A caosmótica arte brasileira

No começo do século XX Oswald foi à Europa e fez compras. Ou resgates de algumas peças da subjetividade artística brasileira que estavam perdidas por lá. Primitivismo criativo, canibalismo, desejo, evocação do irracional, tudo isso estava insuflado nas vanguardas artísticas da época, altamente antropofágicas.

Voltou ao Brasil. E começou a falar pelos bares e a escrever em jornais. Haroldo de Campos leu um desses jornais bem no domingo da publicação do Manifesto Antropofágico. Pegou o telefone e logo ligou pro Júlio Bressane, que chamou o Caetano Veloso para uma cerveja, que mandou e-mails para a Lygia Clark, Hélio Oitica e Cildo Meirelles, que mandou uma mensagem pro João Moreira Salles que encontrou Tunga no avião que já partia pra França, a fim de canabalizar, por dentro, a pirâmide do Louvre[1].

Caveiras em rede por dentro da grande pirâmide demarcam a presença canibalesca do terceiro mundo no interior metafórico - que por acaso é um prisma - do primeiro.

Caveiras em rede por dentro da grande pirâmide demarcam a presença canibalesca do terceiro mundo no interior metafórico – que por acaso é um prisma – do primeiro.

Se o tempo não distendesse as relações, tal relato procederia, acrescido de tantos outros nomes[2].  Caosmose. O filósofo/psicanalista francês Feliz Guattari passou um bom tempo no Brasil e se impressionou enormemente com a mais do que comentada diversidade brasileira, e com a capacidade do brasileiro de lidar com as faltas, obviamente presentes em tantos fragmentos de culturas, abocanhando elementos da mais alta heterogeneidade para ocupar esses espaços de ausência. E com isso foi se desenhando uma complexa rede cultural capaz de provocar os mais insólitos encontros.

O processo criativo de Júlio Bressane se insere nessa teia dilatada pelo tempo de um século, mas que possui origens muito mais antigas, antropologicamente, nas culturas indígenas latino-americanas, abordadas, de calças curtas, pelos colonizadores europeus.

Os índios foram em grande parte exterminados, mas a novidade do “homem comendo homem” foi talvez um dos maiores choques culturais já experimentados. E já faz cinco séculos que circula pelo imaginário europeu.

Tudo o que é comestível é efêmero. Grande parte da natureza é comestível. Colocar o homem nessa mesma chave é altamente assustador, sendo que o sentido violento de transformação permanente ameaça o sedentarismo consolidado há 10 mil anos.  Somente humanos muito próximos à natureza poderiam praticar o canibalismo sem a terrível consciência de estar efemerizando a força da raça. Em uma reportagem de 1995, com a legitimidade de verdade de qualquer outro blog, alguns médicos chineses estariam comendo fetos abortados. “Os doutores supostamente defenderam suas ações dizendo que os embriões serviam para sua pele e saúde em geral.”[3]

Sim, é verdadeiramente assutador e não é necessário partir aos confins do inconsciente para constatar isso. Mas, a intensidade que existe na maculação da raça ao se pensar sua prática denotativa, é a mesma ao se pensar o engrandecimento humano possível a partir da prática metafórica do canibalismo. As faltas de alguns sendo minimizadas com os excessos de outros: uma distribuição mais harmônica de energia criativa. Olhar para o outro, ver a si mesmo, até um ponto em que a rede seja tão fluida, que as noções de eu e outro se dissipem.

E, a presença da antropofagia em diversos artistas evoca menos um desenvolvimento conceitual do que o eterno retorno nietzschiano: a repetição de constituintes da vida, como alegria, tristeza, angústia e, porque não, a antropofagia. Para não se odiar a eternidade por sua os retornos precedem de uma recombinação, uma variação de sentidos a cada vivência. Então, sendo tudo atualizável, a caosmose define-se por um achatamento da experiência temporal, encorpado pelas atualizações compulsórias das coisas, criando uma rede infinita de possibilidades graças à existência da arte e de sua independência do tempo. “Trata-se aqui de um infinito de entidades virtuais infinitamente rico de possível, infinitamente enriquecível a partir de processos criadores”. A atualização compulsória é um procedimento – aqui destacado como antropofágico – presente na criação de Oswald de Andrade, Haroldo de Campos e Júlio Bressane, e que será desenvolvido ao longo desse texto.

