parentes e ruma sozinho numa caminhada em direção ao deserto, à estrada; ou também como o personagem Gaita – interpretado por Charles Bronson –, de Era Uma Vez no Oeste (1968), o qual, após cumprir seu desejo de vingança, também toma a estrada e cavalga solitário. Bruno, ao final do filme, mesmo sendo abandonado pelo parceiro de estrada, continuará seu trajeto pelas estradas da Alemanha, visitando cinemas de pequenas cidades. Sozinho, ele pega a estrada cantando a música King of the Road, o que reafirma a sua condição de ser pertencente à estrada – ele é um rei da estrada –, assim como de um cavaleiro solitário do western.

Robert percebe que a aventura estava chegando ao final, assim como terminava, também, a fantasia inicial das crianças diante dos símbolos e das letras. A estrada, antes entendida como um local de aventura, de distanciamento da civilização e de fuga da realidade, torna-se um elemento corriqueiro. O pediatra/linguista toma consciência disso e, finalmente, decide abandonar Bruno em sua jornada. Para este, a estrada já se tornou um lugar trivial – mesmo que ele tenha ou não consciência disso –, do qual ele não deseja sair, pois aquele é o ideal reduto em constante movimento da solidão que ele procura.

No Decurso do Tempo
A partida de Robert: a idealização da aventura na estrada chega ao final.
Considerando que o filme possui uma espécie de prólogo, que consiste no diálogo entre Bruno e um velho que antigamente trabalhava com cinema, a primeira sequência do filme – feita com o recurso da montagem paralela – foi selecionada para análise, já que possui bem exemplificados os elementos mais importantes do que constitui a matriz do road movie. A apresentação dos personagens já mostra elementos importantes sobre suas personalidades, que serão, no decorrer da narrativa, mais evidenciados e trabalhados.

A sequência começa com uma paisagem bastante aberta, mostrando o carro de Robert se locomovendo em alta velocidade e formando um rastro de poeira na estrada; aqui já estão presentes duas matrizes do gênero road movie: 1) paisagens abertas com poucas marcas de civilização e 2) imagem de um veículo em movimento levando pessoas.

Enquanto dirige, Robert segura uma fotografia com a fachada de uma casa. Considerando as posteriores revelações sobre os personagens na narrativa, sabendo que ele se separou da mulher – os motivos nunca são totalmente esclarecidos –, pode-se supor que aquela casa pertencesse a ele e a sua mulher. No entanto, ele rasga a foto, o que decreta o abandono de seu lar, a desvinculação com a sua família. Essa fuga da instituição familiar é bastante recorrente nos road movies americanos, que serviram de grande influência para formação de Wim Wenders como cineasta, conforme ele mesmo afirma, no texto Walter Salles, Wim Wenders e ‘road movies’ – uma conversa e uma aula, de Marcos Strecker. Em Bonnie & Clyde (1967), Bonnie foge de casa, abandonando o seu lar, para viver uma vida de aventuras e roubos com Clyde; citando um exemplo mais recente, em Na Natureza Selvagem (2007), o protagonista, após terminar os estudos na faculdade, distancia-se da família e abandona o seu lar, em direção a uma vida sem perspectivas na estrada.

Voltando à narrativa de No Decurso do Tempo, agora o caminhão de Bruno é mostrado e ele, então, começa a ser apresentado – ele já aparecera no epílogo, mas suas características ainda não haviam começado a ser delineadas. Ele está dentro do caminhão e, ao que parece, acabara de acordar.

Robert é mostrado novamente dirigindo e para em um posto de gasolina por poucos instantes. Aqui há outros dois elementos bastante característicos dos filmes de estrada: 1) o movimento de câmera no plano inicial desta cena é feito através de um travelling; 2) a presença dos postos de gasolina, que são os pit stops em narrativas de road movies – é neles em que os personagens eventualmente param, no decorrer de seus viagens. Há outro fator, ainda nessa cena, que delineia a personalidade de Robert; ele se comunica gestualmente com uma menina que brinca no posto, o que apresenta o fato de que, em seu trabalho, ele lida com crianças – o que, no início, o espectador ainda não sabe, mas que será informado mais adiante na narrativa.

Há um corte que mostra Bruno novamente em seu caminhão. Ele está com a porta do caminhão aberta e se percebe que ele está nu, tomando café; sai do caminhão, ainda nu, e se troca ao ar livre. Nesse momento, define-se a liberdade do personagem, a fuga às convenções de pudor da civilização – através deste ato, ele afirma não apenas a sua liberdade, mas também seu alheamento à realidade, à vida pautada por normas.

Paralelamente, Robert está em seu carro, ainda dirigindo em alta velocidade e mexendo no rádio, o que se estabelece como mais uma matriz do gênero: interação de mídias, que geralmente coloca o rádio no veículo. Durante o filme, o rádio não terá a função de noticiar nada que esteja acontecendo, já que Bruno sempre utilizará um tocador de vinil para escutar músicas em seu caminhão. Não é necessariamente um significado semelhante ao que teria o rádio, mas esse tocador apresenta a trilha sonora do filme, a qual tem grande importância, devido às conversas de Bruno sobre música estadunidense e também ao fato Wim Wenders afirmar, no texto supracitado de Marcos Strecker, o valor que o rock americano e o blues tiveram em sua formação. Ao invés de ser um instrumento de ligação dos protagonistas à realidade – papel que teria o rádio –, o tocador de vinil cristaliza o alheamento de ambos em relação a ela.

