Roberto Acioli de Oliveira*
“(…) O filme me ensinou que a ausência de amor é o pior sofrimento que alguém pode suportar”
Federico Fellini
(PETTIGREW, D. 2003: 39)
Casanova de Laforge
Giacomo Girolamo Casanova, nasceu em Veneza em 2 de abril de 1725, num local curiosamente chamado Rua da Comédia (Calle della Commedia). Filho de atores, ele estudou lei em Padua e evitou o sacerdócio, sua juventude transcorreu entre muitas viagens. Violinista e intelectual excêntrico, escritor panfletário, aventureiro, trapaceiro, freqüentador de bordéis, jogador, envolvido com cabala e ocultismo, Mason, dramaturgo e auto-proclamado Cavaleiro de Seingalt. Preso por heresia em 1756, fugiu da prisão em Veneza e trinta anos depois escreveu a história de sua vida. Em 1774 sua volta a Veneza foi autorizada, mas como espião para o governo. Pouco depois, sua obra foi banida, e ele deixou sua cidade para sempre, se tornando um andarilho (KEZICH, T. 2006: 318).
Aos sessenta anos, em setembro de 1785, Casanova se torna bibliotecário do conde Waldstein. Ignorado pela nobreza e ridicularizado pelos serviçais, ele se põe a trabalhar no livro que o imortalizará. Casanova morrerá ali, em 1798. Para compreender Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, 1976), explica Kezich, é necessário, antes de tudo, esquecer o personagem histórico. Por outro lado, é curioso descobrir que esse personagem talvez já seja uma ficção. Sua biografia seria publicada apenas em 1820, após modificações significativas introduzidas por Jean Laforge, que aprofundou a libertinagem (apenas uma pequena parte do original se referia à sedução de mulheres) e efetivamente modificou o espírito do livro. Fellini convidou Donald Sutherland para o papel de Casanova. O ator juntou e leu dezenas de livros sobre o personagem, mas Fellini sugeriu que ele jogasse tudo fora.
Casanova e Berlusconi
Amarcord (1973) foi um grande sucesso de público na Itália. Federico Fellini dizia que a razão disso foi uma profunda identificação com os personagens – os italianos se viram na tela. Embora muitos daqueles que gostaram do filme não tenham percebido, existe uma mensagem política subjacente marcando uma mudança de rumo na trajetória da obra de Fellini, que ali atacou a mentalidade infantil de seus compatriotas – referindo-se aos italianos, o cineasta procurou problematizar “um fascismo dentro de nós”. Em Casanova de Fellini, Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978) e Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980), o cineasta continuou misturando sua visão pessoal do cinema com temas sociais contemporâneos. No caso específico do filme sobre Casanova, são invenções de Fellini a giganta de Londres, a boneca mecânica do final, a traição amorosa do embaixador inglês e vários outros elementos que não existem nas Memórias do veneziano.
A partir desta contextualização, proposta por Peter Bondanella, Casanova de Fellini adquire uma “sutileza profunda” que muitos críticos da época não foram capazes de enxergar. Fellini rejeitou o óbvio, ao invés de um retrato do amante latino arquetípico, nos mostrou o Casanova como um homem mecânico, cuja sexualidade foi reduzida aos movimentos automáticos de uma máquina e para quem a parceira mais satisfatória é uma boneca mecânica. Deste ponto de vista fica fácil ver Casanova como uma continuação do argumento de Amarcord, já que Fellini via o veneziano do século XVIII como uma antecipação da personalidade fascista apresentada no outro filme – um eterno adolescente sem qualquer individualidade.
