Bianca Costa e Roberto Dornelles *
1. Introdução
Este texto elabora uma tentativa de caminho metodológico para compreender os documentários de Eduardo Coutinho em perspectiva comunicacional. A proposta deste artigo é lançar os documentários em um terreno não muito observado pelos estudos mais tradicionais de cinema, como também dos estudos de comunicação por meio do cinema.
Há uma singularidade bastante particular nos filmes de Eduardo Coutinho. Ele inaugurou uma processualidade em seus filmes, que o diferencia de outros cineastas. A partir da análise das ações realizadas pelo diretor nas suas produções, é possível apontar que essa processualidade é indiciária[1].
A ação da escuta aparece no momento em que o diretor não tenta “enquadrar” os seus personagens em uma regulação fechada e apriorística. Ou seja, a compreensão do mundo sob o ponto de vista do personagem é um aspecto fundamental no cinema de Eduardo Coutinho. O próprio autor revela a preocupação em fazer de seu cinema um espaço onde as condições para que o outro revele as particularidades da sua realidade sejam possíveis.
Eu quero saber o que eles pensam do lixão e não o que nós pensamos. Todo o cinema do pessoal de documentário mundial é feito um pouco na perspectiva do intelectual que sabe. O público é que vai pensar sobre isso e achar até que ponto ele dá conta. […] O que eu penso não vale nada […] Eu tento entender o que pensam os outros a partir de sua vida. Porque não há outra forma de entender o outro se não a partir do que o outro vê. Então é esse esforço que me move, fora disso não tem interesse nenhum fazer filme. […] É inútil dizer, enquanto cineasta, que o lixo é ruim. O filme começa com lixo sem gente e termina gente e vai pra lixo. A única intenção era dizer como eles vivem esse mundo[2].
Essa singularidade se deve, então, ao acionamento dessa processualidade indiciária, que é materializada pela escuta. Essa técnica de escuta aparece já no primeiro contato de Coutinho com o entrevistado. As perguntas direcionadas aos entrevistados, entretanto, são comuns e do tipo: “conta isso para mim, porquê, explica melhor”. Como o material empírico de Coutinho são as pessoas e o objetivo é apreender a história delas, o diretor faz perguntas de “fácil assimilação”, que possibilitam o desenrolar dessas histórias. O indiciário como processualidade para novas descobertas pressupõe etapas de pesquisa, sendo as perguntas uma delas. Para determinados objetos, essa etapa pode ser dispensável. No caso de Coutinho, essas perguntas são essenciais e têm a capacidade de gerar indícios, a fim de descobrir/desvelar como se constituem as histórias dos entrevistados. Primeiro, obtém-se o indício, para depois prosseguir na investigação da história.
Percebe-se também que qualquer tipo de código fechado do processo fílmico é aberto ou vai perdendo sua ênfase, facilitando, assim, a interação, deixando-a mais flexível e possível. Coutinho também utiliza um processo de baixo controle e, por isso, o imprevisível tende a ocorrer com mais “facilidade”. Ao não se fechar em códigos, reabre/abre um espaço onde os participantes (os entrevistados) podem dar os seus lances e também apresentarem suas táticas. Isso faz parte da técnica de escuta do diretor, que é tentativa, no sentido de que não há garantias de que o entrevistado participe da interação da forma desejada. O processo, enquanto tentativo, é caracterizado por José Luiz Braga (2010, p.424) como próprio da comunicação. Com isso, o autor sugere que aquilo que ocorre de modo canhestro também é comunicação e gera conhecimento, pois comunicação é toda troca, articulação, passagem entre grupos, indivíduos, setores sociais.
O método indiciário na observação do corpus empírico
Ao caracterizar a ação de Coutinho como indiciária, enfatizamos que ele procura, por meio dos indícios deixados pelos personagens, explicitar e mostrar a realidade. Nesse sentido, é necessário conceituar o método indiciário nas ciências sociais.
A defesa da importância do método indiciário para a observação de fenômenos empíricos se explica pela forma como foi utilizado em diversas ciências e de sua capacidade de gerar novas descobertas. Nesse sentido, é importante descrever, em algumas linhas, como o método vem sendo utilizado. Ele foi criado pelo médico italiano Giovanni Morelli, que, com o pseudônimo de Ivan Lermolieff, escreveu, entre 1874 e 1876, uma série de artigos sobre a pintura italiana. Nos textos, Morelli propunha a utilização de um novo método para a atribuição de autoria dos quadros antigos.
