A Trilogia Psicodélica (Tinto Brass, 1967-1970)

André Renato*

A epígrafe que vemos no website oficial do cineasta italiano Tinto Brass tem os ares de uma breve profissão de fé, colocada ali para já espantar qualquer internauta incauto que – naquelas noites solitárias – acabe por cair em uma página que não oferecerá o que procura:

L’erotismo sta alla pornografia come la “fellatio” sta al “pompino”. E’ una questione semantica. Coi miei film, del resto, io non procuro soltanto erezioni, ma anche e soprattutto emozioni. (Em livre tradução: O erotismo está para a pornografia como a “felação” está para o “boquete”. É uma questão semântica. De resto, com os meus filmes, eu não procuro unicamente ereções, mas também e sobretudo emoções.)

Cineasta Tinto Brass

A longa e polêmica discussão sobre as fronteiras entre arte erótica e pornografia – assim como a necessária legitimação daquela, com boas disposições para a sua produção, circulação e reflexão crítica – estende-se quase por igual nos diferentes dispositivos. A explicação que dá o poeta José Paulo Paes, na apresentação de sua antologia da poesia fescenina universal, pode ser aplicada também a um cinema como o de Brass:

Supor que um poema erótico digno do nome de poema vise tão-só a excitar sexualmente os seus leitores equivale a confundi-lo com pornografia pura e simples. (…) Já a literatura erótica, conquanto possa eventualmente suscitar efeitos desse tipo, não tem neles a sua principal razão de ser. O que ela busca, antes e acima de tudo, é dar representação a uma das formas da experiência humana: a erótica. (Poesia erótica em tradução de José Paulo Paes. São Paulo, Companhia das Letras, 2006)

Como diretor de filmes, Tinto Brass é dono de uma carreira que já está para atingir os 50 anos. Mas, curiosamente, renegou o seu maior sucesso: a superprodução Calígula (“Caligola”, Itália / EUA, 1979). O cineasta-autor pediu para que seu nome fosse retirado dos créditos por discordar da pós-produção, sobre a qual não teve o poder que demandava. Não obstante, ainda lhe sobram películas bastante representativas de um sofisticado erotismo, como Salão Kitty (“Salon Kitty”, Itália / Alemanha Ocidental / França, 1976), sobre o famoso bordel nazista, e A Chave (“La Chiave”, Itália, 1983), adaptação da obra do importante escritor japonês Junichirô Tanizaki. Nenhuma das duas teve, infelizmente, lançamento oficial em DVD no Brasil – embora se encontrem nas locadoras vários outros títulos do diretor, especialmente de fitas realizadas a partir dos anos 1990, como a ótima Monella – A Travessa (“Monella”, Itália, 1998), história das descobertas sexuais de uma adolescente nos anos 1950, regada a muito rock and roll.

Mas não só de “ereções” e “emoções” vive o cineasta. O elemento político também penetra em sua cinematografia. Em relação a Calígula, declara o diretor: “Eu quis fazer um filme sobre a orgia do poder, e não sobre o poder da orgia”, em clara oposição à finalização excessivamente pornográfica empreendida pelo produtor Bob Guccione. Porém, em Salão Kitty, Brass já atingira o seu intento subversivo, assim como nos três filmes que apresentaremos mais detidamente neste texto, realizados no auge efervescente da contracultura do final dos anos 1960, e que podem ser enfeixados na sua “trilogia psicodélica” (conforme expressão de Maitland McDonagh, em artigo publicado na revista Film Comment – na edição de julho / agosto do ano passado).