“(…) Enquanto o filme é ambientado no século dezoito, seu alvo é a glorificação do sexo nos dias de hoje. A incansável busca de Casanova por novas aventuras sexuais não produz nenhuma mudança em seu caráter, nenhum melhoramento em sua condição, e nenhum aumento de auto-compreensão. Seu fracasso final pra atingir o inatingível é prefigurado no carnaval da seqüência de abertura – um exemplo clássico do virtuosismo o felliniano – com suas multidões frenéticas, pródigos trajes históricos e cenários extravagantes: uma enorme cabeça de Vênus é içada momentaneamente da água, então subitamente se solta de seus cabos e mergulha nas águas turvas da laguna. Como esse símbolo enigmático, o amor e as mulheres são para sempre incompreensíveis para Casanova; e a figura da Vênus aparece novamente no belo final do filme, onde num sonho Casanova se imagina deslizando sobre uma lagoa congelada com sua boneca mecânica, uma arrepiante imagem de sexualidade mal direcionada e impotência na velhice. Como observou no set de filmagem o [assistente de direção de Fellini], ‘apenas um homem de meia-idade tornando-se cínico poderia fazer tal declaração. Como é triste. Como é honesto’” (BONDANELLA, P. 2008: 320-1)
Existe ainda outra questão para compreender o lugar de Casanova de Fellini na obra de Fellini: a competição da televisão. Contrariado com a recepção negativa à Cidade das Mulheres, Fellini empreendeu um passeio incógnito pelos cinemas de Roma. Foi então que o cineasta se deu conta de que “o público mudou de planeta, ele não existe mais” (QUINTANA, A. 2007: 71). De acordo com Àngel Quintana, esta constatação desolada permite compreender o lado um tanto testamentário e de resistência dos filmes desse último período de Fellini. Depois do sucesso de Amarcord, o público deixa de se interessar pela obra do cineasta, ainda que a estética felliniana barroca e excessiva se populariza. As mídias reduzem o autor à sua própria caricatura, ao passo que suas obras são objeto de incompreensão, de polemicas e até de indiferença.
Segundo Quintana, entre Casanova (1976) e A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), o cinema italiano atravessa uma grande crise criativa, cujo estopim foi a emergência dessa “neo-televisão”. O desconhecimento desse fato explica a incompreensão de críticos que, baseados apenas em estatísticas de bilheteria, depreciam obras de autores sem realizar a devida contextualização, gerando mais desinformação do que propriamente informação – a decadência, em termos de bilheteria, teria mais relação com a competição da televisão do que com desinteresse do público. A emergência do império da televisão de Silvio Berlusconi (que se desdobra até hoje em sua carreira na política) gerou a crise no cinema italiano (o público passou a assistir aos filmes em casa), diretamente responsável pela trajetória de cineastas italianos trabalhando no exterior – veja-se a obra de Michelangelo Antonioni e Bernardo Bertolucci. Fellini se entrincheirou nos estúdios da Cinecittà e tentou resistir à sociedade do espetáculo.
“(…) Subitamente, depois de Amarcord, concebido como a reconciliação definitiva entre o autor e o mundo onde crescera, Federico encontrou inspiração para se tornar um homem-contra-a-sociedade. Casanova de Fellini chama o super-macho mediterrâneo ao trabalho; Ensaio de Orquestra critica os elementos destrutivos da revolução social de 1968; A Cidade das Mulheres fecha contra o feminismo radical; E la Nave Va [1983] desafia uma sociedade que ignora os sinais de um apocalipse iminente. E assim, Ginger e Fred [1985], quando visto através dessas lentes, pode ser entendido como o filme contra a televisão de massa e Silvio Berlusconi (…)” (KEZICH, T. 2006: 367).
De fato, quando acompanhamos os últimos acontecimentos da vida política de Berlusconi, primeiro ministro italiano (escândalos sexuais envolvendo prostitutas e sua declaração recente sobre o país, dizendo que vai embora desse “país de m…”, um pouco como quem abandona o barco que ajudou a afundar), a questão do infantilismo dos italianos que perpassa Amarcord e Casanova de Fellini tornasse razoavelmente perceptível.
Um Parto Difícil
Apenas após ter assinado o contrato para dirigir o próximo filme é que Fellini se deu ao trabalho de começar a ler as Memórias de Casanova, o que deixou o cineasta com o pressentimento de ter dado um passo em falso (trata-se de uma coleção de seis volumes com mais de 2000 páginas). Consequentemente, Fellini confessou, até o ponto de vista de Casanova de Fellini surgiu apenas por necessidade e desespero, estranho ao livro, à Casanova, ao século XVIII e a tudo que havia sido escrito sobre o assunto até então. Sem idéias e oscilando entre a depressão e o tédio, o cineasta tira justamente daí uma direção para o filme. Casanova de Fellini conta a história de um homem que nunca nasceu, uma marionete fúnebre sem idéias próprias, sentimentos ou pontos de vista. Nas palavras do cineasta, um “italiano” aprisionado no ventre da mãe num filme abstrato e informal sobre a “não-vida” (FELLINI, F. 2004: 221-2; PETTIGREW, D. 2003: 38-9).