Carlo Ginzburg, no texto Sinais: Raízes de um paradigma indiciário, conta que Morelli criou o novo método, pois acreditava que os museus estavam cheios de quadros atribuídos de maneira incorreta. Como muitos quadros não estavam assinados pelos autores, devolver as obras para os autores verdadeiros seria praticamente impossível. Por isso, era necessária a implantação de um método eficaz, para distinguir os originais das cópias.
Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros: os olhos erguidos para o céu dos personagens de Perugino, o sorriso dos de Leonardo e assim por diante. Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma da orelha própria de Botticelli, a de Cosmè Tura: traços presentes nos originais, mas não nas cópias. (GINZBURG, 1989, p. 144.)
Os livros com os artigos de Morelli sobre o método indiciário eram ilustrados com dedos e orelhas, minúcias que podiam ser comparadas à investigação de um detetive “que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria.” (GINZURB, 1989, p.145). Na literatura, o método indiciário é utilizado pelo detetive Sherlock Holmes, que foi criado pelo autor e médico britânico Arthur Conan Doyle. Conforme o britânico, Holmes viveu em Londres durante os anos 1881 a 1903 – período posterior à publicação dos principais livros de Morelli, em que detalhava o método. Muito provavelmente, Doyle teve acesso aos livros de Morelli para a criação de seu personagem mais famoso.
Wind faz um paralelo entre Morelli e Freud. Conforme Wind, citado por Ginzburg, o método de Morelli se aproximaria da psicologia moderna. “Os nossos pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós.” (WIND apud GINZBURG, 1989, p.146). Conforme Ginzburg, a expressão “psicologia moderna”, utilizada por Wind, poderia ser substituída pelo nome de Freud. A ligação das manifestações de Morelli com Freud fez os estudiosos relerem uma passagem de um livro de Freud, “O Moisés de Michelangelo”. Em um dos trechos destacados por Ginzburg, Freud faz referência ao método utilizado por um russo chamado Ivan Lermolieff, talvez não sabendo de que se tratava de Morelli, diz Freud:
[…] Creio que seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou “refugos” da nossa observação. (FREUD apud GINZBURG, 1989, p. 147.)
Ginzburg afirma que provavelmente Freud teve influência do método de Morelli para a descoberta da psicanálise e que suas declarações sobre o método indiciário garantem a “Morelli um lugar especial na história da formação da psicanálise” (GINZBURG, 1989, p. 148). Conforme Ginzburg, para Freud o método de Morelli possibilitava a interpretação centrada nos resíduos.
[…] É o próprio Freud a indicá-lo: a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, “baixos”, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano. (GINZBURG, 1989, p. 149 e 150).
Nesse sentido, Ginzburg faz um paralelo de como o método foi utilizado e o relaciona com os signos pictóricos de Morelli, com os sintomas e as pistas de Freud e com os indícios de Holmes. Em todos os três casos, “pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível.” (GINZBURG, 1989, p. 150).
Todas essas “pistas” nos parecem ser seguidas por Eduardo Coutinho em seus filmes. A realidade mais profunda, da qual Ginzburg nos fala, parece estar “desmascarada” pelos filmes em análise. No próprio caso do personagem Coutinho, as perguntas que dirige aos seus entrevistados os fazem falar de uma forma que revela muito do caráter de cada um. Segundo Ginzburg, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la.” (GINZBURG 1989, p. 177).