No Decurso do Tempo
Robert, à esquerda do quadro, e Bruno no volante de seu caminhão. O rádio, elemento característico do road movie, é substituído pelo tocador de vinil, que reitera o alheamento de Bruno em relação à realidade.
Logo em seguida, Robert é mostrado dentro do carro, dirigindo perigosamente, com os olhos fechados. É uma clara tentativa de suicídio, que acaba por não se consumar; como já dito anteriormente, ele e a mulher se separaram, o que coloca este acontecimento como provável causador da tentativa de suicídio do personagem. O próximo plano mostra Bruno se barbeando em seu caminhão; ele ouve um barulho alto, vira-se e vê um carro se aproximando em alta velocidade; uma grua faz um movimento que torna o plano próximo em um plano conjunto, sendo possível ver o caminhão de Bruno e o carro de Robert em quadro, simultaneamente. O carro de Robert cai na água, queda esta que pode metaforizar a depressão na qual a personagem está se afundando. No ano anterior, 1975, Michelangelo Antonioni havia dirigido Profissão: Repórter, road movie que conta a história de um jornalista em depressão, que toma a identidade de um morto e tenta se passar por ele. A depressão é, portanto, outro ponto presente em vários outros filmes do gênero, podendo-se citar, também, E Sua Mãe Também (2001), no qual a protagonista feminina decide embarcar em uma viagem com outros dois jovens, devido a uma doença que a fará morrer em pouco tempo e, também, por ela ter sido traída por seu marido.

Ao final da sequência, Robert sai do carro que afunda no lago, nada até a margem e se depara com Bruno, que ocasionalmente ri da situação do primeiro. Eles não trocam muitas palavras, mas Bruno diz para que ele tire as roupas molhadas, pois lhe emprestará outras secas. Os dois entram no caminhão, dando início ao que será um buddy movie, representando outra matriz do gênero: protagonistas em exílio, formando um casal durante, pelo menos, parte do percurso.

A última matriz representada nesta sequência inicial do filme é a que afirma que deve haver uma sequência narrativa composta por três momentos: pegar a estrada, estar na estrada e pegar a estrada novamente. Essa é uma matriz mais ampla, que se aplica mais ao filme como um todo; mas aqui já é visível que os dois personagens estão pegando a estrada juntos, no caminhão de Bruno, e rumando para uma jornada de descoberta e de formação.

Na sequência escolhida, as principais matrizes do gênero road movie são mostradas claramente, mesmo que de forma superficial – entretanto, no decorrer da narrativa, elas serão mais trabalhadas e desenvolvidas. Há ainda outros fatores que constituem elementos bastante importantes do road movie e que aparecerão posteriormente na narrativa: 1) o conflito geracional,  representado pelo momento em que Robert vai à cidade onde seu pai mora, para enfrentá-lo; entende-se, pelo discurso do personagem, que seu pai fora muito rígido e que maltratara sua mãe, fato este que pode se ligar às questões do domínio da sociedade patriarcal levantadas por Laura Mulvey, no seminal Prazer Visual e Cinema Narrativo; 2) a relação homem-máquina, já que vários veículos são utilizados pelos protagonistas, durante o percurso: automóvel, caminhão, motocicleta, trem e até um barco; e 3) a percepção das transformações pelas quais os protagonistas vão passando, dentro da lógica que rege a construção narrativa de um road movie.

* Gustavo Aguiar é graduando em Imagem e Som, na UFSCar, participa colaborativamente como editor da seção Panorama, da Revista Universitária do Audiovisual (RUA), e é bolsista de iniciação científica FAPESP com o projeto “Macbeth recriado: visões de Welles, Kurosawa, Polanski e Henríquez”.

Referências bibliográficas

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 435-453.

PAIVA, S. “Gêneses do gênero road movie”. In: XXXIIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2010. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-3403-1.pdf> Acesso em: 08 nov. 2011.

PAIVA, S. “Um road movie na rota do sertão-mar”. In: MACHADO Jr., R; SOARES, R.L.; ARAÚJO, L.C de (Orgs.). Estudos de cinema Socine. São Paulo: Annablume, 2007, p. 171-180.

STRECKER, Marcos. “Walter Salles, Wim Wenders e road movies – uma conversa e uma aula”. In: Na estrada – O cinema de Walter Salles. São Paulo: Publifolha, 2010, pp. 232-255.

Referências filmográficas

Bonnie and Clyde / Bonnie & Clyde (Arthur Penn, EUA, 1967, 112min, cor, som).

C’era una Volta il West / Era Uma Vez no Oeste (Sergio Leone, Itália/EUA, 1968, 165min, cor, som).

Im Lauf der Zeit / No Decurso do Tempo (Wim Wenders, Alemanha Ocidental, 1976, 175min, P&B, som).

Into the Wild / Na Natureza Selvagem (Sean Penn, EUA, 2007, 148min, cor, som).

Mar de Rosas (Ana Carolina, Brasil, 1977, 99min, cor, som).

Professione: Reporter / Profissão: Repórter (Michelangelo Antonioni, Itália/Espanha/França, 1975, 126min, cor, som).

The Searchers / Rastros de Ódio (John Ford, EUA, 1956, 119min, cor, som).

Y Tu Mamá También / E Sua Mãe Também (Alfonso Cuarón, México, 2001, 106min, cor, som).

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