O segredo dos olhos do cinema argentino

O cinema argentino vem, há alguns anos, apresentando uma série de bons e interessantes filmes. Faltava, porém, aquele filme que não nos escapa da memória, aquele com aura de clássico, aquela impressão que temos, ao assistir a um filme, de estarmos defronte a uma obra única. Pois agora o cinema argentino tem este filme: O segredo dos teus olhos (El secreto de sus ojos, Juan José Campanella, 2009). Infelizmente este texto só pode ser publicado após o Oscar; pois, se antes o fosse, ia soar quase como um prenúncio. Era de minha convicção que este filme ia ganhar o prêmio, tal o êxtase cinematográfico que ele nos causa. Embora eu tenha visto dentre os concorrentes apenas A fita branca (Das weisse Band – Eine deutsche Kindergeschichte, Michael Haneke, 2009), não creio que os outros filmes são páreos para o argentino. Curiosamente, toda a crítica brasileira apostava no filme de Haneke, o que se provou absurdo, por várias razões. Em primeiro lugar, A fita branca é um filme interessante e bom, mas nada além disso. É muito longo, e se tirássemos meia hora do filme, nada mudaria, salvo ficar mais palatável. Em segundo lugar, é um filme com uma dramaturgia e uma visão de mundo muito apegada aos anos sessenta, o que explica em parte o gosto da crítica por ele. Por fim, e talvez mais importante, é que o voto do Oscar é dado pelos membros da Academia, e isso implica em filmes que dramaturgicamente desafie o espectador, o envolva e o emocione, o que o filme de Haneke pouco faz. Logo, era meio óbvio (ainda que em premiações isso nem sempre aconteça) que o Oscar iria para o filme argentino.

cena do filme O segredo dos teus olhos
cena do filme "O segredo dos teus olhos"

Este aspecto, de ser um filme com dramaturgia muito próxima do cinema de Hollywood, talvez seja uma das coisas que mais nos impressionem nele. Confesso que após assisti-lo pela primeira vez, fiquei com uma sensação de depressão após sair do cinema. Ao conversar com um amigo sobre o mesmo, vi que esta sensação era compartilhada. E ele definiu bem um dos porquês: – Os caras conseguiram fazer um filme de Hollywood fora de Hollywood – dizendo de modo sucinto aquilo que nos assombrava. O filme, além de possuir esta competência rara, conseguiu ainda dar um toque latino, com uma emoção dada pela recordação que lembra por vezes o de Era uma vez na América (Once upon a time in America, Sérgio Leone, 1984).

Quando vemos um filme como Batman – o Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan, 2008), com seu roteiro que versa sobre vários assuntos, ritmo alucinante, tintas negras, qualidade fotográfica incrível, é comum sentirmos uma espécie de inveja, por saber que estamos a uma distância enorme em relação a um tipo de produção e dramaturgia como esta. E, de certa forma, esta diferença serve de consolo. Agora, quando vemos um filme de um país vizinho, similar, em condição econômica problemática, fazer um filme como esse é de estarrecer. O Segredo dos seus olhos é um roteiro brilhante e complexo, sem nenhuma ponta solta, aliando a história de um crime a uma história de amor, misturando elementos de ficção e realidade, política e sociedade. Versa sobre o sistema, e como as pessoas dentro dele podem fazer a diferença, ou pelo menos tentar.  Possui um refinado senso de humor. De quebra, possui um dos melhores argumentos que ouvi contra a pena de morte. A direção é primorosa, mostrando que não é acaso a escolha de Campanella para dirigir séries de ponta nos EUA, como House e Law and order. A cena onde os dois amigos vão tentar buscar provas na casa da senhora é exemplar em como o diretor deixa o espaço claro para o espectador, utilizando deste espaço para fins dramáticos e mise en scène refinada. Você sabe onde exatamente as personagens estão dentro daquela casa, o que não é fácil de fazer. O filme é recheado de cenas inesquecíveis. Como quando o marido depõe pela primeira vez, resolvida num único plano; a cena onde o marido fala com a mãe do assassino e acaba por se emocionar; a cena onde Pablo chega à conclusão de onde podem achar o assassino, pela paixão dele; a cena onde a juíza faz com que o assassino confesse seu crime e um plano-seqüência, memorável, ocorrido no estádio. Até o futebol neste filme está bem filmado, o que é raro. A música é muito feliz, assim como a edição de som. Por fim, a fotografia é charmosa, cheia de estilo, bonita e adequada ao clima do filme. E temos tudo isso por 2 milhões de euros, que é um orçamento até abaixo ao de muitos filmes nacionais.

