Por Daniele Gross*
Resumo: A proposta deste texto é fazer um debate envolvendo três aspectos: as questões do feminismo e sua luta social contra a opressão das mulheres; a televisão e sua massificação no Brasil, bem como a importância que ela tem/pode ter na reafirmação e/ou na mudança de questões sociais, por meio dos processos de identificação; e um estudo de caso que nos mostra que, de uma forma ou de outra, a televisão trouxe questões importantes às mulheres à esfera pública.
Palavras-Chave: Representação; Teledramaturgia Brasileira; Feminino; Identificação; Discurso.
Introdução
A proposta deste texto é fazer um debate envolvendo três aspectos: as questões do feminismo e sua luta social contra a opressão das mulheres; a televisão e sua massificação no Brasil, bem como a importância que ela tem/pode ter na reafirmação e/ou na mudança de questões sociais, por meio dos processos de identificação; e um estudo de caso que nos mostra que, de uma forma ou de outra, a televisão trouxe questões importantes às mulheres à esfera pública.
Assim, ao longo do texto serão apresentadas as questões do feminismo e também será traçado um quadro sobre o movimento feminista e sua luta. Em seguida, será apresentada a televisão, bem como sua importância social. E, por fim, mas não menos importante, serão abordadas conceituações do discurso e da linguagem.
A partir disso, será apresentado um estudo de como a televisão representa o feminino. Para tal, será analisado o seriado Antônia, programa exibido pela Rede Globo, em duas temporadas (2006 e 2007 – aqui apenas a primeira será considerada), e que tinha como protagonistas quatro cantoras de rap, que formam o grupo que dá nome ao programa. Será, então, buscado debater como o feminino está ali representado, bem como correlaciona-lo ao movimento feminista e as questões dele aqui apresentadas.
Por fim, a tentativa de mostrar se os anseios do movimento feminista, bem como se o debate apresentado pelo aporte teórico aqui debatido, são ou não representados nesse programa e também a forma como isso se dá.
Gênero: cultura x naturalização
No que concerne ao movimento feminista – que tem seu primeiro marco no sufrágio feminino, no século XIX – uma das questões ainda centrais são as definições de gênero e as questões que envolvem – direta e indiretamente – os direitos das mulheres em diversos patamares, tais como os econômicos, os políticos, os sociais (que, por sua vez, abrangem diversos outros).
Muitas (os) teóricas (os) tentam traçar definições de gênero e do feminino – trazendo, obrigatoriamente, correlações com o masculino. Uma das questões mais peculiares – e intensamente debatidas – que se percebe na literatura feminista é o rompimento da naturalização que os conceitos de homem/mulher, macho/fêmea carregavam em si.
Além disso, tal como nos traz Piscitelli (2002, 7), “(…) ainda é frequente a confusão entre ‘gênero’ e ‘mulher'”. Ou, como nos traz Rubin, em sua definição sobre o sistema sexo/gênero: “(…) um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (1993, 2).
A definição de Rubin é também trabalhada por Piscitelli (2002, 8), que traz que aquela autora localiza essa passagem de fêmea à mulher, “no trânsito entre natureza e cultura, especificamente, no espaço da sexualidade e da procriação”.
Anteriormente, gênero era definido pelo sexo biológico, tendo o homem como forte e único provedor, e a mulher como frágil e um ser doméstico. A partir de definições desse porte, as identidades eram tidas como fixas e a diferença sexual dada como pré-determinada, inata ao humano a partir de seu sexo biológico, natural e sempre a partir de uma divisão dicotômica (também “praticada” por meio de uma heteronormatividade).
É na primeira metade do século XX, com os estudos feministas buscando explicações sobre a opressão feminina que surgem novas possibilidades: naquele momento, passa-se a pensar em dois tipos de diferenciação, a sexual e a cultural – a primeira natural e a outra construída (ALMEIDA, S., 2002). É, a partir desse pensamento que se tem a possibilidade de romper com a, até então natural, superioridade masculina.
Entretanto, surge uma nova visão, já na chamada “segunda fase do movimento feminista” – período de renascimento do movimento no final da década de 1960, estendendo-se até o início dos anos 80 (ALMEIDA, S., 2002; RODRIGUES, 2013) –, a partir de Gayle Rubin, que traça uma correlação de dependência entre as diferenças sexual e cultural, em que a primeira é base de construção da segunda, o já citado sistema sexo/gênero. Ou seja, tudo o que é dado do cultural tem uma base de correlação com o que é supostamente natural. As definições de gênero estão sempre interligadas às da sexualidade biológica, tida como natural.
Nessa ruptura com o natural, o conceito de gênero é trazido e debatido, buscando sempre mostrar que as divisões realizadas nas sociedades carregam em si, conceituações culturais. Tudo, enfim, é cultural. Qualquer definição é feita a partir da linguagem – e esta não pode ser dada como fora da cultura. Assim, apesar de uma tentativa de naturalização dos corpos biológicos, todas as definições são dadas a partir da culturalização do humano.