Estrutura e Movimentos: tentativa de consolidar o indiciário como percurso metodológico
Neste item, procuramos articular a proposta do método indiciário como possibilidade de novas descobertas e como tática de aproximação com o empírico. O método indiciário significa na prática, em um primeiro momento, levantar estrutura e movimentos do conjunto que será analisado. Essa tática foi elaborada por José Luiz Braga em pesquisa empírica de análise de cem artigos publicados e debatidos na COMPÓS e pode ser conferida no artigo “Análise Performativa: cem casos de pesquisa empírica” publicado no Livro da COMPÓS em 2010. Conforme Braga,
Com base em levantamento dos elementos que compõem o texto, e apoiados na observação dos parâmetros anteriores, podemos chegar a uma descrição organizada das estruturas que dão forma ao “argumento” do artigo. Esta estrutura se constitui, em termos performativos, através de uma série de “movimentos”, como em um jogo de xadrez. Parte-se de um determinado ponto; constroem-se bases de sustentação; são tomadas decisões de encaminhamento; planeja-se o modo de observar; observa-se; são feitas referências complementares; tiram-se inferências, fazem-se deduções; elaboram-se reflexões para articular fragmentos; percebem-se relações entre “objetos” e entre conceitos; derivam-se conseqüências. Todos estes “movimentos”, como se percebe, são atividades construtivas que tecem o artigo – que se ordenam como uma oferta ao leitor, conduzindo tentativamente sua leitura, sua percepção, seu pensamento. O resultado final é o que aparece no artigo – mais exatamente, é o que constitui o artigo. Perceber a estrutura e os movimentos corresponde, em síntese, a tentar recuperar as “regras do jogo” que se manifestam naquela estratégia específica que é o texto. (BRAGA, 2010, p. 425)
Nesse sentido, nosso esforço inicial é identificar as regras do jogo de cada documentário, ou seja, identificar o que cada filme faz. É neste âmbito em que trabalhamos com estrutura e movimentos. Além de perceber as regras do jogo de cada filme, identificar estrutura e movimentos nos possibilita uma aproximação mais perceptiva sobre o objeto.
Para chegar a este trabalho de levantamento[3], o primeiro passo foi dividir os filmes em cenas. Durante este processo, descrevemos o que cada cena e cada personagem diziam/faziam e também procurávamos identificar o que o diretor dizia/fazia. Esta descrição detalhada nos permitiu identificar que cada cena se constituía enquanto um movimento diferente no filme e que este movimento dava sentido à cena. Depois deste levantamento, cada “cena-a-cena” foi relido em um processo de pequenos agrupamentos, que pareciam mais prospectivos para delinear o eixo do filme, ou seja, agrupamos os principais indícios deixados pela análise detalhada do cena-a-cena em pequenas categorias. (https://tokyosmyrna.com/) Essas pequenas categorias apareceram em mais de um filme e possibilitaram enxergar o objetivo de cada filme e identificar o que cada filme faz nos seus movimentos. Dessa forma, observamos que cada movimento tinha um motivo e um significado que explicitavam o eixo do filme. Este caminho metodológico possibilitou realizar algumas pequenas interpretações sobre os filmes e o seu modo de funcionamento.
Para ilustrar o caminho percorrido, apresentamos a análise de estrutura e movimentos do filme O Fim e o Princípio. Escolhemos este, pois se trata do filme em que podemos identificar mais claramente os processos do fazer documentário de Eduardo Coutinho. Este documentário, em especial, relata diversas tentativas e processos que o filme tem que acionar para ser realizado.
Estudo de caso descritivo: A estrutura e os movimentos de “O Fim e o Princípio”
O primeiro movimento do filme expressa uma tentativa de fazer um filme sem roteiro, pesquisa ou produção prévia e também sem um tema em especial. Essa tentativa é verbalmente informada pelo diretor, nas primeiras imagens do filme. “Viemos à Paraíba para tentar fazer, em quatro semanas, um filme sem nenhum tipo de pesquisa prévia, nenhum tema em particular, nenhuma locação em particular. Queremos achar uma comunidade rural de que a gente goste e que nos aceite. Pode ser que a gente não ache logo e continue a procura em outros sítios e povoados. Talvez a gente não ache nenhum, e aí o filme se torna essa procura de uma locação, de um tema e, sobretudo, de personagens.” A escolha por começar a tentativa do filme em São João do Rio do Peixe foi feita por ser o único local na região em que havia um hotel.
