Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003)

Nelson Freire: uma investigação sobre o recato e o pudor

Por Camila Barbosa Marcelino*

O documentário de João Moreira Salles, Nelson Freire, acompanha a trajetória do virtuose mineiro, entre viagens e retratos cotidianos, ao longo de dois anos. Seu filme, estruturado em 31 episódios autônomos entre si, constitui um ensaio sobre “um dos segredos mais bem guardados do mundo do piano”. Sobre o pianista e sua relação com o instrumento, sobre a música e o silêncio como meios de comunicação.

O filme de Salles, assim como 32 curtas sobre Glenn Gould de Fraçois Girard, opta pela estrutura episódica, fragmentando a narrativa e possibilitando explorar com maior genuinidade o universo particular do personagem (não edificado no campo verbal). A abordagem, tendo em vista a timidez e o recato de Freire, permite captar pequenos momentos, registrar vislumbres e mesmo deflagrar a convivência estabelecida entre músico e realizador.

É notável, em vários aspectos, a influência do ser e do interagir de Freire na composição fílmica. A começar pela estratégia do diretor que, para captar a essência e não a alteridade do menino prodígio, instaurou uma relação de aproximação gradativa. A princípio distante, para que o aparato cinematográfico não apresentasse motivo de inibição e acanhamento por parte do pianista. Mais tarde, íntimo e conivente devido ao processo de estreitamento da câmera com o “objeto” de representação, sutilmente construindo um entendimento internalizado entre ambos e, numa leitura secundária, entre o espectador. No episódio intitulado “TV”, por exemplo, enquanto Nelson é entrevistado por um jornalista francês que pede para que ele repita determinada frase com “um sotaque mais brasileiro”, ele troca olhares cúmplices com a câmera do documentário. Olhares que comentam sua posição em relação ao pedido e, conseqüentemente, evidenciam uma vivência comum e anterior. Da mesma forma, é essencial capitular que a entrevista que percorre todo o filme apenas foi realizada no último dia de filmagem.

Outro aspecto insigne é o que relata a fotografia do filme. Toca Seabra, o fotógrafo de Salles, opta pela iluminação natural; sem artifícios, sem fresnéis, sem holofotes sobre o talento do instrumentista. Opção intrinsecamente ligada ao caráter ou disposição de Freire que não acataria, supõe-se, à disparidade no seu cotidiano. Apesar disso, a iluminação retrata alguma equivalência em relação aos resguardos do “personagem”. Ela intensifica a sobriedade, o sombrio, a lacuna, o velado de sua persona enquanto artista.

Elementos igualmente chaves para o desenvolvimento da narrativa, são as cartas. Primeiramente, aquela de seu pai que teria sido guardada para a posteridade e que, indubitavelmente, funciona como nota biográfica de Freire. Ela é narrada por Eduardo Coutinho e descreve com grande afetividade a infância do portento menino de Boa Esperança em Minas Gerais; a forma como aos três anos começou a tocar peças de memória que haviam sido executadas anteriormente por sua irmã; os sacrifícios realizados pelos pais para que o menino doente pudesse desenvolver sua tão graciosa aptidão; e, em uma esfera mais tênue como todo gesto e expressão deste filme, a relação de amorosidade e respeitabilidade que provoca a simpatia no espectador.

A segunda carta é de Nise Obino, uma professora de piano muito importante no desenvolvimento artístico de Freire. Ela aparece após dois anos da mudança da família para o Rio de Janeiro, quando o trabalho do menino se encontra estagnado, segundo ele, pela falta de paixão no que fazia. Ela reaviva seu interesse pela música sobre a qual o homem nunca deve estabelecer hierarquia, “nunca se colocar acima”. Freire diz “Ela não está mais aqui, mas não existe um dia que eu não fale com ela”, não existe um dia em que ele não se comunique através da música, do olhar marejado e do silêncio entre uma palavra e outra, o interstício do tempo. Maneira de dizer igualmente adotada por Salles.

A relação de Nelson Freire com o instrumento, o piano, encontra-se, para documentário, num diapasão semelhante ao de Salles com sua lente “mediatizante”. Em certo momento, num ensaio para um evento beneficente, Freire afirma a antipatia mútua entre ele e o instrumento com que realiza as peças e, assim sendo, acaba por adjetivá-lo de certa “organicidade” que torna mais profunda e complexa sua relação com a música. Da mesma forma, a lente observacional de Salles influi em seu filme, tanto naquele de registro e armazenamento, quanto no outro, autônomo e interativo, imprevisível.

A solidão do músico relatada pelos enquadramentos distantes, pela condição enquanto talento preconizado e pela batalha harmônica com o instrumento vivo o transformam, e à obra a traduzi-lo audiovisualmente, em considerável epíteto ilustre às percepções.

*Camila Barbosa Marcelino é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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