Ivan Cardoso e Torquato Nosferatu: O Super 8 Terrir na Marginália 70

Flávio Rogério Rocha*

A bitola Super 8 surgiu em meados da metade da década de 1960, primeiramente nos Estados Unidos da América. Sendo ele definido em termos técnicos como uma versão nova do antigo formato 8 milímetros, aumentado 50% na área de imagem, tendo um espaço menor para a perfuração.¹

Após seu surgimento, o Super 8 se generalizou por todo o mundo, sendo que, durante a década de 1970, alastrou-se pelo Brasil. Neste decênio, o uso da bitola, na área da produção cultural, ganha maior divulgação tornando-se um movimento expressivo, fato que é evidenciado pela realização de festivais dedicados, somente ou não, ao Super 8. Ele adquiriu uma amplitude considerável, em grande parte por suas características fundamentais, como: seu baixo custo de produção e sua maior liberdade de pesquisa e experimentalismo. Pois, por custar cinco vezes menos que um filme 16mm, e vinte vezes menos que um 35mm, e por ter os equipamentos ligados a sua produção (câmera, projetor, etc.) acessíveis às camadas médias da população, pode viabilizar a um número maior de pessoas a possibilidade de fazer filmes. O que gerava, também, um volume maior de produção. Desta forma:

A posse dos meios de produção é um fator determinante para a existência de um movimento em Super8. É também a posse dos meios de produção e o baixo custo da bitola que podem explicar o grau de liberdade e de autonomia na criação. Assim, a maior margem de experimentação cinematográfica é que nos permite falar numa ‘linguagem própria’ do super-8. (BOTTMAN, 1982, p. 32)

A produção de filmes na bitola cinematográfica Super 8 em nosso país, teve uma grande importância durante toda a década de 1970, estendendo-se até o início da década seguinte. Na verdade, podemos dizer que aconteceram diversos ciclos regionais superoitistas, nos moldes propalados por Paulo Emílio Salles Gomes, quando pensava nos primeiros surtos de produção no Brasil. Estes surtos superoitistas tinham uma grande gama de gêneros cinematográficos, desde os mais tradicionais até os mais experimentais. Muitos dos que começaram a fazer seus primeiros filmes utilizando-se dessa nova tecnologia, surgida naquele período, tornaram-se profissionais e construíram uma sólida carreira no audiovisual brasileiro.

Todavia, o que se destaca em relação a esse boom de produção é o viés experimental que muitas obras demonstraram durante este momento. Pouco mais de vinte anos depois deste ciclo cinematográfico superoitista ter acabado, muitos desses filmes foram reunidos em uma mostra denominada Marginália 70: O Experimentalismo no Super-8 Brasileiro (2001). Esta mostra foi realizada pelo Instituto Itaú Cultural/SP, e agrupou 122 obras de 78 realizadores de várias regiões do país. Este apanhado de filmes caracteriza-se, segundo Rubens Machado, seu curador: “[como] os trabalhos pautados de modo mais radical na pesquisa não só da linguagem, como também do processo específico de realização nesta bitola. (MACHADO, 2001. pg. 07)

Muitos dos filmes reunidos na Mostra demonstram, através de imagens, sons, performances e atitudes, uma forte influência tropicalista. Na verdade, as imagens produzidas por esse conjunto de realizadores mostram uma intensa preocupação com o aqui e o agora, com a mudança comportamental, com o corpo, o erotismo, a subversão de valores sociais. Tudo que, de certa forma, vem com grande força, na virada da década, através da atitude tropicalista.

Do montante geral de filmes da mostra Marginalia 70, queremos destacar quatro realizações que têm um peso enorme dentro do escopo geral dos filmes experimentais em Super 8 no Brasil. Tanto pela repercussão que tomaram quanto pelas pessoas que se reuniram em torno da própria produção dos filmes. Inclusive, aglutinamos essas produções através do que convencionamos chamar de filmes de terrir. Para nós, esses filmes são identificados como aqueles que utilizam elementos do terror clássico da cinematografia mundial, com algumas pitadas de erotismo misturadas a situações absurdas e cômicas, além da cafonice kitsch da década de 1970. É uma estética do grotesco, que assimila o ar de deboche lúdico advindo do Tropicalismo. Trata-se de uma carnavalização bastante autoral da cinematografia brasileira.

