“Eu já me tornei imagem”: Vídeo etnográfico e as múltiplas relações com o xamanismo

Vandimar Marques Damas *

Introdução

Realizei minha pesquisa tendo como objetivo trabalhar o uso da linguagem audiovisual como prática de auto-representação e reflexão que os professores indígenas fazem dela. O trabalho foi desenvolvido de forma prática através de oficinas de produção de vídeo documentário, oferecidas aos alunos da licenciatura intercultural da UFG. A licenciatura intercultural da UFG é um curso destinado à formação superior de professores e professoras indígenas que se iniciou no ano de 2007 e atualmente conta com 190 estudantes pertencentes a doze povos, Tapirapé, Karajá, Javaé, Krahô, Xerente, Apinajé, Gavião, Krikati, Guarani, Guajajara, Canela e Tapuia

Participei de quatro etapas como pesquisador no curso de licenciatura durante os anos de 2009, 2010, 2011. Durante esse período, tive a oportunidade de produzir juntamente com os indígenas, aproximadamente, 4 mil fotografias e cerca de 10 horas de gravação o que resultou num vídeo de 20 minutos intitulado “Intelectuais indígenas”.

Vídeo etnográfico e as múltiplas relações com o xamanismo

A reflexão que os cineastas indígenas fazem sobre o uso do cinema, da fotografia, do vídeo e do computador serve para pensarmos as diversas formas de resistência e críticas que podemos fazer acerca das engrenagens do poder, pois assim como o xamã, o cineasta indígena se subtrai da vinculação teórica ocidental e constrói o seu próprio discurso e a sua versão sobre o mundo. Utilizando para isso a cultura dos brancos, fazendo uma tradução da nossa cultura para a deles, e apresentando-a em forma de vídeo.

A meu ver, estabelece-se entre xamanismo e vídeo etnográfico uma relação de afinidade. O que me leva a fazer tal afirmação é o caráter ilógico de ambos diante da estrutura das narrativas estabelecidas pelo pensamento linear positivista. O xamã não se deixa intimidar pela linha divisória entre o pensamento científico e o pensamento tradicional. O ponto de partida do seu pensamento é a experiência intelectual advinda de diversas viagens para outros contextos geográficos ou cosmológicos.

Apresento a hipótese de que existe algo comum ou geral entre a arte xamânica e o vídeo. Por trás de uma expoente artística e cosmológica, há algo em movimento entre essas duas artes. O vídeo etnográfico e o xamanismo apontam para si mesmos como um tipo contrário daquilo que denominamos de informação imparcial o que corresponde à ideia de que essas artes desafiam qualquer tentativa de previsibilidade. Passo a esboçar aqui uma linha de força entre o vídeo e a corporalidade xamânica. Apresentarei duas idéias que considero de fundamental importância para a minha reflexão, xamanismo imagético e canibalismo imagético.

O vídeo, ao captar as imagens das narrativas e performances mitológicas, estabelece uma comunicação de alteridade, seja na tradução do que está sendo filmado ou na comunicação com outros seres mitológicos. Deste modo, faço uma relação com a regra cardinal: não há relação sem diferenciação. Para iniciar, tomo como ponto de partida uma estrutura: a imagem. Será a partir dela que vou procurar pensar o xamanismo, o canibalismo, a feitiçaria e o vídeo, por que eles se relacionam através de sua diferença, e se tornam diferentes através de sua relação “O que nos une é o que nos distingue” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002. p 423).

Agora vejamos um exemplo de como o xamanismo se articula com o vídeo, refletindo sobre a noção de devir a fim de conceituar o processo de transformação do índio em imagem, uma espécie de metamorfose imagética, pela qual o índio passa por uma transubstanciação imagética, ou uma espécie de devir[1] imagem (DELEUZE; GUATARRI, 1980).