A XVIII Bienal de Arte de São Paulo, em 1998, teve sua curadoria voltada para obras realizadas sob o signo do canibalismo, das origens mais antigas até as mais contemporâneas, da forma que fosse. Então, lá se encontrariam, por exemplo, quadros de um holandês[4] vindo ao Brasil em missão artística, no século XVII, que realizou várias representações insólitas de índios brasileiros. Um bom exemplo é o quadro Índia Tairairiu (1641): um retrato de uma mulher com a austeridade de uma nobre européia, mas que é apresentada nua e segurando uma mão decepada, e carregando um pé na bolsa em suas costas.

Van Gogh foi o pintor que ganhou destaque na XXVIII Bienal de Arte de São Paulo, não por representar rituais de canibalismo, pois ele não o faz ao contrário da maioria dos pintores e escritores europeus que tangenciaram o tema até então, mas por se utilizar da antropofagia, do canibalismo, como um processo criativo. Apropriava-se da composição de obras de outros artistas (Delacroix e Millet, por exemplo) de forma integrativa, de modo a tornar a relação entre obras orgânica, e nunca em forma de cópia. O uso que fazia da paleta cromática também chamou a atenção aos curadores da XXIV Bienal de São Paulo; em muitos quadros tonaliza a pele humana como uma continuidade dos alimentos ou do tipo de chão presente no quadro – gramado esverdeado como em Passeio ao crepúsculo (1890); chão ocre em Desgastado (1881), ou como neste quadro, Os Comedores de Batatas (1885), em que duas pessoas descansam em um monte de palha, e não existem batatas à vista, mas a área cromática compreendendo os tons alaranjados do chão, da palha, dos rostos e pés suscita um grande “estado batata”.

Chegando às vanguardas européias do início do século XX, observa-se a incorporação do léxico canibal pelo movimento dadaísta para as mais diversas esferas. O pintor Francis Picabia lançou dois volumes da Revista Cannibale, por onde eram divulgados os preceitos do movimento. A antropofagia era um slogan para suas manifestações anti-burguesas, uma crítica à civilização industrialista européia, presente no processo criativo de suas colagens e paródias – canibalismo cultural. A autora do artigo, Dawn Ades,[5] ainda aposta que o conceito se valia também para a tentativa dadaísta de colar a arte na vida. “Assim, talvez, Picabia pensasse o dadaísta como sendo um canibal no sentido que seu material era a vida e não a arte.”[6]

No movimento surrealista, a aura canibal correspondeu à presença da sexualidade e do desejo nas obras. Salvador Dalí o exprimiu bastante, em consonância com as teorias da psyché freudiana, apresentando formas fálicas, mas não sensualizadas. Pelo contrário, apresenta-as comestíveis, macias, como em seus relógios moles, e neste quadro Canibalismo de Outono, realizado em 1936.

O autor do artigo sobre esta obra, inserido no catálogo da XVIII Bienal de Arte de São Paulo faz uma associação entre os “seres” do quadro e o primeiro beijo que Dalí deu em sua mulher, Gala, justamente em um outono, e descrito em sua autobiografia: “a fome libidinosa que nos fez querer morder e comer tudo até o fim.”[7]. Como mencionado acima, Dalí aqui transforma desejo sexual em alimentação.