Fellini disse que o ator, Donald Sutherland, tinha um rosto (o nariz e o queixo eram falsos) perfeitamente adaptado à imagem de um italiano imaturo, juvenil, uma espécie de “Pinóquio no útero”. Essa era a imagem que o cineasta tinha de Casanova, um stronzo, um idiota. Além disso, os olhos azuis do ator expressavam muito bem as fantasias masturbatórias e estéreis de Casanova, a quem Fellini descreveu como um banco de esperma ambulante sofrendo de insônia crônica. Por falar em semelhanças, Fellini sugeriu que, às vezes, a boneca mecânica com quem Casanova dança na última cena do filme, lembrava sua esposa Giulietta Masina no final da década de 50 do século passado. Durante os três longos anos da produção, houve uma série de acidentes e contratempos, Fellini se convenceu então que deveria estar sendo perseguido pelo fantasma do verdadeiro Casanova por ter arruinado sua reputação.
Começar a ler as memórias de Giacomo Casanova somente depois de assinar o contrato para fazer um filme sobre ele não foi a única “proeza” de Fellini. Ele só assinou, nem chegou a colocar o título da futura obra. Dino De Laurentiis, o famoso produtor italiano, insistiu nesse ponto e a primeira coisa que Fellini pensou foi Il Casanova. Segundo Tullio Kezich, não era a primeira vez que o cineasta precipitava esse tipo de situação. Também não havia lido nada quando concordou em dirigir Toby Dammit (1968), baseado em Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe, o mesmo também sucedendo em relação ao texto de Petrônio (27-66 d.C.) quando assinou o contrato para Satirycon de Fellini (Satirycon – Fellini, 1969). A única coisa que Fellini sabia é que há quase vinte anos falava sobre fazer um filme sobre o aventureiro veneziano (KEZICH, T. 2006: 317-29).
Provisoriamente, o projeto chegou a se chamar Os Sonhos de Casanova (I Sogni di Casanova). Um ano depois, De Laurentiis pulou fora, segundo Kezich o motivo foi a escolha do protagonista. Os parceiros norte-americanos de De Laurentiis queriam uma celebridade, primeiro cogitaram o nome de Marlon Brando e Al Pacino, depois sugeriram Robert Redford. Fellini recusou, achava Redford um tipo físico muito pouco europeu. Além disso, o cineasta italiano não queria fazer o filme em inglês, o que definitivamente desagradou o grupo de De Laurentiis. Fellini acabou optando pelo canadense Sutherland, que conheceu durante as filmagens de 1900 (direção Bernardo Bertolucci, 1976), onde este atua como um fascista de Mussolini.
Por outro lado, Kezich esclarece que Sutherland concordou em trabalhar por um salário baixo, enquanto Redford pediu um milhão de dólares! – Chris Wiegand, por outro lado, afirmou que Fellini conheceu Sutherland durante as filmagens de Alex in Wonderland (direção Paul Mazursky, 1970), no qual o personagem é um cineasta que procura Fellini para pedir conselhos (WIEGAND, P. 2003: 151). A propósito da caracterização do personagem, um produtor norte-americano da Universal questionou Fellini, pois achava que o personagem de Casanova deveria ser alegre, e não um zumbi. O cineasta balbuciou alguma coisa sobre aquela história de Casanova ser um morto-vivo estúpido, ao que o produtor retrucou dizendo que tudo isso são apenas “masturbações mentais”! Joguinhos para intelectuais! (GRAZZINI, G. 1984: 164-5, 184-5)
No fundo, Fellini não sabia o que esperar de Sutherland. Enquanto isso, os prazos foram estourando e o cineasta perdeu mais um financiador. O próximo da fila exigiu e conseguiu que o filme fosse feito originalmente em inglês. As coisas andavam ruins, Fellini não escondia sua falta de interesse pelo projeto e a imprensa também não. Em função de todos esses problemas, fica fácil compreender porque Fellini chamava Casanova de versão ruim do homem italiano, um fascista vulgar! E o que é o fascismo, vocifera Fellini, senão a adolescência prolongada no mundo adulto? Casanova é um Pinóquio que se recusa a crescer. Depois disso, ou antes, o cineasta rasgou as 2000 mil páginas do livro de Casanova em 1000 pedaços. Na época de seu lançamento, Casanova de Fellini só fez sucesso no Japão.
Casanova, padroeiro dos italianos?