O filme começa efetivamente pela procura de uma locação e de um tema. O primeiro passo foi buscar os agentes da Pastoral da Criança, pois eles ou elas conheciam bem, “pela força de seu trabalho”, todas as comunidades da região. Foi desse modo que o filme chegou a Rosilene Batista, que vive no sítio Araçás. Rosa, como é conhecida, é professora e trabalha como voluntária na Pastoral da Criança. O diretor, Eduardo Coutinho, aparece conversando com Rosa e com sua família. Ele explica a proposta desta procura e pede o auxílio dela, para encontrar pessoas com histórias para contar, mesmo que fosse preciso percorrer outros sítios e povoados da região, desde que fossem pequenas comunidades. Essa decisão prévia de procurar pessoas com histórias para contar vai guiar as opções na tentativa de um filme sem roteiro ou pesquisa.
Quando Coutinho diz que o filme também é uma busca por pessoas com histórias para contar, Rosa fala da madrinha-avó, uma senhora de 95 anos. Neste momento, o filme mostra a conversa entre Rosa e Zefinha. Ela revela como fazia as rezas e como trabalhava na plantação de algodão, sendo que se pode perceber, na fala dela, um valor de crença que mostra um pouco da cultura das pessoas da região. A partir daí, o filme começa a tatear, ainda sem ângulo ou tema definidos, o que poderia ser o próprio filme e o que se poderia esperar daquela comunidade.
Depois disso, entra em ação a procura de uma locação. O filme sai a busca disso com Rosa, que leva a equipe de filmagem ao sítio de Riachão dos Bodes. Para criar uma certa “intimidade” com os personagens, Coutinho diz a Rosa que é para ela falar para as pessoas que ele está ali para fazer um filme sobre como é a vida no sertão. Entretanto, a primeira investida não é o que se esperava. Dona Rosa, da comunidade de Riachão dos Bodes, diz que não vai contar a sua vida para ninguém, pois tem “uma vida muito ruim”. A segunda investida é José, que fala dos problemas para escoar a produção e das precárias condições de trabalho. A conversa entre Rosa e José é interrompida pela voz de Coutinho que diz que os dois dias de filmagem em Riachão dos Bodes e em outras comunidades convenceram a produção do filme a permanecer em Araçás. Coutinho expressa verbalmente que as relações entre Rosa e as demais pessoas das comunidades não iam além das questões de trabalho e não criavam intimidade. Nesse momento, o filme coloca em ação um terceiro movimento, que é o de permanecer em Araçás e não procurar outras comunidades, fazendo uma escolha de locação. Com isso, o filme “se mostra” tentando e fazendo decisões, opções, que ao final se mostram acertadas.
A escolha em permanecer em Araçás traz consigo muitas implicações ao filme. A primeira delas é que a maioria dos parentes de Rosa são idosos ou pessoas com mais de 60 anos de idade. A questão da idade é trabalhada no filme como aquilo que existe de mais interessante na comunidade, ou seja, seus velhos e as histórias que têm para contar. A entrevista com pessoas mais velhas é uma espécie de “demanda” daquele ambiente, o que ele tem para oferecer ao filme e, por consequência, ao público.
A escolha dos personagens é feita por Rosa, que faz um mapa de Araçás, com o nome das pessoas que poderiam ser entrevistadas. A maioria é parente de Rosa, e o filme também acaba sendo um pouco da dedicação que ela destina aos idosos de Araçás, pois conhece a vida deles e interage com eles. Em algumas cenas, ela aparece convidando as pessoas a falar, apresentando Coutinho e a equipe do filme. Rosa é, sem dúvida, mais do que um personagem. O filme também é um olhar de Rosa sobre a comunidade, bem como, o próprio filme é de Rosa. Podemos apontar que este movimento assinala também uma modificação do papel de Rosa no filme. Além do contato com as pessoas, ela age como uma articuladora de todo o processo. A não produção prévia assumida no filme passa a contar agora com uma “produtora” que está dentro do ambiente em que a filmagem acontece. Mariquinha inaugura o movimento que o filme começa a fazer, que é de proporcionar espaço aos personagens de Araçás e às suas histórias. Ela fala das suas crenças e da liberdade que tem, expressa pela ação de comprar uma bebida alcoólica e tomá-la em casa. Diz que tem medo da morte e saudades do filho que mora longe. Faz uma interação interessante com o diretor ao rir das “fofocas” que conta. Ao final da conversa, revela que velho gosta de “prosear”. Por inaugurar este espaço, Mariquinha serve como parâmetro para as demais histórias, uma vez que começa a direcionar o filme para as questões mais pessoais da vida do sertanejo. A partir de Mariquinha, começamos a conhecer Araçás e o valor que aqueles sertanejos dão à vida, ao trabalho, à família, à crença, à riqueza, à saúde, a palavra, à tranquilidade, à força, à sabedoria, ao amor e à morte.