Com tantas possíveis direções para a Antropofagia, Oswald prismou para o Brasil seu sentido mais político. Para ele, trata-se de um posicionamento, uma colocação cultural do Brasil em meio ao mapa mundial. Escreveu livros muito ricos com a estética antropofágica, através de paródias de textos literários consolidados na tradição brasileira, como Meus Oito Anos de Casimiro de Abreu e Canção do Exílio, de Gonçalves Dias; da estética fragmentária e do trabalho cinematográfico de montagem (justaposição de fragmentos); da incorporação compulsória de elementos já estabelecidos ao seu “novo” (criação), como é o caso desta passagem de Memórias Sentimentais de João Miramar:

“Quando súbito queimou o fuzil em que gingava a Piaçaqüera Lightning & Famous Around. O sírio pegara como um rato gordo o bandoriental luzido Banguirre y Menudo em estripulia sentimental com a trunfa itálica.”[8]

A prosa não corta suas relações com o mundo exterior: mantém sátiras de elementos situados espaço-temporalmente, como a cidade de São Paulo, largamente referenciada com suas grandes lojas que surgiam aos montes. Oswald mistura nomes de lojas e marcas com suas invenções, contornando este engraçado contexto do início do século de misturar no cotidiano palavras de idiomas estrangeiros com o português e, por vezes, com o tupi-guarani. Com isso o escritor emancipa seu mundo de signos e funda na realidade do texto a própria realidade em uma atualização compulsória dos componentes das cartografias culturais brasileiras.

Seu pensamento andou um tanto submerso por cerca de vinte anos, mas logo nos anos 60, quando a arte cola intensamente na política em espectro mundial, a antropofagia retorna como um pertinente amálgama para tal conexão. Volta nos palcos do Teatro Oficina, sob a invenção colaborativa de José Celso, com a encenação da peça O Rei da Vela e logo alcança uma vaga de velocidade infinita (tornando-se, assim, virtualmente onipresente) na rede criativa brasileira: atravessa os Novos Baianos, os Neo-concretos cariocas, os Concretos paulistas, que foi de onde Bressane teve o contato mais imanente com a  obra de Oswald, pois tornou-se um grande amigo de Haroldo de Campos. Este crítico, poeta, pesquisador, era também um grande tradutor de cânones literários mundiais para o idioma português. Homero do grego, Maiakovski do russo, Teatro Nô, do japonês, Goethe, do alemão, Joyce, do inglês, e até textos da Bíblia, do hebraico. Este amante de línguas nunca as tratou como um mero código em seu uso artístico. Por isso encontra a necessidade de criar durante a tradução de prosa e poesia, formando uma espécie de coletivo virtual com o escritor original do texto, em um encontro explosivo de cartografias (tudo o que influencia uma subjetividade criadora), juntamente com o eterno retorno dos ecos da obra na humanidade. Decodificar uma obra de arte pode ser um retrocesso; atualizar criativamente é sempre torná-la mais viva na caótica rede cultural (brasileira).

Desses caminhos surge a transcriação, que pode ser contornada como uma lapidação da antropofagia com o amadurecimento da idéia de que tais coletivos virtuais possam dar conta, ao mesmo tempo, da irreversibilidade do tempo e do eterno retorno. Bressane então, prisma suas próprias bases conceituais para fazer cinema.

Produziu preciosidades em seus tempos de marginalia, destacando aqui O Anjo Nasceu (1968) e Matou a Família e foi ao Cinema (1969). Neste, já trata de algumas atualizações, como é o caso da aproximação do espectro de Tabu, de Murneau e Flaherty, de 1930, com a relação-tabu de duas moças da Zona Sul Carioca. Na ficção etnográfica, os diretores filmaram a quebra da tradição religiosa de uma tribo da polinésia francesa pela força do amor de um casal da comunidade. Em Matou a Família Bressane resolve os tabus com a morte. Mas ao mesmo tempo em que pode sugerir um niilismo político, o filme salienta também uma vontade de se começar de novo, um retorno às origens pré-sociais, uma mudança radical de fórmulas.

