Kieślowski e o Outro Mundo

“Há uma ligação entre as pessoas, há fios invisíveis”

Krzysztof Kieślowski (*)

O começo da carreira do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996) é marcado pelos documentários de curta-metragem, que abordam o cotidiano de uma forma bastante direta. Nessa época, ele acreditava que o tema só interessaria aos poloneses: o cotidiano de suas cidades, a burocracia governamental atrapalhando a economia do país, e até mesmo os funerais, soldados que ficaram cegos na Segunda Guerra Mundial, as condições de trabalho, as greves, os tuberculosos, a gravidez fora do casamento, e a corrupção. Com o tempo, ao falar da humanidade, Kieślowski foi percebendo que existem questões que ultrapassam fronteiras. A partir de certo ponto Kieślowski passa para o longa-metragem de ficção, embora seu trabalho ainda se remeta de alguma forma ao cotidiano dos poloneses. Em 1988, filma Decálogo (Dekalog), uma série para a televisão baseada nos Dez Mandamentos. A Dupla Vida de Véronique (Podwójne Życie Weroniki, 1991) é vista como uma obra de transição entre o cinema que ele fazia na Polônia e seus últimos trabalhos, os filmes da Trilogia das Cores (1993-4). Se antes seus documentários procuravam suplantar o que Kieślowski considerava uma tendência do cinema polonês ao produzir falsas representações da realidade, a partir de 1991 pode-se dizer que o cineasta abandona a realidade – pelo menos no sentido materialista do termo. O cotidiano ainda é o palco, porém a abordagem direta dos documentários dá lugar a um mergulho na subjetividade humana e nos detalhes da vida, geralmente negligenciados.

Véronique Era Weronika

Polônia. Weronika, que canta maravilhosamente, sofre de doença cardíaca. Ela deve escolher – continuar a cantar com toda tensão e stress que isso envolve e arriscar sua vida, ou desistir da carreira de cantora pra levar uma vida normal. Ela ganha um concurso de canto e escolhe a carreira. Durante um concerto Weronika sofre um ataque cardíaco e morre.

França. Véronique é o duplo de Weronika. Ela, também, possui uma bela voz e uma doença cardíaca. Quando Weronika sofre, Véronique sente que deve evitar a situação que leva à dor. Véronique rejeita sua carreira de cantora e ensina música numa escola primária. Certo dia Alexandre, contador de histórias, que também trabalha com marionetes, visita a escola. Véronique se encanta por ele e lê todos os livros que Alexandre escreveu. Dias depois, ela recebe mensagens misteriosas – uma caixa de charutos vazia, um cadarço de sapato, uma fita com sons do bar de uma estação de trem. Ela encontra o bar, Alexandre está a sua espera. Depois de fazerem amor, Alexandre encontra umas fotografias que Véronique tirou quando esteve visitando a Polônia. Numa delas, ele vê Weronika e pensa que é Véronique. Somente então Véronique percebe que tem (ou tinha) um duplo, confirmando sua sensação de que não estava sozinha no mundo. Ela sente que Alexandre é seu destino, mas sua ilusão é destruída. Ele faz duas marionetes, uma de Véronique, a outra, idêntica, de Weronika, e pretende usar a vida e as emoções de Véronique para seu próprio interesse (escrever um livro que conta a exata história da vida de Véronique). Ela o abandona e retorna para a casa da família em busca do pai.

As Mulheres de Kieślowski

Kieślowski definiu A Dupla Vida de Véronique como um filme sobre sensibilidade, pressentimentos e relacionamentos que são difíceis de nomear porque são irracionais: É um filme sobre emoções puras e nada mais, não existe ação (STOK, Danusia. 1993: p. 189). Este filme, afirmou o cineasta, não poderia ser sobre um homem, as mulheres dão mais importância a “essas coisas”. Elas possuem muito mais intuição e sensibilidade. Todavia, Kieślowski insistiu em dizer que não divide as pessoas entre mulheres e homens, embora concorde com a acusação freqüente na Polônia de que ele retratava as mulheres como seres unidimensionais e que não compreendia a essência delas.