Muito desse pensamento pode ser afirmado a partir da ruptura que teóricos como Butler realizaram ao questionar conceitos que trazem as identidades como fixas (2003). Ou como Hall (2006), ao demonstrar que a fixidez das identidades não é mais aceita como possível.
(…) as velhas identidades (…) estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. (…) as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas. (…) Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2006, 7-9)
Por outro lado, Vale de Almeida (1996) nos traz definição bastante importante sobre o universo masculino/masculinidade e do quanto a feminilidade é formada por categorias sociais impostas por um “modelo cultural ideal”, que “(…) exerce sobre todos os homens e sobre todas as mulheres um efeito controlador” (Ibidem). O que podemos complementar com o pensamento de Foucault (2007), quando nos traz que, no século XVIII, o comportamento sexual desviante, ou seja, comportamentos que fugissem dos padrões estabelecidos passam a ser condenados, tidos como anormais.
No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (FOUCAULT, 2007, 9-10)
Comportamentos anormais que são rotulados, dados como pertencentes aos socialmente excluídos; o que nos leva ao pensamento de Elias e Scotson (2000), quando estes nos trazem seu estudo sobre um vilarejo inglês, a respeito de uma separação social que ali se produz em dois grupos: os estabelecidos e os outsiders – para ser manter “estabelecido” há de se obedecer a regras e aqueles que as descumprirem podem ser colocados no grupo outsider. O que forma, por meio de correlações de poder (Foucault, 2006; 2007), um efeito bastante controlador.
(…) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2006, 8 e 9)
Se todo discurso tem em si uma vontade de verdade (Ibidem), também se pode afirmar que todo discurso é político e que nunca é inocente. Ou, nas palavras de Gomes:
Posto o discurso como desejo, suposto seu vínculo com o saber e o poder, é assim que estas dimensões se associam aos termos com os quais serão designadas: a vontade de saber, também referenciada como vontade de verdade, e a vontade de poder, sempre trabalhando em uníssono. (2003, 49)
Gomes também afirma que “o humano não veio com um manual” (Ibidem, 25), que “(…) todas as regras de conduta estão relativas a disposições realizadas a posteriori, pelas e nas contingências da vida, sempre elegendo um eixo em função de objetivos não privilegiados, sempre assentando organizações” (Ibidem, grifo da autora).
Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. (BUTLER, 2003, 18)
Se tudo é então uma representação, sempre estruturada pelo simbólico, as naturalizações e culturalizações acerca do feminino também o são. A partir disso, trazemos a definição de feminino dada por De Lauretis como uma “tecnologia do gênero”. A autora – que construiu esse conceito a partir de Foucault – trata o gênero como uma representação:
O sistema de sexo-gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social etc.) a indivíduos dentro da sociedade. Se as representações de gênero são posições sociais que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos sociais. Assim, a proposição de que a representação de gênero é a sua construção, sendo cada termo a um tempo o produto e o processo do outro, pode ser reexpressa com mais exatidão: ‘A construção do gênero é tanto o produto quanto o processo de sua representação’. (DE LAURETIS, 1994, 212)
Ou, nas palavras de Vale de Almeida (1996): “(…) tanto o corpo sexuado como o indivíduo com género são resultados de processos de construção histórica e cultural”. E, ao ser tratado como construção, perde a suposta naturalidade. Dessa forma, da premissa de que a realidade se constrói na linguagem, firmamos a importância do discurso midiático como enunciador das representações do imaginário social.
Isso posto, tratamos a mídia como lugar de grande importância social, visto que é veículo de grande influência – em todos os seus suportes. Afinal, mesmo que em um primeiro momento, os produtos fabricados por essa indústria fossem prerrogativa de poucos, a aceleração dos processos comunicacionais, por meio dos progressos tecnológicos – e uma consequente redução de custos –, massificou o acesso a esses produtos.
Ou, como traz Almeida, “(…) a tipificação do gênero na publicidade constitui parte de uma ‘tecnologia do gênero’, um discurso disciplinar e normativo que constitui algumas das representações hegemônicas acerca do gênero” (2002, 190).
Televisão, Identificação e Discursos Circulantes
A mídia reverbera a sociedade em que está instaurada. Acreditar que a primeira é passível de imparcialidade diante da segunda é separar o inseparável. Uma pertence à outra e não há como desfazer esse laço.
Durante séculos, o Brasil foi considerado um país de iletrados – e, em boa parte, ainda o é. Mas se hoje, o acesso à educação vem sendo intensificado, em meados do século XX o quadro era bastante distinto do apresentado hoje. Assim, veículos como o rádio e a TV, adquiriram força massiva, visto que não há necessidade de ser alfabetizado para consumir seus conteúdos.