Os filmes são:

1. Nosferatu no Brasil (Ivan Cardoso, Rio de Janeiro, 1971, 26min50, cor-p&b, som)

2. Terror da Vermelha (Torquato Neto, Teresina, 1971/1972, 28min, cor, som)

3. Wampirou (Lygia Pape, Rio de Janeiro, 1974, 17min33, cor, som)

4. A Múmia Volta a Atacar (Ivan Cardoso, Rio de Janeiro, 1972, 3min07, cor, som)

Todavia, iremos analisar mais a fundo somente dois filmes: Nosferatu no Brasil e O Terror da Vermelha. Por serem, a nosso ver, mais emblemáticos. A verdade é que os três superoitistas realizadores dos filmes se conheciam, frequentavam-se e produziam, muitas vezes, juntos: Ivan Cardoso, Torquato Neto e Lygia Pape. Além, claro, de produzirem em conjunto com diversos outros realizadores que estão contemplados na mostra Marginália 70.

O termo filmes de terrir tem como principal mentor o próprio Ivan Cardoso, responsável por uma vasta produção de filmes Super 8 durante a década de 1970. O termo foi cunhado por Haroldo de Campos – um dos precursores do concretismo, movimento que teve grande influência na cultura artístico-literária do país durante as décadas de 1950, 60 e 70 – e refere-se justamente à produção de Ivan Cardoso (CAMPOS, 1997). Este realizador circulou por diversos meios e acabou se transformando em um cineasta com uma sólida e pujante carreira. Cardoso acabou adotando o termo terrir a contragosto. Ele mesmo explica isto, no livro Ivan Cardoso: O Mestre do Terrir, ao referir-se, mais especificamente, a um dos seus filmes mais importantes, Nosferatu no Brasil (1971), que foi estrelado por Torquato Neto:

Outro dado também que custei a aceitar é que as pessoas achavam graça dos filmes. Embora algumas cenas fossem aterrorizantes, a reação da plateia era mais para o riso que para o medo. Foi por isso que botei o nome na antologia de A Marca do Terrir. Não tinha feito de maneira nenhuma para ser engraçado (…). Nas cenas do Torquato na praia, o pessoal caía na gargalhada. (CARDOSO Apud. REIMER, 2008, p. 103).

Na década de 1970, Cardoso foi uma figura que, de alguma forma, aglutinou ou circulou por diversos grupos de superoitistas, principalmente, os realizadores ligados às artes plásticas, à música e à literatura. Além disso, ele também circulava com bastante desenvoltura entre os cineastas do Cinema Marginal. Trabalhou, entre outros, com Rogério Sganzerla.

A trajetória de Ivan Cardoso nos traz um panorama bastante revelador das relações entre as várias tendências superoitistas e os diversos grupos e personalidades que se interessavam e produziam esse tipo particular de cinema. Ele circulou entre o grupo das artes plásticas, os tropicalistas e os poetas concretistas. O próprio Ivan Cardoso relata o início de sua inserção no meio intelectual e artístico do Rio de Janeiro, na primeira metade da década de 1970:

Os trabalhos do Antônio Dias, do Rubens Gerchman e do Carlos Vergara chamaram a minha atenção porque eram a pop art carioca. Conheci o Gerchman e o Vergara em um projeto de arte na praça, onde comprei até uma serigrafia deles. Também tentei ser aluno do Vergara, mas não deu certo. Acabei levando os dois para uma palestra no São Fernando². A diretora gostou muito. Eles falaram no limite do que ainda podia ser falado e mandaram a gente procurar o Hélio Oiticica – o artista plástico que tinha inventado a Tropicália.

Telefonamos para o Hélio Oiticica e marcamos de visitá-lo em sua casa, no Jardim Botânico. Foi um dos dias mais emocionantes da minha vida. Nesse dia, além do Oiticica, a gente conheceu o Rogério Duarte, Torquato Neto e o Caetano Veloso. Foi um dia avassalador. Para a minha geração, o tropicalismo era o máximo. (CARDOSO Apud. REIMER org., 2008,p. 54).

Existe, portanto, todo um cenário já constituído onde, sorrateiramente, ele irá tomar posto, entrando pela porta da frente. Ivan Cardoso era mais jovem do que aqueles que, junto a ele, fizeram história na produção superoitista brasileira, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Mesmo assim, acabou se tornando alguém que construiu sua carreira na base da parceria e da colaboração com essas pessoas que, de alguma forma, admirava. Antônio Dias, Carlos Vergara e Hélio Oiticica, artistas plásticos que têm suas produções superoistitas incluídas na mostra, já referenciados anteriormente, foram muito importantes para a sua formação. Outro dado importantíssimo, explicitado no relato anterior, é a grande admiração que Cardoso nutria pelo Tropicalismo, estendendo seu préstimo a todos os seus contemporâneos, quando disse: “Para a minha geração, o Tropicalismo era o máximo” (IBID.).