Com um cadarço esticado sobre seu exame cardiológico, Véronique parece “enxergar” a morte de Weronika

O próprio Kieślowski admitiu que não houvesse mulheres, ou que elas eram representadas negativamente em filmes como Pessoal (Personel, 1975), A Cicatriz (Blizna, 1976), A Calma (Spokój, 1976), O Cinemaníaco (Amator, 1979). Apenas a partir de Sem Fim (Bez Końca, 1984) as mulheres se tornaram seres mais complexos. Já no Decálogo (Dekalog, 1988), o cineasta procurou se defender lembrando que se referem a mulheres, homens, garotas e garotos. Na Trilogia das Cores, A Liberdade é Azul (Trois couleurs: Bleu, 1993) é sobre uma mulher, A Igualdade é Branca (Trzy kolory: Bialy, 1994) é sobre um homem, e A Fraternidade é Vermelha (Trois couleurs: Rouge, 1994) é sobre um homem e uma mulher (Idem: pp. 173-4). De fato, em A Dupla Vida de Véronique encontramos duas mulheres em uma. Atuando como Véronique/Weronika, a atriz Irène Jacob explicou que Kieślowski pedia que ela transferisse coisas suas para as personagens – mas tudo era ensaiado, nunca improvisado. O que não seria incomum, não fosse o fato de que intuições preenchem o filme mais do que os diálogos:

“Muito da ação consistia em olhar para uma luz. Às vezes Véronique desperta, ela vê uma luz e se aproxima… um reflexo no espelho. Às vezes, a ação era essa. Essas coisas enchem nosso cotidiano e já não as notamos. Claro que se nos perguntam o que fizemos não dizemos que olhamos o reflexo do sol ou as gotas de água que descem sobre uma janela, mas falamos de coisas que fizemos. Mas o cotidiano também está repleto de intuições, de pressentimentos de solidão, às vezes de momentos intensos de plenitude. Sentimos-nos plenos, animados e, às vezes, vazios, ocos e, portanto, muito receptivos ao que…  às pequenas coisas que podem acontecer no exterior. Eu acho que, afinal, (…) Krzysztof quis fazer um filme sobre isso, sobre coisas que não se filmam, seus sentimentos, suas intuições. As pequenas coisas que são, afinal, a grande força motriz do que acabamos fazendo, mas que são difíceis de retratar e difíceis de filmar” (**)

Entretanto, Slavoj Žižek afirma que as mulheres de Kieślowski tendem para a histeria. Apesar da opinião de Kieslowski, Žižek insiste que o Decálogo está centrado no homem. Quase todas as histórias são contadas do ponto de vista masculino, as mulheres ficam reduzidas ao papel de agentes de irrupções histéricas. Segundo Žižek, no Decálogo as mulheres são excessivas, um perigo para elas próprias e para os outros. Como esposas, são infiéis, atacando os maridos quando eles estão mais vulneráveis – como quando tem câncer ou são impotentes, no Decálogo 2 e 9, respectivamente. Como mulheres fatais, humilham o rapaz inocente que tem um fraco por elas (no Decálogo 6). Como filhas, são possuídas por uma raiva incestuosa (no Decálogo 4). Às vezes elas encenam o que Žižek chamou de “espetáculos histéricos”, fazendo exigências incondicionais como no Decálogo 3, quando um homem tem de abandonar a família no dia de Natal para ajudar a ex-amante a encontrar o marido. Ou no Decálogo 4, quando o pai tem de enfrentar a provocação incestuosa da filha (embora talvez ele não seja o verdadeiro pai dela). No Decálogo 6, Magda descobre que está sendo observada, mas não fecha a cortina e entra num jogo com Tomek. No Decálogo 7, Majka destrói um delicado equilíbrio familiar ao fugir com a filha biológica. Então Žižek conclui: “Não se trataria (…) do dispositivo básico da mulher histérica que ameaça a estabilidade do homem, e até sua própria identidade, o dispositivo descrito nos fins do século XIX por Richard Wagner e Otto Weininger, por August Strindberg e Edvard Munch?” (ŽIŽEK, Slavoj. 2009: p. 58)

