Os curtas-metragens de invenção de Jairo Ferreira

Renato Coelho é graduado em Cinema pela FAAP, mestrando em Multimeios na Unicamp, e professor do curso de Imagem e Som na UFSCar.

Sobre Jairo Ferreira

Jairo Ferreira nasceu em São Paulo em 1945. Em 1964 se torna coordenador do cineclube do Centro Don Vital, onde conhece futuros cineastas que darão origem ao núcleo paulistano do Cinema Marginal. Inicia-se na crítica cinematográfica em 1966, no jornal da colônia japonesa São Paulo Shimbun. É também por essa época que começa a se reunir uma turma em torno da Escola Superior de Cinema São Luís, da qual faziam parte Ferreira, Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla, entre outros. É essa turma que migra para a Boca do Lixo – pólo cinematográfico em ascensão na época – em busca de realizar seus filmes.

Em suas críticas no Shimbun, que vão até 1973, Jairo Ferreira acompanha o surgimento do Cinema Marginal, se tornando uma espécie de cronista daquela produção. Além de escrever, participa dos filmes, desempenhando várias funções, principalmente como assistente de direção. Em 1966 dirige o curta-metragem Via Sacra, filme inacabado e que teve seus negativos perdidos. Segundo Carlos Reichenbach, fotógrafo do filme, é a primeira experiência underground do cinema brasileiro.

Jairo Ferreira
Jairo Ferreira

Passou por jornais de grande circulação, como a Folha de São Paulo (entre 1976 e 1980) e o Estado de São Paulo (entre 1988 e 1990), além de outras publicações, escrevendo quase sempre sobre o cinema brasileiro, e acompanhando a continuidade da carreira dos cineastas do grupo marginal. Em 1986 publica o livro Cinema de Invenção, espécie de história – nada ortodoxa – do cinema experimental no Brasil. O conceito de “invenção”, proposto por Ferreira na época da publicação do livro, é uma transposição do pensamento de Ezra Pound, voltado à análise de obras literárias, para o âmbito do cinema, onde “inventores” são “homens que descobriram algum processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo de um processo” (POUND, 1995).

Mais conhecido enquanto crítico de cinema, Jairo Ferreira também realizou filmes. Embora feitos entre 1973 e 1980, portanto após o principal período do Cinema Marginal, seus filmes se alinham às idéias deste movimento, pelas características niilistas e de deboche presentes. São oito filmes – entre longas, curtas e médias – quase todos filmados em super-8. Feitos de maneira artesanal e com a ajuda de poucos amigos, sem interesse mercadológico e que foram exibidos apenas fora de circuito comercial. É importante frisar que, em sua figura, os trabalhos enquanto crítico e cineasta nunca se separam, mas convivem como partes inseparáveis de uma mesma obra.

JF e seu livro, Cinema de Invenção
JF e seu livro, Cinema de Invenção

Jairo Ferreira morreu em 2003, mas suas idéias como figura que sempre pensou o cinema brasileiro continuam influenciando críticos e cineastas. A chamada Nova Crítica, que exerce sua militância pela internet (em revistas virtuais como Contracampo e Cinética), bem como uma importante geração de cineastas que surgiu em São Paulo nos anos 90, com a produtora independente Paraísos Artificiais (Paolo Gregori, Cristhian Saaghard, Paulo Sacramento, entre outros), confirmam esta influência.

A filmografia de Jairo Ferreira

Como dito acima, Jairo Ferreira realizou oito filmes entre os anos de 1973 e 1980. São cinco curtas-metragens: O guru e os guris (1973), Ecos caóticos (1975), O ataque das araras (1975), Antes que eu me esqueça (1977) e Nem verdade nem mentira (1979); o média Horror Palace Hotel (1978); e os longas O vampiro da cinemateca (1975/1977) e O insigne ficante (1978/1980). Trataremos, primeiramente, de sua produção em super-8 e, em seguida, de seus dois filmes feitos em 35 mm.

A produção em super-8

Os filmes em super-8 – todos com a exceção de O guru e os guris e Nem verdade nem mentira, que serão analisados separadamente mais a frente – se enquadram dentro da classificação de documentários em primeira pessoa, onde a figura do sujeito-autor, seja aparecendo na imagem ou através do som over, se faz presente de maneira performática. Documentários poéticos e de verve mais experimental, que seguem as características de liberdade criativa inerentes a este tipo de cinema, o de vanguarda.