Os Waiápi e os Zóé, embora fossem semelhantes em diversos aspectos sociais, não tinham contato entre si. Com a inserção de uma câmera de vídeo eles puderam ver uns aos outros através da televisão e, como afirmou um dos Waiápi, “o vídeo é um meio de transportar vozes e corpos, o vídeo traz a pessoa e a sua fala”. O que eu pretendo demonstrar aqui é que, para os Waiápi, a câmera e televisão são constituídas de poderes xamânicos ou possui elementos que remetem à ideia de xamanismo, ou xamanismo imagético. As imagens que são produzidas através da câmera e a função que cumprem está mais relacionada ao que se sabe sobre ou a mensagem que o ser representado quer nos passar do que necessariamente a imagem projetada. Seja na forma imaginária, metafórica ou literal, isso é um exemplo de xamanismo, mesmo que esteja no plano virtual. Deste modo, penso que o vídeo etnográfico faz uma representação, por que ele faz uma tradução, uma interpretação de outra cosmogonia, algo que só o xamã sabe e pode fazer.

O corpo é uma referência importante para entendermos a cosmogonia indígena, já que todos, homens, onças e outros seres, são iguais perante tal cosmogonia, se diferenciando unicamente pelo corpo. É este corpo que vai definir a forma de ver o mundo. Se um índio é uma onça, neste caso, ele vai ver o mundo como uma onça. (LIMA, 1999), (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

Como afirma Manuela Carneiro (1998), o xamã é um ser múltiplo, pois ele consegue reunir em si vários pontos de vista. Assim, ele pode ver o mundo de diferentes modos, o que indica a sua constituição e localização. Os xamãs têm a experiência de viajar num plano mais abstrato, ou puramente espiritual, e de transitar por diversos mundos e ter a capacidade de traduzir, ou de narrar, o que ouviu ou viu. O xamã é uma agência indígena que serve como elo de comunicação entre humanos e não-humanos, ou entre humanos e humanos, como organizador do caos. No entanto, ser xamã é uma função perigosa, pois implica na necessidade de estar em constante alerta, como para proteger os moradores da aldeia da iminência de qualquer doença ou morte que chegar a aldeia.

Embora, no mundo dos mortos não exista afinidade nem dádiva, ou seja, não existem reciprocidades, o xamã é único que tem uma afinidade com os mortos, pois, como foi afirmado anteriormente, ele não é sujeito uno, sendo que a sua alma possui a possibilidade de se despregar do seu corpo. Ele pode estar entre os humanos, entre os mortos, entre os deuses, só ele, somente ele tem a capacidade de unificar esses três níveis cosmológicos (VIVEIROS DE CASTRO, 1986).

Ao dialogar com os animais, o xamã exerce papel de interlocutor ativo num diálogo transespecífico, pois conversa com os espíritos e depois retorna para o mundo dos humanos para narrar a história de forma que os leigos possam entender. Ele transpõe os limites da experiência humana, fazendo uma espécie de intercambio de perspectivas. A relação entre e o xamã e mundo material é uma relação intersubjetiva, uma vez que o universo como um todo também possui subjetividade.

O xamã é o único capaz de transcender as barreiras corporais e adotar outras perspectivas e assim se comunicar com outros humanos, seja ele o jaguar, o tucano ou o pequi. Como bem afirmou Viveiros de Castro, ao comentar a narrativa de Davi Kopenawa: “O xamã é um ser múltiplo uma micropopulação de agências xamânicas abrigadas num corpo” (SD, 6), ou como afirmou o próprio Kopenawa  “são tão minúsculos quanto partículas de poeira cintilantes” (SD, 1).

Penso que o conceito de rizoma de Deleuze e Guatarri (1995) ilustra muito bem a corporalidade xamânica, pois aquele tem formas diversas, ele não é uma raiz, pois não tem um ponto de origem e pode fazer infinitas conexões e agenciamentos, tanto coletivos de enunciação quanto maquínicos. Um rizoma pode fazer conexões com as estruturas de poder quanto a luta dos movimentos sociais. Não existe uma única posição ou conexão para o rizoma, ele muda de acordo com o lugar, espaço e tempo, deste modo o rizoma não possui medida nem dimensão, mas apenas linhas. No entanto, essas linhas nos remetem a outras linhas, possibilitando assim, infinitas multiplicidades de relações, ele não é uno nem múltiplo, ele não segue nada e nem deixa ser seguido, resumindo “o rizoma é um sistema a-centrado, não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, 33).