Para corroborar seu argumento, Žižek trás o testemunho de Alicja Heiman e seus escritos sobre os personagens femininos nos últimos filmes de Kieślowski (Idem: p. 58n47). Em A Dupla Vida de Véronique e na Trilogia das Cores, nota-se uma mudança no nível do aspecto físico e da roupa. No Decálogo, Kieślowski escolheu atrizes sexualmente pouco atraentes, ou então desvalorizou as bonitas (mal vestidas, desleixadas, filmadas com uma iluminação que revela suas imperfeições – Decálogo 2, 4 e 6). Irène Jacob (Véronique/Weronika em A Dupla Vida de Véronique e Valentine em A Fraternidade é Vermelha), Julie Delpy (Dominique em A Igualdade é Branca) e Juliette Binoche (Julie em A Liberdade é Azul), que além de belas, Heiman enfatizou, “são tratadas enquanto tais pela câmara, que percorre seus corpos de forma amorosa” (Idem). Com exceção de A Igualdade é Branca, onde no final acontece uma encenação do amor cortês pela dama cruel (Dominique) admirada em sua inacessibilidade, nos outros dois filmes da trilogia a história é contada a partir da perspectiva feminina – exercitando a tal percepção intuitiva dos acontecimentos.

Uma percepção intuitiva que faz com que elas “saibam” mais do que os homens, devido a uma capacidade “superior”, um dom que os homens não possuem. De acordo com Žižek e Heiman, a ideologia desses filmes reduz o feminino a uma intuição pré-racional. Na opinião de Heiman, quando Véronique, Julie e Valentine ficam repetindo “não sei”, nada mais revelam do que sua incapacidade de tomar consciência do mundo – o que as levaria a dizer coisas como “estou vendo” ou “estou prevendo”. Entretanto, esclarece Žižek, tomar consciência é tudo que elas não são capazes de fazer, e acabam por reforçar estereótipos e preconceitos:

“E parece evidente que essa aparente reafirmação do ‘feminino’, longe de constituir uma ameaça real para o universo patriarcal, é tão-só precisamente o inverso e o complemento da figura acima referida das mulheres histéricas com tendência para explosões teatrais excessivas. Uma mulher é boa na medida em que conserva sua atitude passiva e intuitiva pré-racional, renunciando a todo impulso agressivo para se afirmar. No momento em que sucumbir a essa tentação, transformasse num monstro histérico patético que é uma ameaça para todos, inclusive para si própria…” (Ibidem: p. 59)

O Corpo Erótico e o Imaginário

É curiosa a justaposição da queda do corpo morto de Weronika em pleno palco durante um concerto na Polônia e do corpo de Véronique em pleno ato sexual na França. Mas antes dos corpos nus teremos ainda a última imagem do mundo dos vivos pelos olhos de Weronika (da alma dela?) enquanto seu caixão é coberto de terra – a breve tela preta entre a cena do cemitério e a do casal fazendo sexo intensifica a conexão bizarra entre a morte e o sexo. O ponto de vista do morto já nos havia sido mostrado por Carl Theodor Dreyer em O Vampiro (Vampyr, 1932). Entretanto, de acordo com Jacques e Solange Déniel, Kieślowski vai além e articula a descontinuidade do ser (a morte) e o rompimento da solidão através do corpo nu (o erotismo), que revela um para além do corpo – no final da seqüência, uma lágrima escorre pelo rosto de Véronique como a chuva pelo rosto de Weronika enquanto cantava no princípio do filme – talvez Véronique estivesse chorando pela morte de Weronika. Enquanto ela, a cantora, morre (ou, talvez, se mata), Véronique abandona o curso de canto e se entrega a Alexandre. Neste outro encontro, os corpos não estão mais nus, veremos apenas seus rostos em perfil (DÉNIEL, Jacques; DÉNIEL, Solange. 1991: pp. 217-8).

ponto de vista de Weronika em seu próprio enterro. Momentos finais junto aos vivos?