Assim, principalmente na teledramaturgia – que a partir de Beto Rockefeller (TV Tupi, 1968) buscou apresentar mais verossimilhança em seus discursos –, os grupos sociais que recebiam representações positivas, marcados por sucessos profissional, amoroso, pessoal e afins, eram os grupos hegemônicos. Em outras palavras, negros, moradores da periferia/favela, pobres, homossexuais e outros grupos socialmente minoritários, não eram representados nesses programas; e quando o eram, sempre estavam em condições sociais desfavoráveis, como empregadas domésticas, frentistas de postos de gasolina, empregados em cargos pequenos etc.
No que diz respeito à televisão, pode-se afirmar que, apesar de ter um considerável público masculino, o veículo foi – e em boa parte ainda o é – desenvolvido buscando angariar como seu público central a mulher. As telenovelas, produtos desenvolvidos desde o início de nossa televisão [1], são comprobatórias desse pensamento: a maior audiência da TV brasileira é construída, em boa parte, para um público feminino (ALMEIDA, 2002, 191). A televisão é aparelho doméstico, lugar dominado pela mulher nessas décadas iniciais do desenvolvimento do veículo. Assim, os grupos televisivos desenvolveram programas que buscassem agradar a esse público na maior parte da grade, bem como distribuiu programas que mantivessem e agradassem um outro, o masculino, em horário que já estivessem em casa – à noite –, como os telejornais. Em seguida, repetindo o sucesso das radionovelas, a TV trazia programas que angariassem toda a família, como as telenovelas, que “(…) são vistas como programas femininos, ao mesmo tempo, familiares e para ‘todo mundo’. No espectro dos programas da TV aberta, atingem grande audiência, cobrindo bem todas as classes sociais, e ainda têm qualidade de produto, ou seja, prestígio cultural relativo” (Ibidem).
Apesar dessa massificação, vivemos em um país em que o acesso à informação midiática tem elevado custo – jornais e revistas impressas, bem como o acesso à internet banda larga, possuem preços não acessíveis à grande massa. Assim, os veículos gratuitos ou que exigem baixo investimento, como a TV e o rádio, ganham altos índices de audiência.
Além disso, a televisão torna-se um dos grandes meios de consumo cultural, passando a ser vista inclusive como veículo propagador de informação.
Em uma sociedade que herdou do passado colonial escravocrata uma desigualdade que se reitera em barreiras discriminatórias como a cor da pele, o analfabetismo e a falta de cultura literária, a “ignorância” sintetiza a discriminação, marca a superioridade de quem domina as mínimas regras da cultura erudita. Nesse contexto, a televisão, reconhecida como veículo que, entre outras coisas, pode informar e ensinar sobre o significado e a maneira de usar novos produtos, assume papel estratégico para um público sedento de informação. (HAMBURGER, 2005, 72)
E que a autora complementa: “Quando o acesso à informação depende fortemente da escolaridade e quando essa escolaridade está associada à discriminação social, a televisão constitui uma fonte privilegiada, acessível e compreensível a amplos segmentos” (Ibidem, 79).
Se em seu início a televisão, principalmente em programas fictícios, privilegiou os grupos hegemônicos, então, por que ao debatermos as questões das minorias sociais não incluímos as mulheres nesse debate, já que este é um grupo social que sofreu fortes depreciações sociais, tendo sido excluído durante séculos afora?
Antes de adentrarmos às questões das representações do feminino na teledramaturgia, trataremos um pouco das questões das identificações, bem como de que maneira a televisão e os discursos midiáticos são importantes para as mesmas.
É importante também avaliar como as enunciações são recebidas. Um discurso só tem audiência, reverberação, porque seu público concorda e consente com o conteúdo desse discurso, reconhecendo-se nele e apresentando, assim, os processos de identificação. Em outras palavras, se o público, no caso, o telespectador, se reconhece nesse discurso televisivo, é porque o mesmo incorpora o que ali é emitido, ao se identificar com ele. Assim, podemos afirmar que, para que haja incorporação do discurso televisivo, do que ali é enunciado, o meio tem que trazer temas, debates, valores que já estão na sociedade. Nas palavras de Almeida,
(…) a TV é a melhor mídia para criar comportamento. No entanto, para atrair o consumidor ao seu produto, ela tem que trabalhar com valores sociais que já existem, estão em circulação social e, ao mesmo tempo, que podem promover comportamentos e produtos novos. (ALMEIDA, 2002, 190)
Isso posto, pesquisar a incorporação aos discursos midiáticos, bem como compreender como se dão os processos de identidade/identificação – aqui apresentados pelos conceitos da Psicanálise – é de extrema importância para um estudo mais aprofundado sobre esse meio de comunicação que, como já demonstrado, muito se popularizou em nosso país.