“A recusa de Fellini em reconhecer a sexualidade contemporânea como uma força libertadora é uma resposta direta à radical mudança de costumes sexuais naquela década”
Peter Bondanella (2008: 321)
Em 1975, no documentário E il Casanova di Fellini? (direção de Franco Angelucci e Liliane Betti), Fellini citou Jorge Luis Borges (“cada escritor cria seus próprios precursores”) para sugerir que os italianos se achavam grandes sedutores e transformaram Casanova em seu precursor. Sob a sombra diária da frustração sexual, disparou Fellini, era praticamente seu destino que os italianos criassem a lenda de um homem que conquista todo mundo! Fellini continuou a carga afirmando que, depois de séculos de ensinamentos xenófobos e misóginos por parte da Igreja Católica, o homem latino fabricou um anseio tão paralisante pelas mulheres que ele permaneceu um eterno adolescente, alguém que não quer crescer. No final de sua preleção antropológica Fellini conclui: “Eu odeio Casanova”.
Aqueles que tinham os escritos de Casanova em alta conta questionaram o ponto de vista felliniano. Um deles, Piero Chiara, chegou a sugerir que, pelo menos em relação à Casanova, Fellini seria o caso clássico de negar aquilo que ama – ou aquilo com o que se identifica muito. O “Casanova de Fellini”, sugeriu Chiara, guarda dentro de si muito do cineasta. Alguém pode se lembrar que o protagonista de Fellini 8 ½ sempre foi relacionado como alter-ego de Fellini. Contudo, Kezich afirma que apenas algum tempo depois o cineasta admitiu reconhecer elementos autobiográficos no hesitante Guido Anselmi – alguém que mistura mentiras e mulheres como Casanova. No caso deste personagem, Fellini levaria um longo tempo para admitir uma “auto-paródia expressionista”.
Desfilando por outros possíveis alter-egos de Fellini, Kezich sugere ainda que o tom pessimista da seqüência final de A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960) retorna em Casanova de Fellini. Mais especificamente na cena do primeiro na qual, depois da orgia, o bando confuso vai para a praia e acompanha a retirada de um monstro marinho das redes dos pescadores. Em Casanova, Fellini dá um zoom na cabeça de um monstro – a grande cabeça da deusa Vênus sendo içada da lagoa no começo do filme já seria uma alusão. Casanova flutua na desintegração, como Marcello. Muitos sempre perguntavam quando o cineasta faria outro A Doce Vida, e Fellini se queixou de que ninguém percebeu que ele o fez – Casanova de Fellini é A Doce Vida do século XVIII (CHANDLER, C. 1995: 190). Casanova também seria um vitellone (mas num sentido negativo, referência a Os Boas-Vidas, I Vitelloni, 1953) e um Zampanò (A Estrada da Vida, é a referência aqui, La Strada, 1954), um cigano que usa as mulheres como objetos.
O escritor belga Georges Simenon (1903-1989), que participou do júri em Cannes e lutou para que A Doce Vida ganhasse o prêmio, gostou muito de Casanova de Fellini. O escritor surpreenderia Fellini ao afirmar já ter feito sexo com dez mil mulheres (sendo oito mil prostitutas), tendo começado aos treze anos e meio de idade – eis porque Katzone de Cidade das Mulheres incorpora Simenon. A experiência mostra que, de fato, para muitos e muitos homens, dizer que fez parece ser mais importante do que fazer. Referindo-se a si mesmo, Fellini acaba por definir o dilema cotidiano de Casanova: “Fama e lenda não são a mesma coisa. A fama torna mais fácil trabalhar, a lenda torna isso impossível” (Idem: 189).
Os Homens de Fellini
No princípio de Casanova de Fellini, as águas do Grande Canal transformam-se no cenário onírico de uma Veneza imaginária de onde surge a cabeça da Vênus. De acordo com Quintana, a cena aponta para duas questões chave. Por um lado, Fellini se apóia sobre o carnavalesco para conceber uma imagem grandiosa e simbólica da feminilidade, apontando como a exploração do mito do eterno sedutor pode se estabelecer sobre uma construção visionária da mulher, que será desenvolvida novamente nos labirintos oníricos de Cidade das Mulheres. Por outro lado, Quintana acredita que a geografia de Veneza está claramente em paralelo com a idéia das cidades invisíveis, desenvolvida pelo escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985) (QUINTANA, A. 2007: 72-4). Em Cidades Invisíveis (1972) Calvino descreve cinqüenta e cinco cidades imaginárias com nomes femininos. Um verdadeiro mundo mental, onde nenhuma delas tem ligações com a realidade, o espaço e o tempo são totalmente abstratos. Na Veneza de Fellini a famosa ponte Rialto é justaposta à Praça São Marcos e as águas são evocadas por um mar de plástico, criando um universo espectral, oposto ao mundo empírico.