A partir de A Dupla Vida de Véronique, cresce o interesse de Kieślowski em filmar a intimidade do ato sexual. Isso acontece apesar dele concordar que a presença da câmera modifica a realidade daquilo que é filmado – este foi um de seus argumentos para deixar de filmar documentários. Segundo Jacques Kermabon, a força e o sucesso daquelas cenas de sexo se devem a vontade de filmar o gozo de Véronique direto em seu rosto, de concentrar aí a atuação de Irène Jacob. Poupando Irène da prova da nudez – que, de acordo com Kermabon, no cinema é quase sempre sinônimo de coito -, Kieślowski teria conseguido mostrar o ato sexual (as oscilações do prazer, aquele momento de esquecimento de si, do orgasmo) mil vezes melhor do que se filmasse atores na posição “papai e mamãe”. Para Kermabon, o cinema, assim como o ato sexual, se passa também (sobretudo?) em nossas cabeças – no imaginário (KERMABON, Jacques. 1991: p. 106).

A Guinada Para o Interior

A certa altura, Kieślowski imaginou fazer dezenove versões de A Dupla Vida de Véronique. Desejo impossível de realizar, mas o cineasta brincou com a idéia de que em cada cinema o filme teria um final diferente. No final, Kieślowski resolveu fazer apenas mais uma versão para o mercado norte-americano. Em vez de deixar aquela seqüência final em que Véronique para com o carro no portão da casa do pai e toca na árvore, enquanto dentro da casa o pai para de trabalhar com a madeira, optou-se por colocar algumas palavras na boca dele para que ficasse mais claro de quem se tratava: “Véronique! Está frio. Venha para dentro”; “Pai”, ela responderia, correndo em sua direção (STOK, Danusia (ed.). OP. Cit.: p. 188).

Foi por ocasião de um Festival de cinema em Nova York que Kieślowski reparou a tendência do público norte-americano a se confundir com a última cena. O filme estava para ser lançado por lá, foi então que ele propôs o final alternativo. Kieślowski percebeu que os norte-americanos não compreenderiam um conceito básico para cultura européia. Lá, voltar para a casa da família é um valor tradicional. O cineasta foi enfático neste ponto, podemos encontrar esse valor cultural na Odisséia, de Homero, na literatura, no teatro e nas artes ao longo dos séculos. Particularmente para os poloneses, que são muito românticos disse o cineasta, a casa da família é um lugar essencial em suas vidas. E foi por esse motivo que Kieślowski colocou aquela cena no final da versão norte-americana de A Dupla Vida de Véronique (Idem: p. 7.). O cineasta russo Andrei Tarkovski comentou certa vez que o excesso de chuva em seus filmes nada tinha de metafórico. Ele apenas estava reproduzindo um aspecto da natureza que é onipresente na vida do russo, inclusive o clima melancólico decorrente da chuva. Portanto, para os russos na platéia do cinema, aquilo nada tinha de etéreo ou enigmático (TARKOVSKI, Andrei. 2002: p. 255).

Com Acaso (Przypadek, 1981), Kieślowski faz um comentário sobre a situação política da Polônia a partir da criação do sindicato Solidariedade. Havia um sentido de urgência no cinema polonês, como se tudo pudesse acabar no momento seguinte. E foi o que aconteceu. Instaurou-se a lei marcial no país e as grandes manifestações populares contra a situação econômica deram lugar a reuniões clandestinas em apartamentos e cemitérios. Com Sem Fim, Kieślowski dá sua grande virada para o interior do ser humano. O filme conta a história do fantasma de um homem recém falecido que passa a acompanhar a vida de sua esposa e filho. Surge então no cinema de Kieślowski a crença numa comunicação secreta e misteriosa entre as pessoas. A viúva fará contato com o marido defunto. Embora Kieślowski insista em dizer que não filma metáforas, é como se em Sem Fim os fios entre os seres humanos (cortados pela lei marcial) continuassem a existir noutra dimensão (*).