Em Freud e Lacan, o conceito de identificação é tido como um jogo estabelecido na estrutura psíquica com o indivíduo e suas relações de alteridade (os outros) e o Outro, tal como explicita Zimerman (2001, 308):
Lacan cunhou uma terminologia específica, grafada de duas maneiras (Outrooutro), cada um com um significado específico, sempre ligado ao lugar e à função daqueles em relação aos quais é formulado o desejo da criança. Assim, ele emprega a palavra outro (vem do francês autre, com a minúsculo), a qual chama de pequeno outro, que alude mais diretamente à alteridade, ou seja, a relação do sujeito com seu meio, com seu desejo e com os objetos (pai, mãe, irmãos), através dos mecanismos de identificação imaginária com esses outros. (…) Em oposição a isso, Lacan descreve o grande Outro para designar um lugar simbólico que, tanto pode ser um significante, a lei, o nome, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus, que determina o sujeito, tanto inter como intra-subjetivamente, em sua relação com o desejo. (ZIMERMAN, 2001, 308, grifos do autor)
Dessa forma, nos processos de identificação, buscamos nos relacionar com indivíduos que corroborem esse processo, nos inserindo em grupos nos quais percebemos alguma assimilação identitária, em que o discurso como prática social e a dinâmica de constituição de identidades se correlacionam, já que, se estabelecemos nossos processos de identificação através desse outro, também precisamos da linguagem, pois, se é por meio do discurso que uma sociedade se legitima e cria suas narrativas, é também por meio desse discurso que o indivíduo estabelece vínculos sociais com o outro.
Somos educados em várias Formações Discursivas e operamos em Discursos Circulantes, em um jogo entre nossas identificações e esses discursos que atuam em nossa sociedade. As Formações Discursivas estariam, assim, pelo olhar da Psicanálise, em um patamar semelhante ao do grande Outro. A respeito dessas Formações Discursivas, Foucault nos traz que
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (…). (FOUCAULT, 2008, 43, grifos do autor)
E complementa:
Um enunciado pertente a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e a de uma proposição pelas leis de uma lógica, a regularidade dos enunciados é definida pela própria formação discursiva. (Ibidem, 132)
No que diz respeito aos Discursos Circulantes, Charaudeau (2006, 118) diz que estes são somatórias de enunciados sobre o que “são os seres, as ações, os acontecimentos, suas características, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados”. O autor também afirma que “esses enunciados tomam uma forma discursiva (…)”, sendo “através desses enunciados que os membros de uma comunidade se reconhecem” (Ibidem).
Além disso, complementa: “(…) é preciso lembrar que a questão da identidade do sujeito passa por representações sociais: o sujeito falante não tem outra realidade além da permitida pelas representações que circulam em dado grupo social e que são configuradas como ‘imaginários sociodiscursivos’” (CHARAUDEAU, 2011, 117).
Nossa linguagem e nosso conhecimento de mundo são construídos em cima de pacotes discursivos, ou seja, estereótipos, que preveem certa estabilização desses discursos. Se não é possível operar sem estereótipos, para que estes sejam passíveis de transformação, é necessário que ocorra uma mudança em uma plataforma maior que a que envolve esse estereótipo em si, ou seja, nas Formações Discursivas.
Para Foucault (2008), o que faz uma Formação Discursiva sofrer mudanças é o embate entre o poder e o saber, visto que o primeiro é sustentado pela produção de um saber sobre o mundo, que é produzido a partir disso. E quando essa conjugação entre poder e saber é rearticulada, surgem novas formações discursivas. Inúmeros são os elementos envolvidos nessas formações – uma rede e um equilíbrio bastante sutis e que cada pequena alteração afeta a todos – e por isso não são mudanças que possam ser concretizadas no patamar da individualidade, não são dependentes de uma projeção voluntarista, não é algo que se possa realizar sozinho.
(…) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2006, 8-9)
Dessa forma, a mídia também é envolta por essas formações, sendo lugar de disseminação dos discursos circulantes, disciplinadores da sociedade e que atuam de certa forma inconsciente, um processo que reverbera esse poder circulante – que para Foucault (2007, 103) está em toda parte e não tão centralizado quanto comumente se pensa. A mídia, então, faz rearticulações desses discursos, mas não os cria.
Da premissa exposta anteriormente, de que a realidade se constrói na linguagem, partimos para essa hipótese da influência do discurso midiático. Não estamos, entretanto, afirmando um poder do enunciador sobre seu destinatário. Ao contrário, a incorporação do discurso enunciado não é um simples processo dual: há uma troca de influências entre enunciador e receptor (ou coenunciador). Este compra o produto midiático porque se reconhece naquele discurso, mas o primeiro viabiliza um produto que ele sabe estar adequado ao gosto de seu receptor – a não observância desse aspecto leva aos fracassos de audiência.
E se, tal como já demonstramos, as questões de identidade/identificação se fazem prementes a este estudo, compreender os processos de incorporação dos discursos também. Para Maingueneau
(…) a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da leitura, é um estereótipo cultural que subsume determinado número de situações estereotípicas associadas a comportamentos (…). Propus designar com o termo “incorporação” a maneira pela qual o destinatário em posição de intérprete – ouvinte ou leitor – se apropria desse ethos. (…) A “incorporação” não é um processo uniforme; ela se modula em função dos gêneros e dos tipos de discurso. (MAINGUENEAU, 2008, 65-66)
Assim, se os discursos midiáticos podem ser vanguardistas em suas formas – como o foi a vídeo-arte, por exemplo – raramente o são em suas temáticas. Ao contrário, disseminadores dos discursos circulantes, eles sempre vão tratar de assuntos que, de alguma forma, já estão inseridos na sociedade, já foram incorporados por seus receptores – do contrário, tal incorporação não ocorreria e o produto não seria adquirido.