Reencontraremos o Casanova de Fellini reencarnado no senhor Katzone, o conquistador de milhares de mulheres em Cidade das Mulheres, super macho em extinção cuja casa possui um labirinto repleto de lembranças sonoras de suas conquistas. Katzone receberá a visita de Snaporaz (personagem muito próximo do cineasta egoísta de Fellini 8 ½, Otto e Mezzo, 1963), que se deleita no labirinto sonoro de seu anfitrião. Nesse sentido, argumenta Quintana, Casanova de Fellini é o inverso de Cidade das Mulheres – aqui o cineasta italiano conta a história de um pesadelo vivido por seu duplo (Snaporaz) e observa como, após a morte do homem, emerge outra realidade, cujo futuro é mulher. Assim como a mulher ideal de Casanova é uma boneca, acompanhamos Snaporaz perdido nos labirintos de seu próprio eu, afrontado justamente por aquela que considerava a mulher ideal – ele sobe num balão com o formato dela, em seguida, ela, em carne e osso fora do balão, derruba o avoado com uma metralhadora. Casanova e Snaporaz só encontram a parceira ideal em sonho. O primeiro só consegue com a condição de estar morto, o segundo a perde no próprio sonho.
“Um pouco como em Casanova de Fellini, depois de se perder na selva feminina o macho termina preso na armadilha de uma figura inanimada, [um balão de ar quente no formato de uma grande boneca voadora]. Casanova de Fellini e Cidade das Mulheres são duas obras realmente alucinadas, onde o cineasta coloca em cena múltiplas imagens suscitadas pela mulher em seu inconsciente. Novas explorações da feminilidade, os dois filmes parecem levar ao extremo sua capacidade visionária” (Idem: 75)
E finalmente, uma seqüência cortada na edição final apresentava uma aventura homossexual de Casanova. Trata-se de um episódio que consta das Memórias de Casanova e conta sobre uma viagem que fez à Turquia, o único conto onde ele confessa uma “perturbação homossexual” (palavras de Fellini). “(…) Ele fica encantado, fascinado pelo príncipe que o hospeda, que, por sua vez, parece que se apaixona por Casanova”. Mesmo aí Fellini adicionou uma seqüência ficcional, onde Casanova suborna alguns guardas para que o deixem espiar o harém. Os guardas são punidos, mas Casanova é convidado pelo príncipe para navegar por um pequeno canal adjacente, onde consumaram o ato sexual (**). Autobiográfico ou não, é fato que Fellini sonhou com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini lá por fevereiro de 1961:
“Eu estava na cama com Pasolini, no pequeno quarto em Rimini onde eu estudava quando era garoto (trinta anos atrás). Dormimos juntos toda a noite como dois irmãozinhos, ou talvez como marido e mulher, porque agora que ele está levantando, vestindo camiseta e cueca, dirigindo-se ao banheiro. Eu percebo que estou olhando para ele com fortes sentimentos de terna afeição” (BOARINI, V; KEZICH, T. 2008: 474)
As Mulheres de Fellini
“Ela é uma bêbada, uma glutona! Quem sabe o quê ela nos doará, depois! Miuna prostituta, nádegas defecantes, velha mulher subterrânea, velha mulher fedorenta ou grande Miuna, flertadora e desonesta, a quem somos forçados a aceitar como esposa, mãe, sogra degenerada, irmã e avó”
Recitado enquanto sobe do fundo da lagoa
a cabeça Vênus, símbolo da feminilidade
Logo após a visão do carnaval de Veneza no início do filme (onde a enorme cabeça da Vênus a meio caminho para fora d’água se assemelha a uma das gôndolas que a circundam e caracterizam a cidade), Casanova segue para o local do encontro sexual com uma freira – ato assistido furtivamente pelo embaixador francês que a acompanha. A seguir, Casanova é preso pela Inquisição, mas foge em seguida e vai pulando de um encontro sexual para outro. Anamaria, uma bordadeira anêmica, é curada depois de uma noite de sexo com ele. Madame d’Urfé espera tornar-se imortal ao engravidar de Casanova. Chega a se apaixonar por Henriette, mas ela o abandonará no meio da noite (ele chegou a pensar em suicídio!).