É também bastante curiosa a forma como ele retrata o início da relação entre o seu grupo de amigos e o próprio Oiticica:

Passamos a freqüentar a casa do Oiticica, onde a gente podia ouvir os discos do Barreto³ e fumar baseado à vontade – finalmente tínhamos ingressado no universo artístico! O Hélio passou a nos chamar de The Kids e a nos tratar – eu, o Barreto e o Sidiny – como se a gente fosse um conjunto de rock. (IBID., p. 55)

Ou seja, para um garoto que vivia sua plena adolescência, estar ao lado daqueles que seriam tidos como suas referências culturais, de transgressão e produção artística, era o máximo. Além de conviver com eles, Ivan Cardoso começa também a produzir, utilizando toda a bagagem que vinha experimentando e acumulando em seus poucos anos de vida. Entre suas principais influências podemos citar o cinema underground norte americano, na figura de Andy Warhol, o cinema marginal brasileiro, principalmente José Mojica Marins e Rogério Sganzerla, a Nouvelle Vague francesa e o contexto das artes plásticas, além dos poetas concretos. Talvez por ter tantas influências consideráveis, ele acabou optando por não seguir uma formação acadêmica, apesar de, após terminar a escola secundarista, ter passado no vestibular para o curso de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). A esse respeito, o próprio Ivan Cardoso afirma:

Nunca quis frequentar nenhuma escola de arte. Era contra aprender cinema em escola. Achava que você aprendia na prática. Quando o Sganzerla me chamou para trabalhar no Sem Essa, Aranha, nem acreditei. Ele me convidou para ser assistente de direção. Isso, para mim, foi um salto de vara. De repente, saí do nada para ser assistente de direção do Rogério Sganzerla, o Rei da Boca do Lixo. (IBID., p. 64)

O caráter intuitivo e autodidata de Cardoso vem, também, ao encontro de toda a problemática envolvida na realização superoitista. Após ter adquirido uma câmera de um colega de escola, começa a realizar seus primeiros filmes. Este início é assim relatado por ele:

Era uma máquina muito simples de manusear e foi fundamental para o meu aprendizado. Com essa Yashica fiz minhas primeiras experiências e também filmei o Nosferatu no Brasil. Ao contrário dos outros usuários de Super 8, sempre procurei fazer planos curtos, aproveitando diferentes ângulos. Já filmava de uma maneira clássica. Acabei optando por uma linguagem próxima do cinema mudo e isso me permitiu um controle maior sobre os resultados. A grande contribuição do Super 8 foi ter democratizado o cinema e permitido ao pessoal jovem brincar de cineasta. (IBID., p. 68)

E é justamente essa forma específica da feitura de seus filmes que confere a Ivan Cardoso o grande destaque de suas produções em relação às de boa parte de seus contemporâneos. Há uma estética muito bem definida e de caráter bastante contestador em sua obra. Não somente em seus filmes Super 8, mas também em sua posterior produção de longas-metragens em 35mm. Algo que chama bastante a atenção em seu início de carreira é a forma colaborativa como seus filmes acabavam sendo rodados.

Aos poucos, fui formando um elenco de atores fixos e comecei a fazer a série de filmes que chamei de Quotidianas Kodaks – título que tomei emprestado das crônicas do poeta simbolista baiano Pedro Kilkerry, redescoberto pelo Augusto de Campos. Todo mundo queria trabalhar nos filmes, por isso acabei virando uma pessoa famosa entre a galera. Não só comecei a criar um estilo próprio, como também pude exercer a minha liderança. O Super 8, de certa maneira, virou uma extensão da minha vida. Eu levava a câmera para todos os lugares e explorava as possibilidades que surgiam: a turma, as meninas que iam à praia. (…) Eram participações voluntárias, não havia muito planejamento. (IBID., p. 71)

Ainda falando sobre seus colaboradores, Ivan Cardoso afirma que:

Foi graças a esse grupo de atores improvisados – que o Waly Salomão batizou de Ivamps – que pude me desenvolver como cineasta. A nossa estrutura deu certo demais. A gente armava as situações e filmava. (…). Na época, graças a Deus, talvez por ser cinema amador, não havia contestação nenhuma em relação a isso. Os Ivamps nunca ofereceram nenhuma resistência. Pelo contrário, eles faziam até muito mais do que eu pedia. Eu já tinha um olho clínico para encontrar não só mulheres muito bonitas e sensuais, mas tipos que funcionavam bem na tela. As meninas do Super 8 deixavam qualquer um de pau duro. Os homens também foram muito bem escolhidos. (…) Acho que passei no vestibular porque consegui tirar excelentes performances de pessoas que não eram atores. Tudo isso aconteceu muito rápido e ao mesmo tempo. Era a pior época da ditadura e, mesmo assim, a gente saía no jornal todo dia. Os filmes eram pouco vistos, mas muito falados. Rapidamente eu me tornei o enfant terrible do underground. (IBID., p. 84).