A proposta que aqui é abordada e afirmada parte do pressuposto de que, mesmo sendo uma minoria social, as mulheres tiveram sua representação intensificada, visto o veículo ser direcionado, principalmente, a elas. Deste ponto, acreditamos que os discursos enunciados ao carregarem o feminino em seus programas, ao colocarem a mulher como principal protagonista da teledramaturgia, trataram de fazê-lo de forma a reverberar o discurso socialmente impetrado, que colocava a mulher em lugar de submissão ao homem.
Entretanto, se assim foi feito nas décadas iniciais, hoje, passados 60 anos do surgimento da televisão no país, vivendo em uma sociedade que de alguma forma dá mais visibilidade às minorias, como se encontra a representação do feminino na teledramaturgia?
Para responder a esse questionamento – mesmo que parcialmente – analisaremos um programa televisivo que tem seu protagonismo em personagens mulheres: Antônia. Veiculado na Rede Globo, o programa pertence ao quadro de teledramaturgia da emissora, sendo classificado como um seriado.
Mulher, liderando a situação
Antônia é baseado em filme homônimo (direção de Tata Amaral, 2006) e veiculou em duas temporadas, ambas com cinco episódios cada, sendo apresentados às sextas-feiras, às 23h. A primeira temporada foi transmitida de 17/11/2006 a 15/12/2006 e a segunda, de 21/09/2007 a 19/10/2007. Mesmo tendo sido veiculado antes do filme que o inspirou – curiosamente este teve sua estreia em fevereiro de 2007 –, o seriado é uma continuação da história apresentada no filme, tendo sua diegese dois anos depois da história daquele.
Assim, o seriado traz a história de quatro amigas de infância, moradoras da Vila Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, localizado na Zona Norte da capital, que buscam o sucesso profissional, por meio do grupo de rap formado por elas, e que dá nome ao seriado, o Antônia.
Preta (Negra Li) trabalha em um posto de gasolina e é mãe de Emília (Nathalye Cris), filha de Hermano (Fernando Macario), de quem Preta já se encontra separada e com quem não pode contar na criação da filha. A protagonista também mora com a mãe (Sandra de Sá) e com o pai (Thobias da Vai-Vai). Bárbarah (Leilah Moreno) sai em liberdade condicional, podendo passar o dia na rua e voltar às 20h, depois de dois anos de total reclusão – não há informação acerca do motivo pelo qual ela foi presa. É ela quem manifesta o maior desejo em reunir as amigas e resgatar a formação do grupo. Mayah (Quelynah) é garçonete e cantora do Tangerina Bar. Posteriormente, viverá um romance com o agente do grupo, Marcelo Diamante (Thaíde). E Lena (Cindy Mendes), trabalha como panfleteira de farol. Casada com JP (Maionezi), enfrenta diversas brigas por causa do ciúme dele.
Se no cinema, Antônia teve a direção de Tata Amaral, em parceria com a O2 Filmes, na televisão o seriado teve múltipla ficha técnica, com diversidade de diretores, roteiristas e produtores. Assim, na primeira temporada, a diretora do filme esteve à frente da direção apenas no segundo episódio, tendo também participado do roteiro do primeiro.
No que diz respeito ao feminino, bem como às questões feministas, o primeiro episódio de Antônia, apresentado em 17/11/2006, (De volta pra casa, direção de Luciano Moura; roteiro de Elena Soárez, Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Luciano Moura e Tata Amaral) já traz parte da temática a ser discutida no seriado. Apesar de não carregar em si um discurso panfletário, direto, o programa em vários momentos debate a questão do feminino. Logo no início, por exemplo, quando Preta, em voz over, apresenta as amigas, quando chega a vez de dizer sobre Lena, a cena mostra a rapper discutindo com o marido (JP), que implica com a roupa de trabalho dela (um minúsculo short) e que não quer deixa-la sair e ir ao encontro de Bárbarah, que sai da cadeia em seu primeiro dia de condicional.
[JP arranca todas as roupas dela do guarda-roupa e joga no chão.]
JP: Eu faço isso aqui!
Lena: Pô! A Bárbarah é minha amiga! Ela é minha amiga!
JP: Vai começar a palhaçada, tudo de novo, de showzinho, né?
Lena: Olha, eu tenho certeza, de que se fosse seus amiguinhos, você não ia dar essa mancada!
JP: É! Só que eu não tenho amigo preso, não! Tá!
Lena: Ah! Eu não posso cantar! Eu não posso trabalhar! Eu não posso ter amiga! Eu posso respirar?
JP: Meu, meu… seu negócio é se exibir! É isso!
Lena: E o seu negócio é me exibir!
JP: É! Mulher serve pra quê, então?
Lena: Ah! Nessa casa? Nessa casa serve pra colocar dinheiro. Ou você resolveu trabalhar, JP? Hein?
JP: Mano… [e sai]
O diálogo traz várias problemáticas das questões do feminino, como as da roupa (o mando – ou ausência de – sobre o próprio corpo), o uso da mulher como objeto sexual e de exibição aos amigos; e, também, e mais atual, o assumir a chefia da casa e sustentar a mesma, apesar da presença masculina.
Além dessa discussão, em vários outros momentos, o episódio retoma o debate às questões do feminino: quando Preta diz à mãe não ter com quem deixar à filha e reclama do ex-marido, com quem ela não pode contar; ou quando a mesma protagonista, ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, surpreende-se ao ouvir Maria, sua mãe, cantando.
Preta: Mãe! Que voz é essa?
Emília: Olha, mãe! A vó na capa do disco!
Preta: Qual que é a senhora?
Maria: Ah! Preta! Vai dizer que eu mudei tanto assim? Nossa… Eu sou essa aqui, ó!
Preta: A senhora nunca tinha mostrado esse disco!
Maria: E eu lembrava? Tava perdido aí. A Emília que achou, nessas bagunças aí. Eu nem lembrava que esse disco existia.
Preta: Não sabia que a senhora tinha gravado disco.
Maria: Não. Eu não gravei disco. Quem gravou foi esse homem aí. Eu só ficava atrás, tocava pandeirinho, corinho, né?: aha, uhu… Mas o negócio é você e as meninas. Como é que tá o disco de vocês?
Preta: Agora, precisa de foto pra capa, sabe? Quando não é uma coisa, é outra. Nunca tá bom. O negócio nunca fica pronto! Ah! Eu to cansada disso tudo, de novo.
[Preta levanta e caminha em direção à filha.]
Preta: Vem, Emília. Vamos dormir. Boa noite, mãe!
[Maria olha pro disco, de forma saudosista, a cena corta pra uma externa e depois pro quarto de Emília, que desenha na companhia da mãe. Mãe e filha conversam sobre o desenho e, pouco depois, Maria aparece no quarto, com um maço de dinheiro na mão.]
Maria: Preta! Toma. Faz a capa do disco de vocês. [E entrega o dinheiro pra filha].
Preta: Que dinheiro é esse, mãe?
Maria: Faz a capa do disco, bem bonita: vocês quatro. E sem nenhum homem na frente. Bem bonita. [Faz um carinho na filha, outro na neta, se levanta, sorrindo]. Deus te abençoe.
Preta: Obrigada, mãe!
Um trecho que trabalha explicitamente o mercado de trabalho feminino: uma fala que carrega a ausência de chances profissionais, ou do quanto as mulheres foram apagadas pelos homens ao longo da história.
O quinto episódio, Fidivó, tem a direção de Gisele Barroco, roteiro de Claudia Lajes, Jorge Furtado, e foi, originalmente, apresentado em 15/12/2006. A narradora do episódio é Emília, filha de Preta, que não tendo com quem deixar a menina, vai com ela e a mãe atrás de uma vaga no hospital da região. Ao não achar vaga no primeiro hospital, Preta vai até a casa de Bárbarah, pedir que ela fique com a menina. Em diálogo entre Bárbarah e a garota, as questões do feminino são mais uma vez apontadas. A menina manifesta fome e ao servir um prato de comida pra ela, Bárbarah começa o seguinte diálogo:
Bárbarah: Sua mãe dá um duro danado, né?
Emília: Quem manda [ter] filha?
Bárbarah: Ter filha é muito bom, sabia?
Emília: Então, por que você não tem?
Bárbarah: Porque eu não sou casada!
Emília: Nem minha mãe.
Bárbarah: Mas ela foi casada. E vê, agora? Sua vó tá doente. Quem que tá cuidando dela?
Emília: Minha mãe.
Bárbarah: Então… filha é pra essas coisas.
Emília: É verdade.
Aqui vários apontamentos são possíveis: a dificuldade em que se tem ao ser mãe solteira; a expectativa de que apenas uma filha é quem cuida efetivamente da mãe (posteriormente, em voz over, Emília fala: “Mãe serve pra cuidar da filha. Mas filha, depois que cresce, também serve pra cuidar da mãe. Eu não conheço nenhum filho que cuide de pai, mas deve ter”); que a maternidade é algo positivo (no início do episódio, mais uma vez em voz over, Emília diz que só as grávidas são felizes).
Em Antônia, a questão do casamento e suas consequências na vida de uma mulher, se dão, inicialmente, no enterro da mãe de Preta. Ali, um pouco atrás do cortejo fúnebre, Lena, Bárbara e Mayah iniciam uma conversa quando esta diz que pretende se casar com Diamante.
Mayah: Olhando essa situação, eu acho que eu vou juntar de vez.
Lena: Com quem? Com o Marcelo Diamante?
Mayah: É! Tem mais alguém querendo casar comigo?