O xamã tem vários corpos, mas ele também é um corpo sem órgão. Um corpo sem órgão é improdutivo, ele se rebate sobre produção e ao desenvolvimento, o corpo sem órgãos é anti-produção, pois produção conecta consumo e registro, assim no sistema das máquinas desejantes tudo é consumo e desenvolvimento (DELEUZE, GUATARRI, 2009). O corpo sem órgão é um corpo em que o prazer produz seus próprios agenciamentos sem dependência com o corpo, é um corpo desterritorializado, ele não é corpo vazio e sem órgãos, mas um corpo que faz conexões com órgão de outros corpos, ele não depende do organismo e de sua organização. O corpo sem órgãos pode fazer uma multiplicidade de conexões, que são micro partículas que possuem múltiplos movimentos e distâncias (DELEUZE, GUATARRI, 2009).

Tudo isso nos leva a concepção de que o movimento de agir do xamã é tomado a partir da arte das multiplicidades que difere de dirigir e hierarquizar. O xamã pode assumir qualquer forma, bastando apenas entrar na floresta e tirar a roupagem de humano ou de jaguar para se transformar em tucano ou ir para o mundo dos mortos, portanto, nunca é demais lembrar que xamanismo não é que aquilo que se tem, mas aquilo que se é (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

Carneiro (1998) define o xamã como um tradutor que tem como difícil missão traduzir um conceito de uma língua com o mesmo significado para outra. A tradução é uma interpretação ou traição. Tradução também é alteridade, de modo que, o tradutor tem que sair de sua língua e ir para outra bem diferente e depois voltar para a sua novamente. Tradução significa diferença. Pode-se dizer que o xamã é também um narrador. Segundo Benjamin (2008), o narrador não é somente aquele que viaja (o marinheiro, o comerciante), mas também o camponês. Aqueles viajam e trazem novas mercadorias e  novas histórias, mas o camponês ouve histórias das pessoas não para dar uma resposta e sim para dar continuação a elas.

Assim, o xamã é um narrador, porque, ao sair de mundo e entrar em outro, traz uma mensagem, faz uma narração e ao mesmo tempo uma tradução do que ele viu e ouviu, descrevendo também o encontro com os espíritos ou com os animais. Ele traz uma nova mensagem ou uma nova narrativa. O narrador, para Benjamim (1983), é um sujeito distante e por mais que ele nos seja familiar, não está presente entre nós, está sempre pronto para partir. Se para Benjamin (1983, p 196) “a arte de narrar está em vias de extinção. É cada vez mais difícil as pessoas que sabem narrar devidamente”. O vídeo e o xamã nos trazem uma narrativa, a oposição entre sonho e realidade, verdade e ficção. Assim, o xamanismo e o vídeo se inserem num mundo onde tudo são palavras e imagens.

O xamã narra o que viu durante a viagem, ou melhor, ele torna visível e compreensível as imagens que viu nos sonhos e viagens realizadas a outros mundos cosmológicos. Todas as narrativas orais e visuais estão submetidas à autoridade do narrador. No caso das sociedades indígenas, o xamã cumpre essa função e agora também o videasta indígena. Se o xamã nos apresenta o que viu e ouviu em suas viagens a lugares distantes, através de uma narrativa oral, a câmera e a televisão também nos apresentam o que viram e ouviram em suas viagens a lugares distantes.

Assim como a televisão e a câmera, o xamã também é uma espécie de veículo de imagens. Em outras palavras, ambos projetam ou refletem imagens míticas de lugares distantes e das imagens que se vêem nos sonhos.  O xamanismo e a câmera compõem um complexo jogo de imagens, onde quem fala é sempre o outro. A câmera e a televisão apenas fazem a tradução e a interpretação do que é dito.  Todo esse complexo jogo de imagens pode ser denominado de xamanismo imagético, ou um “xamanismo sem xamãs” (FAUSTO, 2001). Dizendo de outro modo, tudo no xamanismo se dá através de viagens e imagens.

O xamã é responsável pela negociação entre humanos, os espíritos dos mortos e dos animais, configurando-se, assim, como uma espécie de relação social com diferentes seres e espaços diferentes. Isso nos permite enfatizar o caráter de multiplicidade da agência xamânica, bem como a possibilidade de transposição para outros universos cosmológicos. Esse é um privilégio restrito ao xamã, somente ele tem a possibilidade de alternância ou de fazer conexões com outras categorias de seres, operando a partir de outros componentes cosmológicos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

O xamã é afetado no momento em que inicia sua relação com os outros seres, ele se transformando em outro. Essa relação se repete também no vídeo etnográfico que é marcado pela representação. As personagens, assim como aqueles que filmam, são afetadas pelas imagens. As personagens do vídeo etnográfico, ao narrarem uma história-estória, na maioria das vezes, extrapolam os limites do que se pode dizer diante da câmera. Assim, a personagem explicita seu caráter de representação, fundindo-o à própria vida como representação (RAMOS), (COMOLLI, 2008).