Assistimos uma competição onde ele sai vencedor depois de apostar quem é capaz de fazer mais atos sexuais durante uma hora. Numa seqüência bastante carnavalizada, transa com uma atriz corcunda que parece satisfazê-lo bastante, como demonstra a sombra gigante do pássaro mecânico que carrega consigo e denota seu orgasmo. Depois de um encontro sem maiores conseqüências com sua mãe, no final do filme é de se esperar que Casanova só se encontre em Rosalba, a boneca mecânica, imagem em espelho daquele amante latino em crise.
Todas as mulheres de Casanova parecem bastante disponíveis à fama do amante latino veneziano, e Fellini dá a todas o que procuram. Como não poderia deixar de ser, reencontramos em Casanova de Fellini algumas das obsessões do cineasta. Poderíamos ter reencontrado os grandes seios de Anita Ekberg em A Doce Vida e As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottor Antonio, episódio de Boccaccio ’70, 1962), não fosse uma cena cortada de Casanova (na seqüência com a anêmica Anamaria e da mulher que queria ser chicoteada) onde uma mulher de seios enormes (que cresceram milagrosamente) se oferece a Casanova. Mas é difícil decidir onde está o auge da obsessão mamária de Fellini, na gigantesca Ekberg de Boccaccio ’70 (ela coloca o minúsculo e puritano doutor Antônio preso em seu decote), ou na mulher da tabacaria em Amarcord, que quase sufoca Titta em seus seios fartos.
O corpo feminino nu é recorrente e marcante em Fellini, mesmo que seja indiretamente. O tobogã de Cidade das Mulheres é, na verdade, uma grande vagina; em A Voz da Lua, quando um homem se refere ao astro celeste que baixou na terra como “culo di pietra!”, certamente ele não está se referindo apenas à influência daquele astro na agricultura (LEGRAND, G. 1991: 158); ao afundar novamente, a grande cabeça da Vênus-gôndola em Casanova de Fellini, seria uma metáfora da condição feminina? Bem, Fellini insistiu que não fazia um cinema de “mensagens”. O que não quer dizer, esclareceu o cineasta, que seus filmes não carreguem mensagens ou que seus personagens, não lhe enviem algumas. Aprendi com Casanova, disse Fellini, que a falta de amor é a suprema dor (CHANDLER, C. 1995: 190). Uma afirmação curiosamente “feminina” para um cineasta cujos personagens femininos são, quase sempre, caricaturas e/ou máquinas de sexo – é claro, sempre podemos nos lembrar da pureza chaplinesca de Gelsomina, em A Estrada da Vida (La Strada, 1954).
Fellini se interessava pela psicanálise e anotava seus sonhos (utilizando inclusive seus dotes de desenhista de quadrinhos), o que fica evidente com a importância que deu ao seu sonho com Pasolini. O cineasta preferia falar em termos de arquétipos junguianos, deixando Freud de lado. Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) é um filme muito impregnado por esse interesse. Dois exemplos dignos de nota são a cena em que Guido Anselmi (reconhecido como alter–ego do cineasta) delira um encontro onde sua amante, confraterniza com sua esposa e a antológica seqüência do harém dele – onde a esposa é a única que faz o trabalho pesado, solícita faxineira e cozinheira. Dois momentos de fetiche machista delirante. Méjean nos sugere uma interpretação de outra natureza para a confraternização na primeira cena – uma interpretação, digamos, “feminina”. Elas sabem que irão perder esse homem, uma porque é sua esposa, a outra porque gostaria de ser (MÉJEAN, J-M. 1997: 20). Na vida real, Fellini se dizia incondicionalmente apaixonado por sua esposa, Giulietta Masina.
Enfim, o campo era fértil o suficiente para que Fellini articulasse as questões sobre a sexualidade à função da mulher em suas fantasias. Em Cidade das Mulheres, na cena final o protagonista parece aliviado por concluir que tudo que presenciou no congresso feminista não passou de um sonho ruim na poltrona do trem. Mas o próprio Fellini admitiu: “Nada é mais honesto do que um sonho” (BONDANELLA, P. 2002: 96).