A Dupla Vida de Véronique, mais do que nunca, está em busca de fios invisíveis. Realizado após a queda do Muro de Berlim em 1989, este filme é a conexão entre as fases polonesa e francesa de Kieślowski. As ligações sobrenaturais de Sem Fim estão de volta, agora entre Véronique e Weronika. “Há uma ligação entre as pessoas, há fios invisíveis”, dizia Kieślowski (*). Nesse sentido, a presença de um personagem como Alexandre, alguém que trabalha com marionetes (ainda que sem fios) é emblemática. Da mesma forma, o cadarço de sapato que Véronique estica em frente de seu exame do coração (que mostra a típica linha descontínua dos batimentos cardíacos). O cineasta se afasta da dimensão concreta, temas políticos como as manifestações em Varsóvia (na seqüência em que Weronique localiza Véronique no ônibus de turismo) e os atentados da estação Saint Lazare em Paris (durante a seqüência do encontro entre Véronique e Alexandre notamos a remoção de um automóvel queimado, na fita cassete que ele mandou para ela parece ocorrer uma explosão) são apenas um pano de fundo que em nada afeta o andamento do filme (*). Às críticas de que Kieślowski fazia um cinema alienado, ignorando os acontecimentos políticos que estavam ocorrendo na Polônia, o cineasta responde que não está interessado no assunto (STOK, Danusia (ed.). OP. Cit.: p. 190).

A Literatura Conseguiu, Mas o Cinema Não!

Kieślowski insistia em dizer que não possuía grande talento para cinema, tendo abraçado a profissão por acaso (***). Cada um de seus filmes, alcançando ou não seu objetivo, são degraus na tentativa de capturar aquilo que está dentro de nós. Entretanto, o próprio Kieślowski admitiu, não há como filmar isto! Ele acreditava que a literatura está mais aparelhada para alcançar este objetivo. O cinema, o cineasta polonês insistiu, pode apenas chegar perto do que vai dentro de nós, mas a literatura estaria em condições de descrever nosso interior – em sua opinião, alguns daqueles que conseguiram foram os dramaturgos gregos, Dostoievski, Kafka, Faulkner, Camus, Vargas Llosa e Shakespeare. A literatura conseguiu, mas o cinema não, porque é muito difícil escapar da interpretação literal inerente à sétima arte. Foi o que disse Kieślowski, para quem é inútil procurar significados simbólicos por trás das imagens seja lá do que for. Ele afirmou que não filma metáforas, as pessoas é que acreditam encontrá-las em suas obras (STOK, Danusia (ed.). OP. Cit.: pp. 193, 194-5.).

Ultrapassar o literalismo estava entre os objetivos de Kieślowski – pouco antes de morrer, ele disse que não conseguiu, e tampouco conseguiu descrever o que acontecia no interior dos protagonistas de seus filmes. Ele sugeriu que Orson Welles (1915-1985) conseguiu isso uma vez (com Cidadão Kane, Citizen Kane, 1941), outro cineasta que em sua opinião alcançou esse objetivo foi Andrei Tarkovski (1932-1986). Ingmar Bergman (1918-2007) e Federico Fellini (1920-1993) teriam também conseguido alcançar algumas vezes. O último exemplo que Kieślowski citou foi Ken Loach, com Kes (1969). Se um filme realmente pretende alcançar alguma coisa, afirmou o cineasta, é que alguém consiga encontrar a si mesmo nele. Certa vez ele foi abordado por um jornalista que confessou se surpreender ao perceber que em A Dupla Vida de Véronique Kieślowski inventou um personagem que realmente existia – ele próprio. Noutra oportunidade, uma menina de quinze anos disse que este filme lhe mostrou que existe algo como uma alma. São pessoas como essas, concluiu Kieślowski, que fizeram valer a pena todo o esforço para realizar A Dupla Vida de Véronique (Idem: pp. 195-6 e 210-1).

Krzysztof Kieślowski Era Weronika?

De acordo com Slavoj Žižek, os últimos filmes de Kieślowski resvalam perigosamente no que ele chama de “espiritualidade gnóstica da Nova Era”. Ou melhor, essa idéia de que o mundo é assombrado por poderes espirituais secretos onde a comunicação extra-sensorial entre as duas Verônicas, e também as coincidências entre os filmes da Trilogia das Cores, seriam como que uma paródia da nova tecnologia do ciberespaço então nascente.  Žižek cita como exemplo a seqüência inicial de A Fraternidade é Vermelha, com os cabos telefônicos tentando tornar visíveis os fluxos irrepresentáveis de sinais – que aparecem como forças ocultas que afetam a comunicação entre os indivíduos. Sendo assim, o próprio tema das realidades alternativas de Kieślowski aponta para a tecnologia digital: a irrepresentabilidade do que acontece por trás da interface digital, o próprio ciberespaço foi colonizado por uma imaginação gnóstica que admite a presença de poderes espirituais secretos (ŽIŽEK, Slavoj. Op. Cit.: pp. 25-6.).

