Joe: mutação e leveza

Falar sobre o cinema de Apichatpong Weerasethakul, ou Joe, como se autoapelidou, é se arriscar. A bibliografia dedicada é escassa, a maior parte de sua obra é formada por curtas, videoarte e instalações multimídia relativamente inacessíveis e seus quatro longas – seis, se considerarmos o recente ganhador da Palma de Ouro, “Loong Boonmee raleuk chat” e a colaboração de 2003 “Hua jai tor ra nong”, “Tio Boonmee que consegue lembrar-se de suas vidas passadas” e “A aventura de Iron Pussy”, respectivamente, em tradução livre a partir dos títulos internacionais -, mesmo dialogando, são radicalmente diferentes entre si e demonstram uma crescente experimentação e reformulação de ideias. O que tentaremos a seguir é identificar quais são os aspectos fundamentais e recorrentes em seus principais trabalhos, a partir da observação destes, sendo assim capazes de caracterizar sua obra como um todo, mas que por si só não encerram nem limitam as inúmeras possibilidades de fruição que ela proporciona.

Filme de Apichatpong Weerasethakul
Cena do Filme "Eternamente Sua"

É importante ter em mente sua trajetória: filho de médicos, passou a infância em Khon Kaen, uma pequena província tailandesa onde seu acesso a filmes era restrito e onde graduou-se em Arquitetura; seu desejo era estudar Cinema, mas, desacreditado da qualidade dos cursos em sua terra natal, só o fez depois de migrar para os Estados Unidos, estudando também Artes Visuais. Quando voltou à Tailândia, em meados da década de noventa, produziu alguns curtas em 16mm e em vídeo, iniciou o processo de elaboração de seu primeiro longa e foi um dos membros fundadores da produtora Kick the Machine, cuja intenção é integrar artistas visuais experimentais tailandeses e promover seus trabalhos.

As filmagens do primeiro longa, “Misterioso objeto ao meio-dia” (Dokfa nai meuman, lançado em 2000), se deram em diversas cidades e duraram três anos, tempo em que a produção independente contou com uma equipe mutável de voluntários convocados através de um anúncio no jornal. A primeira imagem é um letreiro que diz “Era uma vez…”, seguida por um longo plano no interior de um carro em movimento (imagem que se repetirá posteriormente em outras obras) que logo percebemos tratar-se de uma van onde se vende peixe. Os dizeres do início entram em conflito com uma entrevista feita com a vendedora, na qual ela conta sobre como seu pai a vendeu para seu tio, motivado por problemas financeiros. Ficção ou documentário?

“Você tem alguma outra história para nos contar? Pode ser real ou ficção. Qualquer uma, até de um livro.” Sugere o entrevistador, e a partir daí, em paralelo, passaremos a acompanhar a encenação da história iniciada por ela e seus desdobramentos, confabulados por outros entrevistados dos mais variados. A inquietação se dissipa nesse processo para nunca mais nos sentirmos desconfortáveis em qualquer outra obra desse tailandês. Aqui já se percebe uma das influências que o próprio diretor costuma citar, os surrealistas, bem como uma característica fundamental de seus filmes: a mutabilidade.

Filme de Apichatpong Weerasethakul
Cena do filme "Mal dos Trópicos"

Concebido (e esta é uma palavra relevante, já que ele se identifica como idealizador em seus três primeiros filmes) claramente como um cadavre exquis, um misto de jogo e método de criação coletivo surrealista que consistia na livre associação de formas ou palavras sequencialmente, aos poucos o foco nas entrevistas e na encenação decorrente delas vai diminuindo, denunciando momentos dos bastidores da documentação, fragmentos do cotidiano das cidades visitadas, diálogos entre a equipe durante as viagens. Joe conta que o cansaço de passar tanto tempo viajando e filmando despertou a vontade de relaxar e aproveitar a viagem, e, felizmente, acabamos por compartilhar desse proveito. Essa capacidade de transformação vai acompanhar também as próximas obras, mesmo nem sempre sendo fruto do acaso.

A transformação em “Eternamente sua” (Sud sanaeha, lançado em 2002) acontecerá depois de quarenta e cinco minutos. O filme começa com Min, Roong e Orn num consultório médico, no qual se examina um problema de pele do qual sofre o primeiro. Ele é um imigrante birmanês em situação ilegal e está impedido até de falar para não ser descoberto. Roong é sua namorada, que paga Orn para acompanhá-lo. Roong vai trabalhar, Orn aproveita para se consultar também, solicita um atestado para Min, depois encontra com seu namorado. Roong trabalha numa fábrica pintando bibelôs à mão, e inventa uma desculpa para ser liberada da jornada daquele dia. Orn vai buscá-la com Min e empresta o carro para que os dois passem a tarde livre longe da civilização. Quando finalmente conseguem, surgem os créditos iniciais, e a partir daí acompanharemos a tarde de fuga dos dois.