O xamanismo tem uma relação íntima com as imagens, pois só é xamã quem tem a capacidade de sonhar (KOPENAWA 2004). O xamã é aquele que é capaz de entrar em outros universos cosmológicos e se relacionar com os outros seres. A relação que o xamã desenvolve com os espíritos dos mortos ou com o jaguar, se caracteriza como uma relação de diplomacia. Somente ele pode ver imagens que nós, pessoas comuns, não temos capacidade de ver ou de interpretar. O xamã é aquele que sonha, e como dizem os Ikpeng, “todo aquele que sonha tem um pouquinho de xamã” (RODGERS, apud VIVEIROS de CASTRO, p. 04).

“O xamanismo está carregado de conceitos visuais” (VIVEIROS DE CASTRO 2002, p. 7), o xamanismo seria impossível sem a imagem. No xamanismo a imagem, o corpo e oralidade são dimensões fundamentais. É o corpo que define a perspectiva que o xamã ocupa na relação. O universo cosmológico ameríndio é marcado por “metamorfoses constante”, deste modo, o corpo é uma forma de distinção, uma vez que o índio está em constante formação corporal (MACEDO, 2009) O xamã e o vídeo produzem uma espécie de:

curto-circuíto de imagens, assumindo várias formas de uma só vez, segundo perspectivas diferentes. Teríamos com isso a realização da metamorfose pela imagem, uma realização imagética que facilitaria o estabelecimento da comunicação entre diferentes seres e domínios do mundo” (MACEDO, 2009, p 525).

O xamã e o vídeo são agentes da imagem.  O complexo de imagens das artes gráficas produzidas pelos índios, seja pela pintura, seja pelo vídeo, são meios de se estabelecer relações de comunicação com outros seres, como por exemplo os animais, as plantas, os mortos e os deuses. O filme Espirito da TV (Direção de Vincent Carelli,1990) nos mostra um Waiãpi  que ao assistir um ritual mágico de um outro povo  correu para frente da televisão e disse  “Eles [ os espíritos] não vão passar daqui, vieram pela TV, mas não vão passar”. Essa atitude nos abre vista para a interpretação de que a televisão contém a capacidade de armazenar os espíritos de outros seres, já que as imagens que aparecem na tela são um claro indício, para o índio, de que os espíritos estão dentro dela e podem sair a qualquer momento.

O videasta é um demiurgo, uma vez que no seu discurso sobre o mito, apresenta um aspecto relevante sobre os seres que participam da narrativa, a câmera e a televisão são uma “tecnologia metamórfica dotada de agências” (MACEDO 2009). Grande parte dos povos passou a encenar seus mitos diante dessa tecnologia, pois ela tornou-se um instrumento demiurgo dotado de agências que podem transportar-se para outros espaços e tempos cosmológicos. Assim, através de um registro da luz que penetra pelas lentes da câmera, o vídeo nos convida para presenciar uma nova forma de xamanismo. Macedo (2009) estabelece uma relação entre escrita e xamanismo dizendo que a “escrita, como o grafismo em sua ‘condensação visual’, presentificaria, identificaria e metamorfosearia os múltiplos seres, facilitando a comunicação entre eles.” (MACEDO, 2009.p 550).

O vídeo é uma tecnologia que pode ser caracterizada pela capacidade de fazer conexões com diversos aspectos xamânicos, como dialogar com a categoria de outros seres sobrenaturais que estão exclusivamente em outros domínios cosmológicos e que podem ser demonstrados através da tradução xamânica. O vídeo e o xamã associam os sonhos e os mitos através de uma justaposição de imagens. O videasta e o xamã são como dois artistas bricoleures, eles reúnem pedaços recolhidos, nos quais formam gestos, imagens, rostos, a intensidade das palavras e das idéias e formam uma narrativa.