Essa imaginação gnóstica seria um componente da própria trajetória de Kieślowski, exemplificado em sua obra pela passagem do documentário à ficção. Por outro lado, Žižek sustenta que a hipótese de início de carreira de Kieślowski, de que a falsa representação da realidade no cinema polonês (ausência da imagem adequada da realidade social) deveria ser combatida com documentários, levou gradativamente o cineasta a perceber que quando abandonamos a falsa representação e abordamos diretamente a realidade acabamos por perdê-la de vista – razão pela qual abandonou os documentários e abraçou a ficção. Este é o sentido da afirmação de Kieślowski, que disse claramente que a realidade deve ser filmada como ficção:

“Percebi quantas facetas da vida um documentário não pode abordar (…). Ultimamente, me parece que eu faço filmes sobre os pensamentos e emoções mais profundos das pessoas, aquilo que elas não mostram a ninguém. Para filmar isso preciso de atores, de lágrimas de glicerina, de cenas de morte. Tudo tem de ser falso para parecer real no filme. Graças a essas coisas falsas, posso dar um sopro de vida à história. Tudo é mais interessante na vida real, mas nunca deve ser filmado na vida real. Por isso não faço mais documentários” (****)

Outro aspecto da biografia de Kieślowski que Žižek viu em filmes como A Dupla Vida de Véronique foi uma escolha entre a vocação (a escolha pela carreira musical que conduz Weronika à morte) e a vida simples e sem ambições. Kieślowski sabia de sua doença cardíaca, mas, como a polonesa Weronika ele escolheu a arte/vocação de cineasta e morreria pouco tempo depois de terminar a Trilogia das Cores – o produtor revelou que o cineasta já se sentia cansado mesmo antes de iniciar o extenuante trabalho de dirigir os três filmes em apenas nove meses. Do ponto de vista de Žižek, Weronika abordou o essencial de forma direta e brutal, cujo ápice foi sua morte durante o desempenho musical perfeito no concerto.  Já Véronique, que vimos ir à casa do professor para dizer que abandonaria as aulas de canto, opta por uma viagem consciente ainda que vivida através do Outro – a alegoria literária do romance escrito por Alexandre (o manipulador de marionetes). Véronique, Žižek dispara , é melancólica e reflexiva – uma sentimental. Em contraste com Weronika, entusiasmada por sua opção pela arte – uma ingênua. Véronique não só aproveita sua consciência do caráter suicida da escolha de Weronika, mas compromete seu desejo escolhendo a vida em detrimento da Causa (arte/vocação) – o que Žižek chamou de “traição ética”.  Ele conclui que é a presença dessa escolha trágica que impede a redução de A Dupla Vida de Véronique a um conto da Nova Era (New Age). Ainda de acordo com Žižek, Veronika Decide Morrer, o best seller de Paulo Coelho lançado em 1998, é uma versão obscurantista New Age do filme de Kieślowski.

“(…) A diferença com relação à Kieślowski não pode deixar de saltar aos olhos: qualquer noção da tensão inerente e irreconciliável entre levar uma vida sem ambições e abraçar uma vocação (musical ou outra) está ausente, pois o universo de Paulo Coelho é um universo em que reina a harmonia preestabelecida das duas dimensões. Essa escolha ética entre missão e vida, em torno da qual giram os filmes de Kieślowski, repete-se de diferentes formas numa série de filmes recentes, embora nunca chegue a atingir a pungência de Kieślowski (…)”   (ŽIŽEK, Slavoj. Op. Cit: p. 39-40)

Ao fundo, Alexandre assiste Véronique Intrigada com sua pequena sósia sem alma.

Quem é Você? O que Você Deseja?