E por falar em cinema nacional e fotografia, abro espaço para falar do diretor de fotografia do filme, Félix Monti, que fotografou filmes no Brasil durante um certo período e, ao que tudo parece, acabou sendo “queimado” por aqui. Monti ficou conhecido por fotografar dois filmes que tiveram boa repercussão internacional num mesmo ano, A história oficial (La historia oficial, Luís Puenzo,1985), filme que ganhou também o Oscar de melhor filme estrangeiro e o prêmio do júri em Cannes, e Tangos, o exílio de Gardel (Tangos, l’exil de Gardel, Fernando Solanas, 1985). Depois disso, fez uma incipiente carreira nos EUA e internacional, acompanhando Puenzo em Gringo velho (Old Gringo, Luís Puenzo, 1989) e La peste (Luís Puenzo,1992), passando por filmes como De amor e de sombras (Of love and shadows, Betty Kaplan, 1994). Depois disso, passa a filmar no Brasil, filmando O quatrilho (Fábio Barreto, 1995), Que é isso companheiro (Bruno Barreto, 1997), Bella Dona (Fábio Barreto, 1998) e os fatídicos O auto da compadecida (Guel Arraes, 2000) e A partilha (Daniel Filho, 2001). Depois desses dois filmes, fez apenas A paixão de Jacobina (Fábio Barreto, 2002) e Caramuru, a invenção do Brasil (Guel Arraes, 2002). Muito provavelmente, foram o Auto da compadecida e A partilha que inviabilizaram a carreira de Félix Monti por aqui. A história é curiosa. O auto da compadecida foi captado para ser uma minissérie. Quando a assisti no cinema, percebiam-se dois fatos muito estranhos em relação à imagem. Em primeiro lugar, a imagem era um pouco lavada e sem definição. Em segundo lugar havia um excessivo uso do obturador da câmera com ângulo mais fechado, criando uma imagem estroboscópica sem qualquer função dramática. Pesquisando, acabei por descobrir o motivo por detrás destas características. A imagem lavada era em função de que a Globo, que sempre apanhou da tecnologia cinematográfica (lembro uma vez um engenheiro da emissora “provando” que a cópia de um filme tinha resolução de cerca de 800 linhas!), ter escolhido filmar com o novo negativo Primetime 640T 5620 da Kodak.  A história do Primetime é curiosa. A Kodak o lançou especialmente para as séries de TV, daí o nome, já que primetime pode ser traduzido como horário nobre em português. Era um negativo de qualidade inferior e mais barato. Lembro que uma vez a produtora O2 o queria utilizar num comercial de maionese, e a Kodak não vendeu o negativo para ela, pois só o vendia exclusivamente para TVs. Desse modo, a O2 não conseguiu sua liberação. Suponho que por conta da qualidade inferior, a Kodak temia que este negativo fosse levado para a tela grande. Pois foi justamente o que a Globo fez em O auto da compadecida. Como a ASA desse negativo era muito elevada, sendo de ASA 640 no tungstênio ou 400 no daylight, Félix teve que recorrer ao obturador fechado como forma de cortar a exposição. Eu já filmei com negativo daylight 250ASA, e é dificílimo reduzir a exposição devido à alta sensibilidade, tendo que utilizar uma série de filtros para tal. Imagine então com uma sensibilidade como a do Primetime. O resultado foi aquilo que vi na tela. Ao que tudo indica, a culpa de Félix foi aceitar este negativo, já que a Globo impunha este filme aos seus longas na época. Mas o golpe final foi com A partilha. Eu não vi o filme, mas lembro da polêmica. A imagem estava muito ruim, e segundo um outro amigo meu, por conta de blow up anamórfico realizado fora do país. Talvez seja coincidência, mas a carreira de Monti entrou em declínio depois disso aqui no Brasil. É por isso que fiquei muito contente em ver que a fotografia de O segredo dos teus olhos foi por ele realizada. De certa forma vejo como uma vingança. E há ainda outro fato muito interessante. O filme foi feito com a RED. Enquanto hoje em dia muitos centralizam na câmera as possibilidades, com um certo deslumbre em relação a isto, Monti, um senhor de 72 anos, mostra que iluminar bem é mais importante do que manejar as câmeras. Para isto há técnicos. Diretor de fotografia tem que iluminar, saber apertar botões é uma conseqüência. Qualquer um com treino o faz, enquanto iluminar é uma arte. E, entre os filmes da RED que vi, este é um dos que apresenta os melhores resultados. O espectador pode perceber as altas luzes um tanto estranhas em seus contornos, assim como os tons vermelhos que tendem ao salmão, mas estas são características desta câmera. Félix resolve as cenas com muita habilidade, como quando percebemos que a luz natural no corredor do tribunal se foi e Félix opta por planos over the shoulder fechados para disfarçar a luz do fundo, salvando a diária. A continuidade se mantém e o espectador nem percebe o truque.