Kezich afirmou que Fellini adorava “atuar” como um grande sedutor. Em relação à Anita Ekberg, durante as filmagens de A Doce Vida, muitos queriam saber se ele tinha um caso com ela. Depois de convencer a um amigo de que ele teve um caso, pediu que este espalhasse a informação. No Brasil, é bem verdade, existe até uma piada sobre esse tema. (www.simpleeverydaymom.com) Uma bela e famosa atriz flerta com um homem, mas quando se dirigiam para o motel ela pede que ele guarde segredo. Então o homem desistiu e foi embora!
Kezich cita o comentário de Indro Montanelli em suas memórias. Ele escreveu que quando Ekberg foi à Roma para filmar A Doce Vida, logo convidou Fellini a seu quarto de hotel, recebendo-o nua. Contudo, pego de surpresa, o cineasta entrou em pânico, deu uma desculpa e sumiu. Nada disso é verdade, apesar da dúvida implícita a respeito de sua potência sexual, não é impossível, sugere Kezich, que a fábula tenha sido inventada pelo próprio Fellini (KEZICH, T. 2006: 164).
A Coisa da Reputação…
Aquele que Sabe Viver (Il Sorpasso, direção Dino Risi, 1962) e Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebelleze, 1975) são exemplos deste tema no cinema italiano da época. No primeiro caso, um playboy de meia idade contracena com um jovem tímido. Muito ligado em seu carro, um símbolo da inserção da Itália na sociedade de consumo do pós-guerra, o playboy fala muito, mas nunca o vemos realmente conquistar mulher nenhuma. No segundo caso, Pasqualino é o típico machão napolitano que dá em cima de todas as mulheres, mas mantém as mulheres de sua família sob estrita vigilância. Chegada a guerra, sua única chance de sobrevivência no campo de concentração nazista é seduzir a sanguinária alemã que comanda o inferno. No final, Pasqualino será subjugado pela mulher gigante, insaciável e dominadora, numa inversão total de papéis sociais.
Jean-Max Méjean considerou Casanova de Fellini um filme admirável, mas de uma tristeza infinita e de um completo desespero (MÉJEAN, J-M. 1997: 213-4). O erotismo na obra de Fellini é curiosamente pudico, mesmo que seus filmes sejam repletos de frases obscenas, ruídos intempestivos e seios generosos. A visão de Casanova é perturbadora e embaraçosa, no limite da pornografia, mas sem chegar a ela. A presença de um passarinho metálico para simbolizar, quando ela chega, a ereção do membro viril de Casanova, é muito mais significativa do que teria sido a visão explícita – em italiano, como em português, a palavra “passarinho” também designa o membro sexual masculino, tendo já sido utilizado um passarinho em publicidade de cuecas no Brasil.
De fato, poderíamos traçar um paralelo com outro filme que aborda o contexto “sócio-patológico” do machismo latino. Marcello Mastroianni, um dos arquétipos do amante latino nas telas de cinema, é o siciliano Antonio Magnano em O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960). Cobiçado pelas mulheres, seu problema é que ele é impotente quando tenta transar com a mulher que ama – ele só funciona sexualmente com prostitutas. A família o “ajuda” arranjando seu casamento com a empregada da casa que Edoardo, seu melhor amigo, engravidou – ela será exposta para a cidade no balcão da casa. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Vitaliano Brancati (1907-1954) publicado em 1949, que articula o gallismo, ou o complexo de Don Juan característico dos homens do sul da Itália, a uma mentalidade fascista.
Brancati sugere assim o fracasso do fascismo de Mussolini, ele próprio um homem que se vangloriava de seu poder sobre as mulheres que, durante seus discursos, deixavam suas calcinhas pelas calçadas. Para que não fosse visto como a origem da “doença” do filho, seu pai (que se vangloriava de haver sido eleito pelos fascistas o federale da cidade de Catania porque transou com nove mulheres) vai ao bordel e tem relações sexuais até morrer. Porém essa demonstração de machismo vai por água abaixo quando sua esposa confessa à infeliz esposa de Antônio que o pai dele falhou por dois anos após o casamento. Méjean especula se Fellini não estava mandando uma mensagem ao pai com Casanova. Não o seu próprio, mas à figura paterna no plano simbólico: erradicar, castrar o pai ideal italiano.