Com O Coração na Garganta (“Col Cuore in Gola”, Itália / França, 1967) acompanha Bernard, um ator francês que conhece a lolita Jane (17 anos), em um nightclub londrino. A menina acredita que o pai, que morrera num acidente de carro, tenha sido assassinado num jogo de chantagem que envolveria uma foto proibida da segunda esposa dele (madrasta de Jane). Mais tarde, Bernard encontrará a moça ao lado do cadáver – também assassinado – do homem que seria o chantagista. Profundamente apaixonado por ela e acreditando na sua inocência, o ator foge com Jane e ambos passam a procurar o “verdadeiro” assassino, enfrentando pelo caminho tanto a polícia quanto os comparsas do chantagista, dentre os quais se inclui um agressivo anão. No final, Bernard descobrirá a verdade dos fatos, mas pagará um preço caro por isso.

Com o roteiro tirado do romance policial Il Sepolcro di Canta, assinado por Sergio Donati, este filme é a “pulp fiction” original da qual Quentin Tarantino adoraria ter sido o realizador. O estilo “grindhouse” (filmes B meio violentos, meio eróticos, que costumavam ser exibidos em pequenas salas “sujas” nos anos 1970) de fitas como Kill Bill (vol. 1: 2003; vol. 2: 2004) e À Prova de Morte (“Death Proof”, 2007) nada mais faz do que emular a pop art de “Deadly Sweet” – título norte-americano do filme de Brass. A mise en scène é saturada de inserções e referências ao rock and roll; às histórias em quadrinhos: com imagens de Guido Crepax, autor cult de “comic books”, e Roy Lichtenstein – nome popular da arte “pop”, além de grafismos onomatopeicos (“slam!”, “crash!”, etc) que lembram o colorido seriado do Batman na TV norte-americana dos anos 60; ao universo do cinema: “Deadly Sweet” não deixa de ser um film noir, principalmente pela ação de Jane, a “femme fatale” na forma de ninfeta.

Bernard e Jane, o casal de amantes vagabundos que perambulam pela cidade afora, em eterna fuga e demanda ao mesmo tempo, lembra o que se vê desde os filmes “pop” de Godard (Acossado – 1959, O Demônio das Onze Horas – 1965), aos ensaios cinematográfico-existenciais de Antonioni (A Aventura – 1960, A Noite – 1961). Deste último, as citações explícitas a Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966) se fazer notar não só pela história de investigação e pela presença do universo da fotografia, mas pelo zoom que Brass dá no cartaz do próprio filme, que aparece afixado na entrada de uma sala de cinema pela qual passam os dois protagonistas. De resto, o pano de fundo deste e dos dois filmes subsequentes será a “swinging London”, uma das capitais da (contra)cultura jovem da segunda metade dos anos 60.

De Jean-Luc, Tinto Brass também soube aproveitar o questionamento da linguagem e estética do cinema enquanto “janela” para o real: quebra da “quarta parede” pelos atores, variação mais ou menos fortuita de planos em preto e branco, em cores, ou com filtros monocromáticos (verde, vermelho, azul), exposição de até três planos ao mesmo tempo na tela. Todo esse experimentalismo chama a atenção para a materialidade do suporte cinematográfico e para a invenção / construção de um filme enquanto discurso, além de contribuir, logicamente, para a atmosfera psicodélica da película e de sua época. O sangue que vemos junto ao cadáver do chantagista, evidentemente falso, lembra a famosa declaração do diretor francês: “não é sangue, é vermelho”.

No final das contas, mesmo com toda a sua bem intencionada erudição, Com O Coração na Garganta não deixa de ser um filme de exploitation: exagerado, melodramático, inconsistente. Mas pode ser considerado um ótimo exemplo do gênero, a pequena obra-prima de um cinema ao qual jamais se dará muita legitimação, mas que é tão inventivo quanto qualquer outro cinema mais sofisticado.

Negro Sobre Branco (“Nerosubianco”, Itália, 1969): Bárbara é uma mulher italiana que se encontra em Londres (cidade-fetiche nesses filmes pop art de Brass) acompanhada do marido. Como a típica figura literária da dona-de-casa burguesa, sua sexualidade é fortemente reprimida. Passeando sozinha pela cidade, ao longo de um dia inteiro, ela se entregará às mais inusitadas fantasias eróticas (em sua imaginação), enquanto é seguida de perto por um homem afro-descendente. Bárbara vai correspondendo aos seus flertes e pequenos assédios, até que – no final do dia – esteja pronta para voltar aos braços do cônjuge e retomar a vida legítima com uma nova disposição, graças ao alívio trazido por essa breve escapada.