Krzysztof Kieślowski e Krzysztof Piesiewicz trabalharam em parceria no roteiro de A Dupla Vida de Véronique. Uma obra que fala de coisas difíceis de serem descritas. Kieślowski explicou que o roteiro “fala de coisas que não se dizem, porque se forem ditas parecerão triviais ou banais. Elas tocam certa sensibilidade, uma premonição, numa delicada área da vida que é muito difícil de ser descrita. Se não houvesse certa tensão nesse filme, resultante dos sentimentos e emoções da personagem, esse filme não existiria. Sabíamos disso desde o começo” (****). Kieślowski procurou definir A Dupla Vida de Véronique

“O tema principal desse filme é ‘viva mais cuidadosamente’, isso porque não se sabe que consequências suas ações podem trazer. Não se sabe o que elas farão a pessoas que você conhece ou não conhece. Você não sabe como suas ações podem influenciar a elas. Viva com cuidado, porque há pessoas à sua volta cujas vidas e bem-estar depende de suas ações. Isso concerne a todos nós, porque esses caminhos, as pessoas e seu destino se entrecruzam o tempo todo, quer estejamos conscientes disso ou não. Para mim, responsabilidade é isso. Viver com cuidado. Viver com atenção. Deveríamos observar as pessoas à nossa volta e, acima de tudo, nós mesmos” (****)

Logo a seguir, entretanto, essa sua mesma responsabilidade o leva a confessar algo que contradiz sua fala anterior. Mas talvez apenas deixe claro que lidar com os próprios sentimentos não é tão simples assim. Aliás, um tema que Kieślowski reconhece também na capacidade ou não que atores e atrizes têm de não esconder seus próprios sentimentos por trás dos personagens – escondê-los pode transformar seus personagens em clichês. As pessoas, disse o cineasta, devem ser capazes de não sentir vergonha de expor suas fraquezas. A vida nos leva a esconder nossas fraquezas e isso acaba nos empurrando para a solidão porque não compartilhamos nossos sentimentos. Sem dúvida, uma boa idéia de Kieślowski, mas que ele reconhece tratar-se de uma utopia. É o que o diagnóstico dele sobre si mesmo afirma:

“Eu não gosto de mim especialmente, então, tento não me observar com muita frequência. Uma vez fiz um documentário chamado Entrevistas (Gadające Głowy, 1980). Fiz duas perguntas aos entrevistados: ‘Quem é você?’ e ‘O que você deseja?’ Depois, fiz a mim mesmo essas perguntas e percebi, de imediato, que eu mesmo não tenho respostas. Eu não sei quem sou e não sei o que quero. No máximo, quero paz e calma, mas eu nunca consegui e talvez nunca consiga (…)” (****)

Referências Bibliográficas

DÉNIEL, Jacques; DÉNIEL, Solange.  Krzysztof Kieślowski in BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991.

HEIMAN, Alicja.  Women in Kieślowski’s Last Films in COATES, Paul (org.). Lucid Dreams. Citado em ŽIŽEK, Slavoj. 2009.

KERMABON, Jacques.  Coït in BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs.) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991.

STOK, Danusia (Ed.). Kieślowski on Kieślowski. London: Faber & Faber, 1993.

TARKOVSKI, Andrei.  Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2002.

ŽIŽEK, Slavoj.   Lacrimae Rerum. Ensaios Sobre Cinema Moderno. Tradução Isa Tavares e Ricardo Gozzi. São Paulo: Boitempo, 2009.

Documentários em DVD

(*) Kieślowski, Cineasta Polonês. LAGIER, Luc (Mk2 TV, 2005). Nos extras do DVD A Vida Dupla de Véronique, lançado no Brasil por Versátil Home Vídeo, 2006.

(**) Reencontro com Irène Jacob (MK2 S.A., 2005). Nos extras do DVD A Vida Dupla de Véronique.

(***) 100 Questões a Krzysztof Kieślowski (Telewizja Polska, 2003?). Nos extras do DVD Decálogo, lançado no Brasil por Versátil Home Vídeo, 2009.

(****) Conversa com Kieślowski. AYRE, Elizabeth; KOREFELD, Ruben. Films d’Ici/Sidéral/FR3, 1991. Nos extras do DVD A Vida Dupla de Véronique.


Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.

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