Inicio, agora, uma nova viagem cosmológica em direção ao canibalismo e ao vídeo etnográfico, demonstrando suas semelhanças. Se o xamã é um ser múltiplo por poder assumir diversas formas corporais, o vídeo etnográfico também pode sê-lo, pois o videasta torna-se um ladrão de corpos e de vozes, estabelecendo uma relação de predação ou dádiva com essas vozes esses corpos. É através desses corpos e vozes que o videasta dá forma ao seu próprio discurso e ao seu próprio corpo, o corpo fílmico que é, por isso, múltiplo. Isso fornece motivo para classificar o xamanismo e o vídeo como bricoleurs, uma vez que eles pegam pedaços de corpos, imagens, discursos e partir disso montam as suas narrativas discursivas. Eles falam como se fossem o outro e raciocinam a partir do outro. A câmera e a mesa de montagem se apresentam como uma possibilidade tecnológica de articulação de discursos e espaços totalmente díspares que somente era possível ao xamã.

Insiro aqui a noção de dádiva nessas relações. A Dádiva (MAUSS, 2003), significa relação e aliança, se alguém trava relação com outro, essa relação só encerra com a violência ou morte, pois a dádiva é uma divida eterna com outro.

No mundo dos mortos não existe relação e, portanto, não tem dádiva (MAUSS, 2003). Assim, entre os Krahós, por exemplo, quando dizem que alguém está morto, mesmo sem estar fisicamente, é por que ninguém quer ter relações com ele, este é um exemplo de morte simbólica existente entre eles (CUNHA 1978).

Há dois momentos especiais na minha pesquisa etnográfica, que me levaram a relacionar o canibalismo ao ato de filmar e fotografar. O primeiro momento foi quando um Karajá afirmou que a mãe dele, que já é uma senhora com mais 70 anos, não aceita ser fotografada, pois ela teme que a câmera roube a sua alma. Esse fato se assemelha a uma citação que Benjamin faz sobre o medo que as pessoas sentiam ao serem fotografadas, portanto, o conselho era “nunca olhe para uma câmera fotográfica” (2008, p. 99).

O segundo momento ocorreu numa das diversas sessões de fotografias que fazia com os alunos e alunas indígenas da licenciatura. ao fotografar uma mulher Krikati. Ela pediu para ver a foto, no entanto não gostou da forma pela qual sua imagem se formou. Perguntei se queria que eu apagasse a fotografia, mas ela respondeu da seguinte forma: “não, é você quem decide, pois a minha alma já foi capturada e aprisionada pela câmera”.

Se em Arawetés: os deuses canibais, Viveiros de Castro (1986), afirma que os Arawetés se vêem da seguinte da forma “nós somos comida dos deuses, mas nós seremos deuses quando morrermos se formos devorados por eles”; se para eles os deuses são canibais que os devorarão quando morrerem, o que se constitui umas espécie de “canibalismo divino” (CASTRO, 1986), a índia Krikati e Karajá, sabem, da mesma forma, que as suas almas serão devoradas pela câmera ao serem fotografadas ou filmadas. Mas elas sabem, porém, que serão imagens.

Essa relação é denominada por mim de canibalismo imagético. Se os Araweté quando devorados pelos deuses deixam de ser reais e passam a ser divinos, a índias Krikati e Karajá ao serem fotografadas e postadas no mundo virtual continuam sendo reais, uma vez que o virtual não se opõe ao real (LEVY, 1995).

O canibalismo imagético é uma relação de dádiva entre quem devora e quem é devorado que se dá através de um ritual. Ao atravessar os espelhos das lentes, o sujeito filmado caracteriza-se como uma espécie de devir imagem ou uma metáfora imagética. Mas para que isso aconteça é preciso ser devorado pelo inimigo, pelo outro, e ao ser devorado pela câmera do outro, ele será lembrado, pois o seu corpo se tornará imagem.

A noção de predação e dádiva são fundamentais para refletir sobre o vídeo etnográfico, uma vez que na relação com o inimigo o índio não tem a sua subjetividade negada, ao contrário disso, passa por uma transformação imagética e tanto ele quanto o inimigo passam conter em seus corpos as marcas da predação, uma vez que a performance do ato de filmar afeta os dois (COMOLLI, 2008).