Este filme foi produzido pelo prolífico Dino de Laurentiis – cujos cineastas parceiros vão de Fellini e Bergman a Sam Raimi e David Lynch. O papel da protagonista ficou com Terry Carter, que mais tarde atuaria no seriado de ficção científica cult Battlestar Galactica. Em relação à fita anterior, reconhecemos em “Attraction” (título estadunidense) um salto maior rumo aos abismos psicodélicos, um escancaramento das “portas da percepção” (que, não obstante, atingirá seu grau mais alto na produção seguinte). “Nerosubianco” é um delírio surrealista que se alimenta da potência da sexualidade feminina, que é muito generosamente trabalhada por Brass: muito do conteúdo político deste filme se insere na descoberta e valorização do eros feminino e sua libertação das amarras de culpa, insegurança, desinformação e medo historicamente grafados na alma da mulher pela civilização patriarcal do Ocidente.

De resto, os grandes temas político-sociais dos anos 60 aparecem salpicados nesta película bastante oportuna (de novo, o exploitation): Mao Tsé-Tung e Che Guevara; a revolução sexual e o anticlericalismo (nas formas de um padre que aparece dentro do túnel do amor, pregando contra o pecado do sexo, e de um “Jesus Cristo da libido”, que circula pelos parques de Londres com seus discípulos lascivos); Martin Luther King, Malcom X e a questão racial (lembremos o inominado coadjuvante que estimula a libertação sexual de Bárbara); a guerra do Vietnã e o imperialismo norte-americano. Do nosso ponto de vista globalizado do século XXI, algumas dessas ideias podem parecer excessivamente datadas; e a maneira (o tom) como Tinto Brass as coloca, excessivamente sectária, pueril. Mas aqueles eram mesmo anos rebeldes, e filme é um bom produto de sua era.

Negro Sobre Branco, dessa forma, não deixa de ter um caráter de documentário, inclusive pela copiosa utilização de imagens de arquivo. Mas o aspecto vanguardista pesará mais: na sucessão videoclípica dos planos (com a onipresente banda de rock fazendo o comentário musical), não se distingue claramente o que é fato e o que é fantasia na mente borbulhante de Bárbara. O filme é mais lírico do que narrativo, principalmente se comparado a Com O Coração na Garganta. No entanto, Tinto Brass é a vertente menos “highbrow” do cinema de poesia de Pasolini. O diretor, amante dos bumbuns e das axilas peludas das mulheres, parece ficar sempre no meio do caminho entre o “soft porn” e o cinema-cabeça dos grandes mestres italianos.

O Grito (“L’Urlo”, Itália, 1970). Anita abandona o noivo em pleno altar e foge com outro homem, um vagabundo chamado simplesmente de “Fulano”. Renegando a vida burguesa, os dois circularão sem rumo, em liberdade total, vivendo aventuras sem pudores nem razões, entrando em contato fortuito com as lutas sociais e sexuais da época. A dinâmica de uma movimentação mais ou menos errante por parte dos personagens é recorrente nas três produções que viemos discutindo. E nesta, o surrealismo e a irreverência atingem o paroxismo: os espectadores menos acostumados acharão o filme quase ininteligível. A montagem é mais “musical” do que lógico-narrativa, descontínua e afeita a associações poético-rítmicas mais ou menos casuais que podem ser a versão cinematográfica da “escrita automática” dos surrealistas. A mistura entre preto e branco, cores e filtros coloridos reaparece aqui, chamando atenção novamente mais para o código cinematográfico do que para o seu referente. Psicodelia.