Por fim, resta aos que se deprimiram ao ver esta obra-prima a pergunta: como o cinema argentino conseguiu chegar nisso, parecendo que o cinema brasileiro vai levar 200 anos para tal? Podemos levantar várias hipóteses. Uma formação educacional melhor, sendo que o nível cultural do argentino médio sendo superior ao do brasileiro. Poderíamos falar que o roteiro labiríntico vem de uma tradição que remonta a Borges e outros escritores argentinos. Mas o que eu acredito que seja a principal diferença não reside nisso. Reside numa palavra: mais meritocracia. O cinema argentino, ao contrário do brasileiro, é feito por filmes de orçamentos muito baixos, uma vez li que na faixa dos 300 mil dólares. Este simples fato acaba por estimular a criatividade, com os cineastas tendo que resolver seus problemas com este orçamento. Todo o cinema moderno, mesmo o de Hollywood, é feito por pessoas que começaram dessa forma, fazendo filmes baratos. A idéia é simples. Se o sujeito faz um filme bom barato, a chance de ele fazer um filme muito bom com bastante dinheiro aumenta. Fazer filme bom com muito dinheiro é infinitamente mais simples que um filme bom com pouco dinheiro.  Isso faz com que os cineastas tenham que se atualizar. Os filmes argentinos versam sobre as pessoas da classe média, gente como o público que vai ao cinema no mundo todo. Repare como em O segredo dos seus olhos o tempo todo o ponto de vista é o da vítima, e nunca o do assassino, o que invariavelmente ocorre no cinema brasileiro. Eles conseguem tratar de temas atuais, como este filme que trata do sentimento de justiça e do amor. Vemos muito mais cineastas dos anos sessenta filmando no Brasil que na Argentina. Um filme bom argentino é um filme que mira o presente e o futuro, enquanto um filme bom no Brasil é aquele que mira… os anos sessenta! Esta é a cabeça da crítica, de grande parte dos cineastas e dos órgãos de fomento ao cinema brasileiro. O resultado é o que se vê nas telas, o cinema argentino sendo premiado pelo mundo, e o nosso não conseguindo sair do mercado interno.

Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem 3 comentários

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    ANDRE VARELA

    OS TEUS TEXTOS ME AJUDAM MUITO. PRINCIPALMENTE PELA FALTA DE CONHECIMENTO DE FOTOGRAFIA CINEMATOGRAFICA EM MINHA CIDADE. UMA ARTE MUITAS VEZES VISTA COMO PROIBITIVA, OCULTA. MAS ATRAVES DE TEUS TEXTOS ESSAS BARREIRAS SAO POSTAS DE LADO. OBRIGADO.

    ANDRE VARELA
    MANAUS

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