A maioria dos personagens parece estar à vontade para falar e Assis é um exemplo disso. O personagem expressa um pouco da receptividade que o filme encontra na comunidade de Araçás. Para Assis, a vida é um sacrifício.
A questão afetiva aparece com Rita e Zequinha, que são o primeiro casal a aparecer no filme. Com mais de 40 anos de casados, os dois afirmam nunca terem brigado. Eles também falam da morte, Rita diz não pensar, mas Zequinha pensa, mesmo sabendo que é Deus quem decide a hora de todos. Zequinha também fala do valor de confiança na comunidade, pois mora em um pedaço de terra que foi vendido pelo pai de Rosa, mas que a escritura ainda não foi feita.
O filme agora faz um movimento de buscar ouvir e compreender Leocádio. Ele aparece na janela de um galpão, que ele chama de a “cova dos leões”, do profeta Daniel, que saiu vivo depois de ter sido jogado aos leões, em uma passagem bíblica. O filme nos diz que não é a primeira vez que tenta conversar com Leocádio. Essa referência é observada na fala de Rosa, que pede para Leocádio se ele pode atender o pessoal do filme. Em um primeiro momento, Leocádio diz estar sem “pontuação para nada”, e Coutinho lhe pede se prefere conversar “outra hora”. Mas, depois disso, Leocádio aparece conversando com Coutinho sobre a cova dos leões e sobre a liberdade que sempre gozou na vida, fazendo-nos imaginar que ocorreu mais algum tipo de negociação, para que ele falasse. Leocádio é enigmático e faz uma espécie de diferença entre a palavra comum e a palavra certa, sendo que a primeira é aquela falada em vão e a segunda é aquela que está no dicionário, por isso é certa.
Vigário demonstra um valor de trabalho muito ligado à tradição. Ao dizer que ainda anda a cavalo, quando quase todos têm moto, ele se diferencia. Para ele, a tradição é algo importante, que se revela na forma como vê o trabalho. Antônia, sua companheira, chegou em Araças, para visitar uma amiga e nunca mais voltou. Antônia revela as intimidades do casal e diz que se apaixonou por Vigário, quando ele estava bêbado.
Maria Borges transmite a tranquilidade do sertanejo. Depois que deixou de ser parteira, passa os dias em casa, quase sempre sozinha. Mas não tem medo da morte, demonstrando serenidade ao falar do assunto.
Os depoimentos de Lice e Zequinha Amador expressam as investidas do filme para convencer os personagens a falar. A primeira investida acontece com Zequinha Amador, mas ele não está disposto a falar, pois está adoentado. Depois, Coutinho tenta convencer Lice, dizendo para ela contar da infância, da lavoura, “essas coisas da vida”. Logo após, Lice já aparece falando da infância e dos irmãos, que sempre viveram juntos. Luca, que quase não enxerga, revela uma saudade quase sutil das pessoas que não vê há tempos. Posteriormente, Zequinha Amador aparece novamente e recita um poema sobre as mulheres. Acaba por localizar o romantismo do sertanejo que, mesmo com as duras lidas do dia-a-dia de trabalho e os problemas de saúde da velhice, ainda guarda muito espaço para a paixão e para o amor. Os três depoimentos também demonstram a agilidade do filme diante de situações quase extremas. No primeiro momento, os personagens não estavam dispostos a falar, mas alguma coisa acontece na interação, que faz com que eles tomem gosto pela palavra, chegando a recitar poesias.
Com o depoimento de Tia Dôra, o filme passa a força do sertanejo. Depois da morte do marido, ela trabalhava duro na roça para criar as três filhas. Todos os dias, ela levava as filhas para a lavoura e as colocava embaixo de um pé de juazeiro enquanto trabalhava. A necessidade de “se virar” para não morrer de fome a fez ter orgulho de ter criado as filhas, da forma como ela mesma foi criada. A imagem final de Tia Dôra sentada na cama, também mostra um pouco da solidão do sertanejo e da própria velhice.