Tabu de Murnau

Matou a Família e foi ao Cinema

Foi no retorno de seu exílio, em 1973, que Bressane se propôs a olhar, de modo ainda mais insistente, para os componentes da rede cultural brasileira. O primeiro filme dessa sua cinematografia foi O Rei do Baralho, realizado no mesmo ano de seu retorno. Este filme tratou tanto de recuperar as chanchadas brasileiras que foi rodado nos antigos estúdios da Cinédia. Durante a década de 70 resgatou Oswald de Andrade em suas obras, tendo sua antropofagia sempre como processo criativo e por muitas vezes como temática. Em Tabu (1982), a atualização de Oswald é intensa. O escritor aparece como um personagem do filme que resgata o clima proto-chanchadesco dos anos 30, relacionando-se com o compositor de marchinhas Lamartine Babo e com o cronista de jornais João do Rio, que juntos provocam orgias estéticas pelo filme de Bressane. A caosmose do encontro é potencializada pela escolha dos atores para interpretarem as personagens: Oswald é performado por Colé, um ator da chanchada[9] do mais alto grau de bossalidade; Lamartine por Caetano Veloso, responsável por inúmeros traços da cartografia cultural brasileira contemporânea; e João do Rio por José Lewgoy, que, além de astro da chanchada, explode em atuação no antológico Terra em Transe (1969).

Mas a virtuose de atualização se apresenta com a inserção de imagens de arquivo do Tabu de Murnau-Flaherty, o mesmo que já foi evocado em Matou a Família e Foi ao Cinema, intensificando ainda mais o eterno retorno em suas obras. Aqui os trechos são sonorizados hora com marchinhas de Lamartine Babo, acompanhadas da aceleração das imagens de dança da tribo polinésia, hora com trilha narrativa, como uma música de suspense acompanhando membros da tribo correndo por montanhas – imagem que é seguida pelos característicos morros do Rio de Janeiro. Assim, Bressane salienta tão intensamente os clichês culturais brasileiros – os morros cariocas, a sexualidade, o carnaval, a fantasia – a ponto de desnaturá-los e recombiná-los. O eterno retorno ganha potência neste filme através de sua intensa variação das faces de uma mesma realidade cultural.

Finalizando, esse texto pretendeu salientar uma leitura bastante possível da criação artística brasileira, tendo alguns artistas como foco, e a caosmose de Guattari como base conceitual. O importante é notar os procedimentos aqui descritos no trabalho de artistas contemporâneos. O destaque vai para Tunga, que, além de atitude antropofágica, como visto na sua obra “virtualmente coletiva” com a pirâmide do Louvre, trabalha compulsoriamente e explicitamente com o eterno retorno. Suas obras destacam e ausência de começos e fins para as coisas, a presença da eternidade nietzschiana, pelo signo do cabelo, por exemplo, como o orgânico extra-corpóreo. Abaixo estão as xipófagas capilares (vídeo), e uma peça com seus cabelos.

O clichê da diversidade merece sua eterna re-combinação na arte brasileira que, havendo já passado por tantas estéticas e cosméticas, começa a se entender como caosmótica.

Caroline dos Santos Rodrigues é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] no projeto À Luz de dois Mundos, para o qual foi convidado durante a comemoração do ano do Brasil na França, 2005.

[2] Glauber Rocha, Zé Celso, Zé do Caixão, Zé Pintor.

[3] Hong Kong do East Express, 12 de abril de 1995

[4] Albert Eckout.

[5] Historiadora de arte britânica, da Universidade Essex.

[6] ADES, Dawn. As dimensões antropofágicas do dada e do Surrealismo. In: XXVIII Bienal de São Paulo, 1998, pg. 236.

[7] MUNDY, J. Canibalismo de Outono, In: XVIII Bienal de São Paulo, 1998, pg. 258. Tradução: Izabel Murat Burbridge.

[8] ANDRADE, O. Memórias Sentimentais de João Miramar, 1942, pg. 87.

[9] Fez dupla com Oscarito em Carnaval Atlântida (Dir. José Carlos Burle, 1952, Cinédia)

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta