André Bazin e o western: ideias do crítico francês sobre o gênero

Em seu texto O western ou o cinema americano por excelência, escrito em 1953, André Bazin trata da questão do western enquanto gênero estritamente americano, que surgiu proveniente de lendas ligadas ao nascimento e expansão da nação norte-americana, se estabeleceu através da literatura e encontrou no cinema seu meio de difusão ideal, capaz de ser atraente ao público de diversas partes do mundo ao longo de várias décadas.

O teórico André Bazin

A identificação popular que se constatava nesse gênero, surgido quase simultaneamente ao nascimento do cinema – e que até a década de 1950, período em que Bazin fez suas reflexões, continuava em seu auge – não se daria apenas por simples fatores do cinema de ação, como as brigas ou cavalgadas, mas era vista pelo crítico francês como fenômeno ligado ao mito. O mito do nascimento de uma nação, a conquista do oeste, a luta do conquistador civilizado contra o selvagem; são características do western que não precisam necessariamente de fidelidade histórica, pois estão arraigados ao imaginário.

André Bazin fala do western “puro”, que só poderia ser produzido nos Estados Unidos, não apenas por aspectos visuais, como as vastas paisagens americanas, mas por estar intrinsecamente ligado à cultura e ao imaginário de seu país de origem. Bazin trata do fato de filmes western produzidos por outros países, na forma de pastiche ou não, que teriam alcançado certo resultado respeitável, mas que não atingiram o nível de excelência das “autênticas” produções norte-americanas.

É certo que esse raciocínio de Bazin se opõe a questões que podem, hoje, estarem agregadas ao estudo dos gêneros de ficção no cinema, como as possibilidades de multiculturalismos policêntricos ou as transculturações. Mas no contexto dos anos 1950, antes do surgimento dos chamados cinemas novos (como o Cinema Novo brasileiro e outros movimentos fora do eixo norte-americano e europeu), devia ser difícil pensar que a assimilação do gênero western fora dos Estados Unidos geraria filmes que não fossem meras cópias – de menor qualidade ou não – dos originais. Essa visão, pensada nos dias de hoje, soa ultrapassada se considerarmos experiências como os western rodados por Sérgio Leone na Itália, entre tantos outros exemplos.

"Dragão da maldade contra o santo guerreiro", de Glauber Rocha

André Bazin também se refere ao western “puro”, quando fala das combinações com outros gêneros, que também estavam em voga na época. Os filmes western, tendo outros gêneros agregados, como o policial ou o musical, sofreriam algo como uma contaminação e perderiam parte de sua força original. Com o surgimento dos cinemas novos, no final dos anos 1950 e começo da década de 1960, quando o cinema se torna progressivamente mais auto-referencial, essas análises feitas por Bazin se tornam ultrapassadas e sem sustentação. Inúmeros filmes produzidos em diversos países são exemplos de como gêneros clássicos, inicialmente surgidos nos Estados Unidos, podem ser absorvidos pela filmografia de outros lugares de forma coerente, como reflexões acerca do próprio cinema e da realidade desses lugares. Filmes produzidos no Brasil como O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, ou O bandido da Luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, são exemplos de como outras cinematografias podem se apropriar de características do western (bem como de outros gêneros), renovando-as e as adaptando a suas realidades.

No tempo das diligências, de John Ford
"No tempo das diligências", de John Ford

Voltando a questão do mito. Para tratar do mito, Bazin fala da forma como o western clássico representa a mulher. A mulher, tratada enquanto mito, seria sempre pura e correta, enquanto as maldades e imperfeições do mundo caberiam somente aos personagens masculinos. No oeste a mulher era sempre rara e preciosa entre os muitos homens, o que lhe dava certa aura de ser que merece proteção e respeito. No tempo das diligências (1939), dirigido por John Ford, é para Bazin um exemplo do auge do período clássico do western, onde as regras e convenções do gênero ainda são seguidas e respeitadas. Neste filme, até a personagem Dallas, uma mulher mundana e de “má reputação”, merece respeito e cuidados, mesmo que por parte do personagem marginalizado Ringo Kid, interpretado por John Wayne.

Johnny Guitar, de Nicholas Ray
"Johnny Guitar", de Nicholas Ray

Em seu texto Evolução do western, publicado na revista Cahiers du cinema no final de 1955, André Bazin versa sobre a evolução do western clássico para o moderno. Após a guerra, o gênero teria incorporarado certas novidades, garantindo assim sua sobrevivência. O crítico chama os westerns produzidos após 1945 de metawesterns, filmes que abrem espaço para reflexões que dizem respeito ao próprio gênero em questão. É nesse sentido que as regras até então arraigadas ao gênero, antes sólidas e intransponíveis, começam a sofrer mudanças e subversões. É a partir de então que surgem filmes como Johnny Guitar (1953), de Nicholas Ray, em que a mulher sai da condição de passividade e subordinação ao homem, atingido atributos de personagem ativo. A personagem Vienna, dona de um saloon interpretada por Joan Crawford, possui qualidades e defeitos, sendo ambígua como os personagens masculinos. A mulher deixa a condição de “pura”, e não mais assiste passivamente aos conflitos dos homens, mas age em sua própria defesa e sai em busca de seus objetivos.

Por fim, conclui-se que os apontamentos de André Bazin acerca do western “puro”, embora importantes e coerentes em sua época, perderam sua sustentação a partir do início dos anos 1960, com o surgimento dos Cinemas Novos e tudo o que se gerou em diversas cinematografias. Já a questão dos metawesterns é parte integrante das pioneiras ideias do crítico francês, precursor ao perceber a evolução – ou a passagem – do cinema clássico para o moderno, tanto no que diz respeito à forma (a profundidade de campo, os planos-seqüência) quanto ao conteúdo dos filmes.  

Bibliografia

Bazin, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

Filmografia

No tempo das diligências, de John Ford.

Johnny Guitar, de Nicholas Ray.

Renato Coelho é graduado em Cinema pela FAAP, mestrando em Multimeios na Unicamp, e professor do curso de Imagem e Som na UFSCar.

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Este post tem um comentário

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    Renato

    As idéias do Bazin são muito interessantes, e achei bacana essa revisão sob um prisma atual. Afinal, o western spaghetti é por si só uma contraposição ao que ele propõe em seus textos. Só não concordo com o fato de os metawesterns serem tratados aqui como modernos. Na minha visão, mantém-se uma estrutura estética clássica somada à modificação de temas devido a uma nova compreensão de mundo imposta pela guerra e pelos desenvolvimentos tecnológicos dela decorrentes. Assim, a leitura moderna do gênero vai acontecer justamente na Itália e principalmente com o Sérgio Leone.

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