O depoimento de Vermelha vem em seguida ao de Tia Dôra, pois elas são parentes. Mostra, também, o apego e o carinho que Vermelha sente pela tia, irmã da mãe. Vermelha, que também é idosa, fala da falta de sono que tem e da vontade de não ver os filhos casados, já que eles a ajudam a cozinhar e a realizar as tarefas do dia-a-dia. Para Vermelha, é melhor estar sozinha do que mal acompanhada.
A sabedoria do contato com a terra é expressa por Nato. Ele consegue observar através de vários indícios, como as árvores e os pássaros, onde se pode cavar um poço para encontrar água. Interessante perceber que depois do depoimento de duas senhoras idosas, Nato é entrevistado e percebemos o quanto a cultura do trabalho está presente. Ele diz que, mesmo a pessoa sabendo que vai morrer, ainda continua trabalhando e acumulando riqueza.
Neném Grande faz o papel de contar as crendices do povo de Araças. Ela conta a história dos bebês que nascem e morrem sem serem batizados. Os chamados anjinhos choram todos os dias pedindo para que o mundo acabe. Neném Grande conta a crença que foi passada de geração para geração e que se tornou coletiva, a qual é, inclusive, sobre a crença no fim do mundo, que nesta era deve se acabar com fogo.
Zé de Souza está surdo. A sua participação no filme diz que a solidão é algo inerente ao ser humano. Preso na sua surdez, Zé de Souza se sente sozinho, mas fica emocionado, quando alguém aparece para conversar, escrever algumas linhas em um caderno.
Com Chico Moisés o filme retorna a dois movimentos. Primeiro, o convencimento de falar, pois no início da cena Chico Moisés parece não estar à vontade. Fala pouco e responde secamente as perguntas do diretor. Em seguida, o filme faz o movimento de tentar compreendê-lo. Primeiro, olha desconfiado, como se estivesse analisando e calculando friamente as palavras que diz. Ao realizar uma brincadeira, Chico Moisés aciona uma cumplicidade entre personagem e diretor que lhe permite ir longe com as palavras, chegando a ser contraditório, provocativo, místico e cheio de segredos. Para ele, a sabedoria não vem só da escrita, mas da capacidade de cada um de se fazer funcionar no mundo. Entretanto, não diz tudo o que sabe. O público acaba se identificando com Chico Moisés por ser uma figura complexa, uma mistura de todos os sentimentos. E nos faz perguntar: quem não tem seus segredos? Mas, Chico Moisés diz que nunca teremos a coragem de nos revelar, mesmo que criemos diversas facetas, como ele mesmo as cria. Faz provocações, pois diz que é sempre bom falar com “pessoa sabida”, mas que no fundo não se importa se o que disse foi entendido, pois sempre falou o que quis e não o que sabe.
Ao retornar para se despedir dos personagens com quem interagiu, o filme volta ao movimento de perceber mais elementos da vida do sertanejo sob a ótica do grupo entrevistado. Na conversa com Chico Moisés, percebemos ainda mais a posição de jogador que é assumida por ele no jogo de palavras e de sabedoria que ele mesmo criou. Afirma, mais uma vez, que Coutinho é sabido e demonstra a sua esperteza ao encerrar a conversa com a seguinte frase: “Que pena! E o que sei não disse, só fiz começar”. Chico Moisés procura o tempo todo jogar com o diretor e com o sentido das palavras e do próprio filme. Na sua última aparição, ele diz que não pode ser considerado importante, só porque está sendo filmado, colocando em questão todo o sentido do filme. Esta noção de colocar em questão o próprio sentido do filme aparece na cena em que Chico Moisés questiona Coutinho se ele o acha sabido. Coutinho diz que sim e Chico responde: “Só porque eu estou sendo filmado assim…?”
No seu conjunto, essas cenas expressam a tentativa evidenciada no início do filme pelo diretor de encontrar pessoas com histórias para contar. Nesse sentido, percebemos que o conjunto de falas constitue os movimentos do filme e o formam.