“The Howl” (nome com o qual foi lançado nos EUA) está mais para um “filme-manifesto”: é saturado de críticas sarcásticas às tradições burguesas e de palavras de ordem da contracultura, tudo colocado numa mise en scène bastante teatral, e sempre numa chave burlesca, circense. É um filme-delírio, exagerado, afetado, atingindo resultados em geral nonsense. O escatológico, que Tinto Brass retomará em obras posteriores, já aparece aqui na cena em que os jovens protagonistas urinam no para-brisa do carro de um idoso casal burguês que lhes dera carona. As autoreferências cinematográficas também são reativadas, no momento em que uma voz em “off” ironiza a construção do filme segundo os padrões estabelecidos dos gêneros (uma “história de amor”). De resto, o caráter discursivo-ideológico torna-se particularmente evidente na organização dos diálogos, que mais parecem monólogos nervosos (daí, talvez, o “grito” do título) que se sobrepõem e atropelam uns aos outros.

Se Com O Coração na Garganta dialogava com o Blow Up de Antonioni, este filme parece começar do ponto em que terminou A Primeira Noite de Um Homem (“The Graduate”, 1967), de Mike Nichols, parodiando e levando às últimas consequências (psicodélicas, políticas, sexuais) o ato rebelde de Ben Braddock (Dustin Hoffman) e Elaine Robinson (Katharine Ross), este roubando-a de seu casório e tomando ambos um ônibus escolar rumo à… vida? Liberdade? Amor? A única diferença, que vemos no começo de O Grito, é que o ônibus que Fulano e Anita tomam não é escolar, e sim um daqueles “doubledeckers” britânicos. A melhor sequência do filme é a que mostra uma orgia “surrealista”, com todo o direito ao escândalo e – novamente – ao escatológico, inclusive com cenas de mutilação de animais vivos: o grotesco barroco é uma das linhas de força deste poema cinematográfico e subversivo, que, no geral, segue na cadência de uma liturgia pagã.

Curiosidade: Tinto Brass recusou-se a dirigir Laranja Mecânica, para fazer este filme. Stanley Kubrick agradece, mas imaginemos como seria o romance de Anthony Burgess adaptado pelas mãos pervertidas do italiano… De qualquer maneira, os três filmes da fase pop art de Brass não possuem ainda aquela alta dose de erotismo que começaremos a ver logo após, na carreira do diretor. Mas já apontam alguns caminhos bem interessantes nessa direção. Antes, o cineasta tinha estreado sob a batuta produtora de Henri Langlois, e servido de assistente para Alberto Cavalcanti e Roberto Rossellini. Dirigira de documentários e sátiras sociais a ficção científica B e western spaghetti, quando deu de encontro com as revoluções de costumes do final dos anos 60, o que frutificou nas três películas que discutimos.

Tinto Brass é um daqueles filmmakers malditos das sessões da meia-noite, e que são hoje cultuados pelos cinéfilos que desenvolvem faro especial para as sub-produções mais obscuras que infestam os porões da sétima arte. A sua trilogia psicodélica (infelizmente, inédita no Brasil) irmana-se com: A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George A. Romero; O Ritual dos Sádicos (ou “O Despertar da Besta” – 1970) do nosso José Mojica Marins; El Topo (1970) de Alejandro Jodorowsky; Pink Flamingos (1972) de John Waters; Messiah of Evil (1973) de Willard Huyck e Gloria Katz; dentre muitos outros exemplos. São todos filmes que passarão bem longe das listas de “melhores” desta ou daquela época. E, de fato, não possuem a qualidade e o equilíbrio “superiores” de um cinema dito “de arte”. Mesmo assim, refestelando-se alegremente em sub-gêneros e nas condições precárias de sua própria produção e circulação, alcançam uma expressividade às vezes maior do que alguns diretores e obras preguiçosamente acomodados no cânone.

André Renato* é professor no Ensino Médio (língua portuguesa, literatura e redação), fotógrafo e cinegrafista. Colabora com a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog Sombras Elétricas (www.sombras-eletricas.blogspot.com), nos quais escreve sobre cinema.

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