por João Paulo Capelotti*
A primeira imagem de Eva Khatchadourian (Tilda Swinton) em Precisamos falar sobre o Kevin é num conhecido festival europeu que celebra a colheita do tomate. Os planos plongée que a mostram espremida em meio aos populares ou deitada no chão coberto de suco vermelho, embora sirvam para explicar a profissão da personagem (escritora de guias de viagem), prestam-se muito mais a inocular no espectador duas ideias que o acompanharão durante o resto do filme: inferno e sangue.
A escolha dos planos iniciais diz muito sobre como Precisamos falar sobre o Kevin apela ao estudado uso da cor e a metáforas visuais para transportar para a tela o romance epistolar de mesmo nome da escritora Lionel Shriver.
Enquanto no livro Eva escreve longas cartas ao marido buscando compreender o que está por trás das atitudes perversas de seu filho, o filme inevitavelmente adota uma estrutura de flashbacks para propósito semelhante.
Afinal, o que está por trás das barbaridades cometidas por Kevin (na adolescência, Ezra Miller)? Ele é mau por natureza ou foi apenas o produto da equivocada criação dos pais? Há algo de intrinsecamente bom ou mau em nossas personalidades ou elas são reflexo direto e necessário do que nos é ensinado pela experiência? As crueldades que Kevin comete desde criança poderiam ter sido sufocadas por meio de repreensões mais severas dos pais (debate especialmente acalorado em tempos de “Lei da Palmada”)? Mas, mesmo que os erros em sua criação – e eles são evidentes – sejam fatores que obviamente ajudam a explicar a tragédia perpetrada por Kevin, é justo culpar apenas os pais?
Eva não é exatamente um modelo de mãe. Kevin, inclusive, sugere que aprendeu com ela sua crueldade, após ouvir uma série de comentários sarcásticos sobre pessoas obesas. Já Franklin (John C. Reilly), o pai, é permissivo e incapaz de ver qualquer coisa errada – o que acaba se tornando uma arma sempre utilizada por seu filho.
O instigante conflito entre determinismo e livre-arbítrio, entre destino manifesto e tábula rasa, é objeto de interesse da filosofia há muito tempo. O debate é complexo e a diretora Lynne Ramsay não se arrisca a uma resposta, ainda que pontue o problema recorrentemente. Contudo, o que torna Precisamos falar sobre o Kevin mais que uma bem sucedida adaptação de um romance é o modo como essa discussão é levada à tela.
Há, claro, elementos pré-cinematográficos que auxiliam essa empreitada. O próprio nome “Eva” já sugere a ideia de pecado, por se tratar da primeira transgressora das ordens divinas, de acordo com o Gênesis. Trata-se, além do mais, da mãe de Caim, também o primeiro assassino da Bíblia (o que, por si só, poderia conduzir à mesma questão sobre quem foi o verdadeiro responsável pela morte de Abel).
Mas é claro que todas essas escolhas literárias, sejam ou não propositais, seriam inócuas nas mãos de atores incompetentes ou de uma direção menos inteligente. Felizmente, nenhum desses problemas acomete o longa, beneficiado pelo bom entrosamento entre direção, roteiro, atuações e categorias técnicas.
O Kevin adolescente é retratado fazendo uso frequente de roupas infantis – a mesma camiseta dos desenhos dos tubos de ketchup e mostarda o acompanha desde criança. O único livro em sua estante é Robin Hood (e Kevin se orgulha de ser um excelente arqueiro), o quarto é impessoal e não há sequer pistas de sua banda favorita. Nunca nos é permitido ver o que ele olha em seu computador. É frequente o uso de planos fechados em seu rosto ou em seus olhos perturbadores. Não raro, ainda, metáforas visuais aumentam o desconforto perante as ações de Kevin – como quando este surge comendo uma lichia, após um desagradável incidente envolvendo sua irmã.
No entanto, é perceptível que o principal norte da produção foi mesmo a utilização de uma paleta de cores que pende para o vermelho, no intento de retratar a sangrenta tragédia que permeia a trama. Em conjunto com a direção de arte de Judy Becker, o diretor de fotografia Seamus McGarvey, indicado ao BAFTA deste ano pelas conquistas técnicas do filme, investe em planos que ora jogam luz vermelha sobre a personagem principal (como o das sirenes da polícia quando Eva se aproxima da escola de Kevin), ora a põe em ambientes com essa cor (como durante a sequência no supermercado, em que Eva fica paralisada em frente às prateleiras de massa de tomate).
Na verdade, a função da cor vermelha é apresentada logo nos primeiros instantes, quando a protagonista é acordada de seu sonho ou memória do festival europeu (ou de seu inferno particular) por uma bexiga de tinta vermelha arremessada contra a parede da casa onde mora. A tinta, que se espalha por janelas, varanda, porta, assoalho, e chega a atingir o pára-brisa de seu carro, transporta Eva para seu inferno público: o julgamento da comunidade local sobre as atrocidades cometidas por seu filho.
A partir de então, não lhe será permitido nenhum instante de felicidade. Caminhando sorridente pela calçada depois de conseguir um novo emprego, Eva é logo esbofeteada pela mãe de uma das vítimas de Kevin, que encara a felicidade da protagonista como um sinal de desprezo pela dor alheia. Posteriormente, já estabelecida no trabalho, o flerte com um colega de trabalho tem desfecho assustadoramente rude, como se este estivesse lhe fazendo um favor ao conversar com ela.
Imutável o passado e suas dolorosas consequências – algo demonstrado, por exemplo, em Desejo e reparação (direção de Joe Wright, 2007) – o que se põe é como lidar com a culpa que corrói a cada dia, e impede qualquer reação de Eva contra o tapa e contra o colega de trabalho. A busca por respostas vem do exame do próprio passado, metaforizado pela limpeza que a protagonista empreende na fachada de sua casa e nos vidros de seu carro, sujos de vermelho.
A tinta que estigmatiza Eva é o sangue que ela traz nas mãos – ou, pelo menos, o que os outros acreditam que está lá. O limpador de pára-brisa que insiste em trazer para os cantos da vidraça a tinta vermelha é, por conseguinte, metáfora do próprio esforço da personagem em enxergar com mais clareza seu passado – como se o que estivesse limpando fosse o sangue que lhe cobre os olhos. A expurgação dessa culpa, que a deixa empapada de vermelho ao longo do processo de lixar, lavar e repintar a casa, se consolida com o branquíssimo plano final do filme, que é quase uma redenção. Isso não significa que as paredes de Eva não serão manchadas novamente, mas que, pelo menos momentaneamente, o sangue não lhe turva mais a vista.
*João Paulo Capelotti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e mestrando em Direito das Relações Sociais na UFPR.
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Adorei a crítica. Altamente pertinente e detalhista, explicando os acontecimentos mais relevantes do filme, que, por acaso, é uma “delícia”. “We need to talk about Kevin” nos faz refletir sobre questões psicossociais, relativas à educação dos filhos e aos reflexos de nosso comportamento sobre estes, além das indagações referentes à possibilidade do indivíduo nascer com comportamento pré-determinado.
Att
Mateus Cayres