Bárbarah: To vendo tudo. Do jeito que vai, minha filha, daqui a pouco não tem é mais grupo nenhum, sabe?
Mayah: O que tem uma coisa a ver com a outra, Bárbarah?
Bárbarah: Claro! Tem tudo a ver, meu! Sabe, eu sei como é que é essa história. Daqui a pouco o marido tá com ciúme. Daqui a pouco ele não quer mais que você cante. Daqui a pouco ele reclama que não tem mais janta na mesa. Eu sei como é que termina isso, meu.
Lena: Até parece que já foi casada, Bárbarah. Como assim? Não é assim, meu.
Bárbarah: Tá. Eu não fui casada. Mas eu vi você casada. Já vi a Preta casada. E agora vou ver a Mayah casada.
Lena: Psiu. Fala baixinho.
Bárbarah: Eu não sou como vocês, sabe? Penso na nossa carreira, penso na gente, penso no grupo.
Lena: Dependendo do cara, dá pra fazer as duas coisas muito bem.
Bárbarah: Duas, não, né? Três coisas, porque daqui a pouco vem o filho… Quatro: vira empregada de vez. Por falar nisso, ó, seu maridão chegou. [chegada de Diamante].
Ainda no mesmo episódio, quando elas estão no ensaio para um show, em meio a um intervalo, Diamante chega até Mayah, com uma bebida e entrega pra ela.
Diamante: Ó! Trouxe pra você! Pra adoçar a boca [e entrega uma bebida a ela]. Não que você precise, hein! Pelo amor de Deus.
Mayah: Acho que eu vou aceitar.
Diamante: Aceita, sim. Eu peguei ali, fora do gelo, que é pra não machucar as cordas vocais da princesa!
Mayah: Não é disso que eu to falando.
Diamante: Tá falando do quê?
Mayah: Da gente morar junto!
Diamante: Como assim, morar junto? Together, na mesma casa?
Mayah: Você não quer mais morar junto comigo?
Diamante: Não, não é por aí. A vida artística, Mayah, pressupõe liberdade. Uma hora você tá em São Paulo, depois você pode tá no Rio, depois na Bahia, de repente você pode tá lá nos… States… Sabe onde fica? Os States? Mayah! O artista não pode se prender, tem que ser livre. E você é uma artista, Mayah.
Mayah: Ahã.
Diamante: Entendeu? Eu penso muito na carreira de vocês. Eu sei que o grupo vai decolar, vai explodir – no bom sentido, é claro.
Mayah: Olha, Diamante. Você me pediu e eu aceitei. Eu já falei com a minha mãe, já falei com as meninas… agora vai de você, doutor Marcelo Diamante, fazer a mudança. Hun. [e sai]
Diamante: Mudança. Marcelo Diamante indo pra forca. Contando ninguém acredita.
Mayah manifesta uma expectativa em relação à solidão e a não ter quem a apoie em momentos difíceis. Sua fala também carrega a escolha do parceiro como uma aceitação do que a vida trouxe para si, já que não há outra opção: Diamante seria o único que concordaria em se casar com ela.
Bárbarah prontamente discorda. Para ela, as questões da vida de uma mulher não serão resolvidas pelo casamento, como também vê o casamento como um impedimento à ascensão profissional da mulher, que ainda hoje, tem que se dedicar à casa, ao marido, aos filhos, além do trabalho.
Se há submissão da mulher ao homem em alguns momentos de Antônia – como no primeiro episódio, quando Lena não consegue ir ao encontro de Bárbarah (porque o marido implica e a mantém em casa), também há determinismo, posicionamento e controle da mulher sobre si. Isso é explicitamente conotado quando Mayah, por exemplo, diz a Diamante que aceita o pedido dele e diante da lamúria do futuro marido, diz que não aceita um recuo, que ele a pediu, ela aceitou, então ele que providencie a mudança.
Antônia nos apresenta mulheres determinadas, que sabem o que querem, que não se intimidam diante da malandragem dos homens, se defendendo deles; mulheres que – talvez por uma questão de gênero, talvez em nome da relação amorosa – se submetem à relação, mas que diante daquilo que não concordam, se manifestam, se posicionam.
Apesar de uma análise da trilha sonora não ser a proposta aqui apresentada, é interessante ressaltar que o programa também carrega em suas músicas, a representação do feminino, visto que essas questões também são dadas nas canções do grupo de rap, como no trecho de Flow, que é cantado no primeiro episódio, que diz: “Pra cada ação, uma reação. O poder da palavra tá na nossa mão. Bem alto, ressalto: mulher, liderando a situação”.
