As Tentações do Doutor Antônio (Federico Fellini, 1962)

Raphael Fonseca*

Roma, década de 60. Jovens, o Cinecittà no seu auge e a explosão internacional da commedia all’italiana. De forma rápida, é deste modo que Fellini dá o tom introdutório do seu média-metragem “As tentações do doutor Antônio” (“Le tentazioni del dottor Antonio”), de 1962, inserido dentro do longa-metragem episódico “Boccaccio 70”. Como o seu título aponta, esta reunião de médias, que também contou com as mãos de Mario Monicelli, Luchino Visconti e Vittorio de Sica, trata-se de uma série de pequenas histórias em que o moralismo às avessas do “Decamerão” se faz presente.

Após o charmoso curta-metragem inicial de Monicelli, “Renzo e Luciana”, somos presenteados com o filme de Federico Fellini. Creio que o tópico central do filme pode ser resumido ao título de um vídeo de Lygia Pape realizado em 1976: “A gula ou a luxúria?”. Nosso personagem central, o doutor Antonio, tem a censura como sobrenome tal qual um sacerdote medieval. Seu enfoque único, porém, é o caráter público da luxúria. Sua figura surge junto aos créditos iniciais do filme. Ele se encontra a limpar seus óculos e encara o espectador. Logo após, coloca-os e encarna a iconografia do intelectual. Mais do que isso, limpar os óculos significa ver melhor. É necessário fazê-lo para que ele possa praticar seus atos de vigilância por Roma.

E estes são incessantes. Estacionamento de carros, um espetáculo de dança e até uma senhora a portar um vestido curto são atacados por seu olhar agora límpido e língua afiada. Os óculos de Antonio apenas são desafiados quando se constrói um monumento em um terreno descampado.

Cena do filme "As Tentações do Doutor Antônio".

Cena do filme "As Tentações do Doutor Antônio".

A seqüência de imagens que mostra a montagem de um outdoor com a imagem de Anita Ekberg é sinuosa e toda dada por rápidos movimentos de câmera e de personagens. Do mesmo modo, a mente do personagem central atordoada fica; fez-se necessário tirar e colocar novamente os óculos para se acreditar na gigante voluptuosidade da imagem de Ekberg. Mais do que isso, trata-se de uma peça publicitária de leite.

Uma imagem que seduz por si só devido à beleza da mulher estampada (curiosamente, não se trata de uma fotografia, mas de uma grande gravura com pitadas de pop art) e que vende um produto naturalmente dúbio: leite. O mesmo leite fornecido pelas mulheres aos seus filhos, como Antonio verbaliza algumas vezes. Imagem esta que também remete a aquilo que se faz necessário para que a mulher conceba uma criança: esperma. E é justamente um trauma do ato do gozo que leva Antonio à sua militância contra a exposição do corpo feminino.

Anita Ekberg aqui é uma espécie de Olympia dos anos 60. Assim como o famoso quadro de Édouard Manet, exposto no Salão de Paris de 1865, recebeu diversas críticas negativas do público, chocado com a literalidade do nu de uma prostituta pintado a óleo, a publicidade em grande escala causa desgosto no filme de Fellini. A diferença aqui é quantitativa; o desgosto se dá exclusivamente na figura do doutor Antonio. Muito pelo contrário, a população de Roma rapidamente transforma a propaganda, o aqui e agora, em monumento, tal qual a “Fonte dos quatro rios” na Piazza Navona.

Cena do filme "As Tentações do Doutor Antônio".

Édouard Manet - "Olympia" - 1865

Do mesmo modo que com imagem e som, a imagem de Akberg diz “Bevete più latte” (“Bebam mais leite”), a figura de Antonio se entrega à sedução da imagem. Pela primeira vez, seu objeto de ódio foge da escala humana ou da natureza-morta e ganha uma dimensão igualável à própria paisagem arquitetônica. Não cabe mais agir de dentro para fora, destruindo a imagem dada. A musa do cinema faz com que as transformações se dêem dentro do próprio Antonio.

Nesse sentido o filme de Fellini é uma espécie de ensaio que pode ser muito bem aplicado ao mundo contemporâneo: é inevitável nos seduzirmos pelas imagens. A própria sensação de repulsa de um tipo físico não deixa de ser também uma sedução. Foi preciso que aquilo pungisse, “seduzisse”, para que existisse o esforço na repulsa. É inevitável, contemporaneamente e também neste momento em que os outdoors são integrados ao classicismo da cidade de Roma, que gula e luxúria andem juntos; escolher não é mais possível. Trata-se de uma via de mão dupla.

*Raphael Fonseca é graduado em história da arte pela UERJ, mestre na mesma área pela UNICAMP e professor de Artes Visuais do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. É curador da Mostra do Filme Livre, do Festival Brasileiro de Cinema Universitário e também do Primeiro Plano (Festival de Cinema de Juiz de Fora). Além disso, está trabalhando como curador de duas mostras retrospectivas que acontecerão esse ano: a “Commedia all’italiana”, que acontecerá entre abril e maio na Caixa Cultural de São Paulo e de Brasília, e uma retrospectiva completa do Ettore Scola, a acontecer entre agosto e setembro, na Caixa Cultural do Rio e São Paulo.

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