É flagrante outra influência assumida do diretor, Andy Warhol e os estruturalistas americanos, mas, assim como no filme anterior, ela se limita a estabelecer parâmetros para o desenvolvimento de algo maior. Tendo acompanhando essa pequena aventura inicial, atos simples como fazer um piquenique num penhasco, comer frutas recém-colhidas ou pegar no sono ao lado do namorado ganham enorme importância. A base de toda a ação é a duração e a não-representação investigados nos anos sessenta, mas estas estão claramente trabalhando em prol da narrativa, o que torna seus efeitos fundamentais no estado em que a obra coloca o espectador. A riqueza dessa experiência é potencializada até por algumas digressões, como o voice-over inesperado ou as imagens dos desenhos primários de Min. A ruptura nasce através da síntese e desconstrução tanto do clássico quanto do experimental.

Filme de Apichatpong Weerasethakul
Cena do filme "Misterioso Objeto ao Meio Dia"

Em “Mal dos trópicos” (Sud pralad, lançado em 2004) há uma divisão mais marcada do filme em dois momentos. No primeiro, presenciamos o desenvolvimento do afeto entre o soldado Keng e o jovem analfabeto e desempregado Tong, a partir da intimidade de momentos compartilhados, como uma apresentação musical, uma ida ao cinema, uma visita a um templo. No segundo, o fantástico e o folclórico transfiguram essa história de amor. Tong desaparece e Keng está à procura de um estranho animal devorador de vacas que está espalhando o terror na região. Na passagem de uma parte para outra a transformação acaba por contagiar todos os aspectos da narrativa, inclusive os personagens, provocando a incerteza de que ainda sejam eles mesmos. Se anteriormente ele coloca os créditos iniciais muito tempo após o começo do filme, aqui eles aparecem duas vezes, tanto no começo da primeira quanto no da segunda parte. Se a excitação nesse instante é maior que o estranhamento, é porque já estamos certos de que, para onde forem, os personagens de Apichatpong viverão aventuras sensoriais gratificantes.

“Síndromes e um século” (Sang sattawat, lançado em 2006) traz a maior delas, sendo, até agora, o filme mais misterioso de Joe. Começamos assistindo a uma estranha entrevista de emprego num hospital localizado numa região rural, onde predomina o verde da vegetação fora do centro médico, e pouco depois um detalhe nos chama mais ainda a atenção: dois personagens saem do quadro, mas continuamos ouvindo sua conversa e repentinamente um dos atores reclama sobre ter que repetir as cenas, num eco distante de “Misterioso objeto ao meio-dia”. A partir daí, acompanharemos fragmentos da rotina desse hospital e dos personagens singulares que o habitam.

Na metade do filme, depois de falar sobre reencarnação com um dentista, um monge desaparece. Em outro ambiente, agora um hospital moderno de um grande centro urbano, onde predomina o branco e a tecnologia, vemos uma entrevista de emprego semelhante à primeira, interpretada pelos mesmos atores e com sutis variações. A transformação aqui é mais desnorteante, apesar da repetição ajudar a manter o foco, mas, assim como em “Mal dos trópicos”, as chaves dos enigmas narrativos são sugeridas até com certa clareza, ou seja, podemos imaginar o que está acontecendo. E mesmo assim, num dos aspectos mais fascinantes dessas obras, Apichatpong dota tudo – objetos, pessoas, lugares – de mutabilidade, permitindo, por exemplo, que um exaustor também possa ser um buraco negro.

Filme de Apichatpong Weerasethakul
Cena do filme "Síndromes e um Século"

Observemos também o diálogo que os filmes estabelecem entre si. Percebe-se a preocupação com a identidade do povo tailandês, sendo todos os personagens retratos de pessoas comuns – pobres, imigrantes, analfabetos, um dentista que queria ser cantor, um monge que queria ser DJ -, e disso emana um sutil comentário social sobre a Tailândia contemporânea. A relação desses indivíduos com o ambiente que os cerca sempre é forte, seja na selva, no campo ou na cidade, e entre os filmes é interessante observar a repetição de lendas do folclore local contadas pelos personagens, como a história dos dois fazendeiros que tiveram a chance de enriquecer, mas foram gananciosos e a perderam, e a pequena referência ao tio Boonmee em “Mal dos trópicos”, quando nem sabíamos se estava nos planos de Joe realizar um filme sobre ele.

Nessas obras, Apichatpong Weerasethakul, com essa maneira particular de assimilar as influências naturalmente, de experimentar os limites – da narrativa, da dramaturgia, ou mesmo da compreensão humana, fato tão bem ilustrado no seu agradecimento a todos os espíritos e fantasmas da Tailândia na sua recente premiação em Cannes – com extrema pessoalidade (e ele mesmo diz que fazer um filme é como lidar com memórias ou escrever um diário) nos leva a crer que sua busca é pelo arrebatamento através da leveza. É isso que sentimos quando vemos as crianças de “Misterioso objeto ao meio-dia” contribuindo com a invenção da história, o jovem casal de “Eternamente sua” fugindo de suas obrigações apenas para passarem um tempo juntos, o sorridente soldado apaixonado de “Mal dos trópicos” andando de moto ou a aula de aeróbica em plena praça ao final de “Síndromes e um século”.

Ígor de Oliveira Cordeiro é DJ e graduando em Cinema e Vídeo pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP).

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