Diante de tudo isso, é importante pensar no feminino que é construído na teledramaturgia brasileira. Sobre isso, Almeida (2007, 188) nos traz que:
As narrativas de grande penetração no cotidiano, em sua repetição de estruturas narrativas e de construções simbólicas, vividas com proximidade durante anos a fio, acabam por constituir parte das categorias culturais com as quais esses espectadores convivem, particularmente aqueles conteúdos que são mais comuns e repetitivos, como certa construção da heroína. É possível notar como o modelo ideal de feminilidade, na voz de muitas mulheres e homens no trabalho de campo em Montes Claros, assemelhava-se a certo tipo de heroína melodramática urbana e independente: uma mulher que trabalha fora, tem seu emprego e salário, que busca completude no amor, tem vida sexual associada ao amor, mas também é uma mãe dedicada, e por fim ainda soma-se a esse tipo ideal todo o glamour da mídia, tratando-se portanto de uma mulher linda, elegante, bem cuidada, que se veste com roupas da moda. Parece-me que esse foi um dos estereótipos, não o único, que ao longo das últimas duas décadas foram bastante reiterados nas novelas (principalmente das oito).
Se não temos as quatro personagens do seriado nesse perfil – Bárbarah, por exemplo, questiona o valor do casamento na vida da mulher – temos parte delas cumprindo esse estereótipo tão fortemente recortado na teledramaturgia nacional. O que podemos afirmar é que ao nos mostrar quatro mulheres fortes, batalhadoras, que lutam por uma carreira de sucesso e que não se submetem ao sujeito masculino, Antônia nos traz – quando o aspecto a ser analisado é o da relação amorosa – outra situação: mesmo não sendo mulheres frágeis e profundamente submissas como as das gerações anteriores, ainda há uma dependência em relação ao outro – aqui, masculino, já que nenhuma das quatro personagens é homossexual. Assim, o que se pode observar dessas representações é que apesar de árduas batalhadoras do campo profissional e de não serem a mulher submissa, tomada durante muitas décadas como o sexo frágil, essas mulheres não são “livres”, já que existe a dependência com o outro.
Considerações Finais
O discurso que permeia o seriado é o da ascensão profissional das garotas e do quanto a vida amorosa interfere na carreira delas. Também há, de forma intensificada, a colocação da problemática do feminino na nossa sociedade: maternidade, trabalho/carreira, casamento, solidão, machismo.
Antônia também nos traz certa dependência da mulher no que diz respeito às relações amorosas, ou à sua alteridade (homem/mulher, masculino/feminino). Não estamos, com isso, afirmando uma fraqueza da mulher, apenas apontamos que essa é uma representação dada, mas que é difícil estabelecer se é por uma questão de gênero – sempre apresentado por conceitos dicotômicos – ou se esse é um vínculo do humano, conotando, assim, uma dependência amorosa, independente de gênero (mas, ao mesmo tempo, bastante similar ao modelo de feminino apresentado anteriormente por Almeida).
Isso posto, o que podemos afirmar é que, se as violências impetradas contra as mulheres ao longo dos séculos resultaram em movimentos de luta pela igualdade social entre os gêneros, a partir do momento em que essa luta surge na teledramaturgia, é porque esse discurso, de certa forma, já se encontra instituído, já está entre – para usar a terminologia de Charaudeau – os Discursos Circulantes. Caso contrário, não teria incorporação por parte de seu público.
Assim, tal como nos trouxe Almeida (2002, 190), para conquistar seu público, a televisão tem que trabalhar questões, de alguma forma, já inseridas na sociedade. Isso posto, quando valores trabalhados pelos movimentos político-sociais são enunciados no discurso televisivo é porque já estão, de alguma forma, enfraquecidos e, algumas vezes, naturalizados: quando esses discursos aparecem na teledramaturgia, é porque o assunto já foi debatido e ali aparece como um objeto de consumo e, por consequência, atenuado. Em outras palavras: problemáticas, valores, proposições que já estão nos Discursos Circulantes. Ou, ainda como trata Foucault (2008), quando nos apresenta sua conceituação sobre as Formações Discursivas, que nos permite dizer, então, que se a mídia dissemina tais discursos, podendo, algumas vezes, gerar mudanças sociais, ampliar o debate, trazer maiores aceitações de determinados comportamentos, dificilmente criará novos outros.
Por fim, se Antônia apresenta mulheres independentes, batalhadoras, que enunciam temas já muito exaltados pelo feminismo, também nos traz mulheres que cumprem o modelo estereotipado da mulher, tanto trabalhado na teledramaturgia brasileira.
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Filmografia
Antônia. Seriado, primeira temporada, com cinco episódios. Direção: vários. Roteiro: vários. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão. Exibição: primeira temporada, de 17/11/2006 a 15/12/2006.
Notas:
[1] Fundada em 18 de setembro de 1950, a televisão brasileira trouxe seu primeiro produto teledramatúrgico pouco mais de um ano após o seu surgimento: Sua Vida Me Pertence (direção de Walter Foster), estreou na TV Tupi de São Paulo, em 21 de dezembro de 1951.
* Daniele Gross é doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais e mestre (2010) em Ciências da Comunicação, ambos pela ECA/USP. Membro do grupo de pesquisa MidiAto – Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas (ECA/USP), também atua como docente de cursos de Comunicação Social. danielegross@danielegross.com.br