Por apostar no improviso, naquilo que escapa e não é dimensionável pela previsão, o filme parece investir mais em dois personagens: Leocádio e Chico Moisés. Isso é visível, quando o diretor dá mais tempo para eles se expressarem, entra na conversa deles, interage, deixa falar, parece interromper só o necessário. No caso de Chico Moisés, quando ele diz que vai parar de falar, se não vai longe com as palavras, Coutinho o estimula a falar, querendo entrar naquele mundo que parece ser só de Chico Moisés.
O conjunto de depoimentos constrói diante de nós uma Araçás de extremos, mas também de semelhanças. Constrói uma vida de trabalho duro na roça, de valor em uma crença que ajuda, mas que também sabe castigar, principalmente aqueles que não acreditam. Constrói uma vida de sofrimento pelos problemas de saúde, mas também de descontração ao relembrar os tempos de juventude, de casado e de solteiro. Constrói uma interação com o diretor, que chega a ser de cumplicidade, pois muitos personagens contam momentos íntimos de suas vidas. É uma interação que proporciona também a possibilidade de jogar, brincar com o desconhecido, como faz Chico Moisés, que coloca em dúvida suas próprias ações e palavras. Os depoimentos também constroem um momento de troca, uma interação que proporciona ao espectador a possibilidade de uma reflexão sobre o sentido do conhecimento e o sentido da vida. As cenas em que as pessoas aparecem sem serem entrevistadas retratam também um pouco da “normalidade” e da serenidade da vida dos idosos de Araçás.
Apontamos que a principal tentativa do filme foi fazer um documentário sem roteiro, produção, locação ou tema prévios. A tentativa foi estruturada com base em diversos movimentos; apontamos os principais, por ordem: a) o encontro com Rosa; b) a busca por um local com pessoas que tenham histórias para contar; c) a escolha de permanecer em Araçás; d) o espaço para escutar os personagens com suas histórias, convencê-los a falar e, consequentemente, mostrar um ângulo da vida do sertanejo; e) a busca por ouvir e compreender Leocádio e Chico Moisés.
Considerações finais
A articulação do método indiciário com o levantamento de estrutura e movimentos possibilitou perceber que, por não possuir uma produção prévia ou qualquer tipo de pesquisa anterior, a não ser a pesquisa de hospedagem, o filme evidencia que é possível fazer um documentário apostando na “ida a campo”. Os documentários buscam sempre realizar algum tipo de ação sob a realidade e, nesse sentido, O Fim e o Princípio vai diretamente ao campo de ação desarmado, para tentar agir junto com aquela realidade. O documentário observa, primeiramente, o lugar e suas particularidades, depois seleciona aqueles personagens que podem render boas conversas e que possibilitem uma maior interação com o diretor e com o público.
* Bianca Costa é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista do CNPq e graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E Roberto Dornelles é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Referências Blibliográficas
BRAGA, José Luiz. “Análise performativa. Cem casos de pesquisa empírica”, in Braga, José Luiz, Vassallo de Lopes, Maria Immacolata e Martino, Luiz Cláudio (orgs.), Pesquisa empírica em Comunicação – Livro Compós, 2010.
BRAGA, José Luiz. Comunicação, disciplina indiciária. Matrizes (USP. Impresso), v. 1, p. 73-88, 2008. www.matrizes.usp.br/ojs/index.php/matrizes/article/download/46/28
BRAGA, José Luiz. Nem rara, nem ausente – tentativa. Matrizes (USP. Digital), Vol. 4, No 1 (2010). Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/ojs/index.php/matrizes/article/view/171. Acessado em 17 de janeiro de 2011.
GINZBURG, Carlo. Sinais – Raízes de um paradigma indiciário. In. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e historia. São Paulo : Companhia das Letras, 1990.
MARRE, Jacques. A construção do objeto científico na investigação empírica. Texto apresentado no Seminário de Pesquisa do Oeste do Paraná. Fundação Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel. 16 a 18 de outubro de 1991.
Filme:
O Fim e o Princípio. Direção: Eduardo Coutinho. Duração: 110mim. Ano: 2005.
[1] O Indiciário será estudado na segunda parte deste artigo.
[2] A entrevista como arte do encontro no documentário. Encontro com o cineasta realizado pela Casa do Saber-RJ em 15/09/2008. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=jbJi_S_St88. (Grifos nossos)
[3] Que será apresentado no próximo item do artigo.