O sujeito filmado ao ter sua alma “devorada” pelo videasta estabelece uma relação de aliança e afinidade, entregando a alma para câmera do inimigo, ou melhor, do afim, e em troca ele se torna imagem, já que para a existência do canibalismo é necessário que exista a afinidade. O sujeito se transforma num devir outro, um devir imagem. Ao devorar o outro ele se torna o outro, ou como declarou Rimbaud, o poeta maldito, “Eu sou o outro”.

O canibalismo imagético é uma inescapável passagem para imortalidade, o índio sabe que a sua alma será devorada pela a câmera do inimigo, mas ele é uma espécie de devir-imagem, ele não é mais humano, pois ele já se tornou imagem, ou melhor, ele tornou-se um vídeo-índio. Isso acarreta a sua passagem do atual para o virtual, porém ele continua real, pois o virtual também é real (LEVY, 1996).

O processo dialético descrito por Pierre Levy (2003) demonstra a “virtualização do corpo” ou a desterritorialização do corpo, isto instaura uma nova dinâmica, que é a mutação das imagens. O que equivale a dizer que para o índio assumir uma nova perspectiva, a sua imagem deixa ser real e passa para o plano em que ela pode ser reproduzida infinitamente e sem estar conectada necessariamente a um único corpo, o que de certa forma nos remete ao xamã que não possui um único corpo, mas sim uma multiplicidade de corpos e perspectivas, e inclusive o passaporte para outros planos cosmológicos.

Assim, a comunicação empreendida pelo vídeo e pelo xamã se diferencia do jornalismo hardware, uma vez que eles não têm a necessidade de transmitir uma “verdade”. Outra importante característica que os diferencia é a obsessão do jornalismo de veicular as informações de forma imediata, enquanto que o vídeo etnográfico pode durar décadas para ser filmado, editado e por final ser exibido. Parafraseando Godard, o vídeo etnográfico não tem função de informar, quem quer se manter “informado” que leia a revista Veja ou assista o Jornal nacional.

A palavra final é do xamã Davi Kopenawa Yanomami (2004, p. 65).

Os espíritos são assim tão numerosos porque eles são as imagens dos animais da floresta. Todos na floresta têm uma imagem: quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas, quem mora na água… São estas imagens que os xamãs chamam e fazem descer para virar espíritos xapiripë. É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão.

* Vandimar Marques Damas é graduado em ciências sociais pela UFG e mestre em cultura visual pela faculdade de artes visuais da UFG. Trabalha como professor no curso de artes visuais do EAD UFG e professor de sociologia na rede pública de ensino.

Referências Bibliográficas

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CARNEIRO da CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros: Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. Hucitec, São Paulo 1978.

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COMOLLI, Jean Louis. Ver e poder. Edt. UFMG, BH, 2008.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

_________. Mil Platôs. Editora 34, São Paulo, 1995.

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KOPENAWA, D.Y. “Xapiripë”. In Yanomami, o espírito da floresta. Org. B. Albert & D. Kopenawa. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil / Fondation Cartier, 2004.

LEVY, Pierre. O que é o virtual?Editora 34, São Paulo, 1996.

LIMA, Tânia Stolze. “Para uma teoria da etnográfica da Distinção natureza e Cultura na Cosmogonia Juruna”. In. Revista Brasileira de Ciência Sociais, 14 , no, 40, 1999, p. 13-52.

MACEDO, Silvia Lopes da Silva. “Xamanizando a escrita: aspectos comunicativos da escrita ameríndia”. In. Mana. 2009, vol.15, n.2, pp. 509-528.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Cosac Nayf. 2003, São Paulo, 2003.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal… o que é mesmo o documentário. São Paulo: Senac, 2008.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Inconstância da Alma Selvagem. Cosac Naify, São Paulo, 2002.

_________. Araweté: Os deuses Canibais. Rio de Janeiro, Zahar/Anpocs, 1986.


[1] O conceito de devir significa vir a ser. Mas para Deleuze e Guatarri (1980) o conceito de devir é uma espécie de desterritorialização, ele está nas brechas do sistema e não se define pela evolução e sim pela constante transformação e pelas alianças e conexões que ele faz. Neste texto esse conceito refere-se as conexões que são realizadas entre a câmera filmadora, o xamânismo, o índio e o cineasta.

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