Letreiros iniciais de Ecos Caóticos
Letreiros iniciais de Ecos Caóticos

Em Ecos caóticos, “filme de viagem” (não no sentido ficcional do gênero roadie-movie, mas filmado durante uma viagem) rodado na cidade de São Luís do Maranhão, em homenagem ao poeta Sousândrade, nativo do local. Tomadas do cotidiano da cidade e seus habitantes, e travellings filmados da janela do carro são acompanhados por músicas e pela voz over de Jairo Ferreira, que discorre sobre cinema e arte em geral, enaltecendo o poeta precursor do modernismo, influência de Oswald de Andrade. Filme que antecipa as idéias de antropofagia e invenção (no sentido proposto por Ezra Pound, em ABC da literatura), que surgirão nos futuros longas do autor.

O ataque das araras, outro “filme de viagem”, capitado na Amazônia. Jairo Ferreira viaja acompanhando uma equipe de cinema publicitário que filma um comercial de cigarros (composta por profissionais da Boca do Lixo, como João Callegaro e Oswaldo de Oliveira). Lá encontra o escritor, dramaturgo e cineasta Márcio Souza, que prepara a encenação de uma peça no monumental Teatro Amazonas, uma proposta de teatro educativo destinado às populações ribeirinhas. Mesmo em se tratando de um documentário poético – as imagens e a maneira como se sucedem, a típica voz over do autor, o uso das músicas indígenas – o filme possui certo viés educativo e ecologista, pela forma como mostra e aborda a função social do teatro de Souza. Apesar de ser um filme que agrega características pós-modernas, como o sentimento de fim das utopias inerente ao Cinema Marginal, estabelece-se uma clara oposição entre os interesses comerciais (da equipe publicitária) e o do teatro educativo, numa discussão sobre quais seriam as “verdadeiras” funções da arte.

Antes que eu me esqueça, documentário filmado durante um sarau, no lançamento de um livro. O valor desta obra, que não possui a voz over de Ferreira acompanhando as imagens, está no registro histórico de poetas brasileiros malditos declamando seus poemas (os beats Roberto Piva e Cláudio Willer, entre outros), entremeados por músicas rock. No meio do filme, uma apresentação musical de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, e no final, o reflexo do autor no espelho filmando com sua câmera super-8, e uma breve narração explicando do que se trata o filme. As variações dramáticas se dão através da intensidade das tomadas, do modo por vezes exaltado como os poemas são declamados. E o filme se torna um documento interessante, visto hoje, pelo valor agregado com a passagem do tempo. É importante frisar que a versão remanescente possui doze minutos, enquanto o filme original, que está perdido, tinha cerca de quarenta.

Em Horror Palace Hotel – o único filme aqui discutido que não é um curta, mas sim um média-metragens – Jairo Ferreira utiliza a terminologia do gênero “horror” para tratar da situação do cinema brasileiro de então, e do que considerava o “horror do cinema nacional”. Durante o Festival de Cinema Brasileiro de Brasília de 1976, os cineastas marginais organizam uma mostra paralela de seus filmes, e se hospedam no Palace Hotel. É lá que o autor filma Rogério Sganzerla entrevistando personalidades do cinema brasileiro, como José Mojica Marins, Júlio Bressane, Ivan Cardoso, Francisco de Almeida Salles, Rudá de Andrade, entre outros. Talvez esse seja um dos documentários mais “tradicionais” de Ferreira, mesmo que bem distante dos moldes do documentário clássico. É aqui que a imprevisão das tomadas se faz presente, com um tipo de encenação onde o entrevistador Sganzerla improvisa perguntas, conseguindo respostas que por vezes caracterizam imagens intensas, dentro do transcorrer do tempo, da vida. Exemplos são algumas das questões levantadas durante o filme, como a antiga rivalidade entre Cinema Novo e Cinema Marginal; a censura e proibição de filmes como Ritual dos Sádicos (1969, de José Mojica Marins); o descaso da organização do Festival com as produções filmadas na bitola 16 mm. Mas o que prevalece são momentos de escracho e diversão, e a turma marginal “brincando” de fazer cinema improvisado, mas ao mesmo tempo discutindo questões relevantes para a época. Aqui a voz over de Ferreira está novamente presente, e o filme é permeado por imagens dos filmes marginais exibidos no Festival (filmados diretamente da projeção no cinema), sendo comentados pela voz do crítico-autor.