Casanova de Simenon
O Casanova felliniano encontra seu prolongamento no excêntrico senhor Katzone, o Don Juan de Cidade das Mulheres. Personagem inspirado no escritor Georges Simenon (QUINTANA, A. 2007: 75)
Fã de Casanova e Fellini, já sabemos das dez mil mulheres de Simenon, portanto era previsível que considerasse Casanova de Fellini uma obra prima e que chorou ao ver o filme. Foi após o lançamento na França em 1977, quando se publicou uma conversa entre os dois amigos (FELLINI, F; SIMENON, G. 1997: 88-96). O cineasta disse que sua primeira conclusão quando começou a (tentar) ler as memórias (que chamou de “lista telefônica”) de Casanova foi que não se tratava de um artista – “ele nunca fala da natureza, das crianças, dos cachorros, nada” (idem: 89). De acordo com o próprio Fellini, trata-se de um filme sobre o vazio existencial, de alguém que representa o tempo todo e que se esqueceu de viver realmente. No final, marionete de si mesmo, Casanova contempla seu universo feminino. Tentando fazer Simenon entender, Fellini confessaria:
“Foi então, evidentemente, que compreendi o sentido da profunda aversão que senti em relação à Casanova. Esse filme que recusei tanto iria marcar uma fronteira não em minha carreira, mas em minha vida. Depois desse filme, deveria morrer enfim a parte de mim versátil e mutante, a parte de mim indecisa, eternamente tentada pelos compromissos, a parte de mim que não quer se tornar adulta. O filme, para mim, é bem isso, ‘a passagem da linha’, o escorregão na direção do último pagamento da vida. Eu tenho 57 anos, os sessenta estão chegando. Inconscientemente, talvez, eu coloquei nesse filme todas essas ansiedades, esse medo que me sinto incapaz de afrontar. O filme, talvez, se alimentou de meu medo. Eu não me expliquei bem…” (Idem: 90)
Na opinião de Simenon, com Casanova Fellini fez uma verdadeira psicanálise da humanidade. Comparando o cineasta a Baudelaire, van Gogh e Edgar Allan Poe, Simenon chama Fellini de poeta maldito. Ou seja, explicou o escritor, todos aqueles “malditos” que trabalham mais com seu subconsciente do que com a consciência. Simenon disse também que Casanova de Fellini evoca Goya, o pintor espanhol. Como ele, o cineasta “pinta” com o coração. Como nos trabalhos de Goya, as festas em Veneza, os jantares e as festas do filme apontam para a morte.
Simenon notou outra particularidade no Casanova construído por Fellini, ele não tira as calças na hora do sexo. De fato, Fellini disse que os produtores norte-americanos ficaram chocados com isso! “O filme não é erótico, diziam eles, não é sexy…”. Em relação às calças de Casanova, Fellini contou uma outra história mais interessante. Certa vez, em Roma, um casal se aproximou dele e o cumprimentou pelo novo filme. Então, o homem afastou um pouco a mulher e, intrigado com a grande distância que Casanova parecia se afastar durante o ato sexual, perguntou a Fellini quais eram as verdadeiras medidas do membro de Casanova. O cineasta respondeu que tudo aquilo é encenação, simulação! Fellini disse que o rosto do homem se iluminou repentinamente e ele repetiu a resposta enfaticamente para a mulher.
Outra coisa que chamou atenção de Simenon foi o estranho sutiã que Casanova usa. Fellini esclareceu que não se trata de nenhuma peça de roupa do século XVIII, apenas algo que o próprio cineasta usou durante sua infância (e ainda na época da entrevista, confessou aos risos). A intenção, justamente, era acentuar o aspecto infantil de Casanova. Fellini disse que durante as filmagens da cena final quando Casanova dança com a boneca mecânica, todos os funcionários pareciam emocionados. O cineasta acredita que a cena materializou um desejo infantil deles em possuir uma mulher como aquela. Contudo, ao mesmo tempo, a cena aflorava neles certo remorso tipicamente italiano. O remorso de considerar a mulher como uma coisa morta, uma coisa para fazer amor ou para pendurar na lareira.
Em 1984, ao encerrar uma série de entrevistas com Giovanni Grazzini, e sem saber o que dizer sobre o que seria seu próximo filme, Fellini confessa que gostaria de contentar aquelas pessoas, na maior parte mulheres, que se aproximam timidamente dele depois de cada filme lançado e perguntam esperançosas: “Mas por que você nunca faz uma bela história de amor?”
* Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.
** Fellini, a História de Um Mito (Fellini dice…). Paris Filmes, 2004. DVD, Documentário.
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