Os dois longas-metragens de Jairo Ferreira não serão aqui abordados, por se tratarem de filmes com estruturas mais complexas, que merecem reflexões aprofundadas, que serão deixadas para um futuro estudo. Ambos são documentários experimentais em primeira pessoa, de características performáticas mais fortes e evidentes que os filmes citados até agora, que partem da vida do autor para o mundo, tecendo comentários sobre outros assuntos. O insigne ficante discute principalmente questões sobre a função da crítica, enquanto O vampiro da cinemateca trata essencialmente do próprio cinema.

O guru e os guris e Nem verdade nem mentira

Esses dois filmes serão analisados separadamente por se tratarem de propostas de cinema que se diferenciam dos outros seis filmes de Jairo Ferreira. Primeiramente, é importante frisar que Ferreira sempre tentou, ao longo de sua vida, realizar filmes nos moldes de produção mais tradicionais, em termos de equipe, equipamentos, distribuição, etc. Como não conseguiu – talvez devido a sua “fama” de louco, não tenha obtido financiamento – encontrou na bitola super-8 um meio de viabilizar seu ímpeto de fazer cinema. Os dois filmes abordados aqui são as produções do autor no âmbito do cinema profissional, filmados e finalizados em 35 mm, e que logicamente por isso se diferem das características artesanais, de cinema em primeira pessoa, das experiências em super-8. Apesar de serem filmes experimentais e que claramente contém a marca de “invenção” do autor.

Maurice Legeard em O Guru e os Guris
Maurice Legeard em O Guru e os Guris

O guru e os guris foi viabilizado com a ajuda de Carlos Reichenbach, produtor e fotógrafo do filme, que cedeu os equipamentos de sua então produtora de publicidade, a “Jota Filmes”. É o documentário mais “tradicional” de Jairo Ferreira, e aborda a figura de Maurice Legeard, fundador do Clube de Cinema de Santos. Feito com uma equipe tradicional de cinema, foi montado por outro amigo do autor, Inácio Araújo.

Documentário claramente encenado, que partiu de argumento e roteiro escritos anteriormente por Ferreira, onde o personagem Legeard aparece em cenas que claramente não são tomadas de sua vida cotidiana, mas sim encenações propostas pelo diretor. O autor usa a figura de Legeard, mítico guru cineclubista de Santos, para tecer opiniões sobre o mundo, principalmente no que diz respeito à condição do cinema brasileiro. A narração over é de Legeard, que quase sempre discorre sobre o esquecimento e a falta de interesse do público pelo cinema feito no Brasil, e se encaixa nitidamente dentro das posições que Ferreira exercia na época, em suas crítica no São Paulo Shimbun. Não que as opiniões tenham sido colocadas pelo diretor na boca de Legeard, mas o personagem escolhido foi propício, por compartilhar dos mesmos anseios que o autor almejava abordar naquele momento. Imagens de arquivo se fazem presentes, como na cena de um filme onde um homem jaz num caixão, numa analogia com a situação do cinema brasileiro; e no recorrente uso, dentro da obra aqui analisada, das imagens dos filmes de José Mojica Marins, evocando a persona de Zé do Caixão.

Patrícia Scalvi em Nem Verdade Nem Mentira
Patrícia Scalvi em Nem Verdade Nem Mentira

Nem verdade nem mentira é uma produção da Galante Produções Cinematográficas, também fotografada por Carlos Reichenbach. Trata-se de um falso-documentário, único filme inteiramente ficcional de Jairo Ferreira. Calcado na interpretação da atriz Patrícia Scalvi, trata de questões inerentes ao universo do jornalismo, e de como a verdade e o mito costumam conviver no mundo da imprensa, da notícia.

Usando da forma e de ferramentas/elementos que costumam constituir o cinema documentário – como depoimentos, entrevistas, e um clima de reportagem e investigação – o filme mostra fragmentos da vida de uma repórter, Ligéia de Andrade. Personagem ficcional que alude a Oswald de Andrade, e que também “assinou” algumas vezes a coluna de Ferreira no Shimbun (como um pseudônimo do autor), o filme trata de suas opiniões sobre o jornalismo e sua vida em casa, na redação do jornal em que trabalha, e no seu cotidiano de repórter. Pelo próprio tema que aborda, o que fica claro no título, Nem verdade nem mentira brinca com os estatutos do documentário e da ficção. Não se trata, portanto, de um filme que visa “enganar” o espectador se passando por um documentário: tanto pela indexação quanto pela sua mise-em-scène, é claramente identificável como uma ficção.

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