Sua parceria com Torquato Neto em Nosferatu no Brasil, que se transformou em um ícone da produção superoitista na época, resultou em um filme muito bem feito, explorando as condições e limitações advindas da própria bitola. Em seus relatos ao livro A Marca do Terrir, Ivan Cardoso diz não saber bem por que escolheu a figura de Nosferatu. Sabia somente que gostaria de ter uma figura de peso para ser seu protagonista. Torquato Neto havia recém chegado da Europa e já estava trabalhando no jornal Última Hora, escrevendo sua coluna Geléia Geral. Após o convite, de pronto Torquato aceitou a proposta e as filmagens começaram. Obviamente, como se tratava de uma produção sem aporte financeiro, feita na base da vontade de realizar, as cenas foram filmadas durante os finais de semana, somando cerca de dez dias, nos momentos em que o ator principal não estava trabalhando. Para Ivan Cardoso, “a atuação do Torquato no Nosferatu deu uma harmonia e uma dignidade muito grande ao filme”. (IBID., p. 95)

A primeira parte do filme, que se passa em Budapeste, durante o século XIX (vide figura 01), foi toda feita em preto e branco. Nela, Torquato e Daniel Más contracenam (vide figura 02). Tem um clima de cinema clássico e os planos lembram clichês retirados de filmes de vampiro (vide figuras 03 e 04). A segunda parte, feita com película colorida, se passa durante a década de 1970, na cidade do Rio de Janeiro.

Torquato vampiro ataca suas vítimas em diversas situações, durante suas deambulações pela cidade (vide figuras 05 e 06). São micronarrativas de agressão debochadas e kitsch.

Por questões financeiras, o filme foi todo feito à luz do dia. Isto aconteceu porque ficaria inviável alugar equipamentos de iluminação e também por causa da falta de conhecimento do próprio diretor. Esta foi, num primeiro momento, uma questão que, de certa forma, gerou um problema conceitual em relação ao personagem vampiro. Pois, segundo as narrativas tradicionais a respeito do personagem4, ele somente poderia sair na escuridão da noite. Isso acabou contribuindo enormemente para que fosse encontrada uma solução bastante criativa para o imbróglio. Como o próprio Ivan Cardoso explica:

O meu Nosferatu perambula pela cidade o filme inteiro de dia. Vai à praia, bebe água de coco [vide figuras 07 e 08]. Encontrei na poesia concreta do Affonso Ávila uma solução bastante inusitada. Ele tinha um poema que era assim: onde se vê isso, veja-se aquilo [vide figuras 09 e 10]. Fiz uma cartela para o Nosferatu com o seguinte aviso: onde se vê dia, veja-se noite. Isso virou uma grande piada no filme. Eu era fanático por poesia concreta e acabei fazendo um trocadilho visual fantástico. (IBID., p. 95)

Aí percebemos mais uma vez a grande influência que o concretismo tinha sobre ele, o que podemos estender a uma grande parcela de sua geração. Cardoso consegue transfigurar essa artimanha própria do concretismo, da forma da palavra escrita, para compor em seu filme a sensação da transgressão dos sentidos, algo muito recorrente na produção cinematográfica de vertente experimental superoitista naquele momento histórico.

A própria participação de Torquato Neto no filme de Ivan Cardoso reforça a questão da relação entre a escrita e o cinema no contexto ao qual nos referimos. Além de poeta, escritor, jornalista e letrista de muitas canções que fizeram parte do Tropicalismo, Torquato teve pelo cinema uma grande paixão.

Como referido anteriormente, tanto em sua coluna Plug, no jornal Correio da Manhã, quanto na Geléia Geral, no jornal Última Hora, Torquato realizou uma empreitada contra o Cinema Novo e a favor do Cinema Marginal. Da mesma forma, defendeu e deu visibilidade à produção superoitista nesses meios de comunicação. Para ele, o Super 8 era uma forma de conseguir a espontaneidade de um impulso livre para fazer cinema. A isso ele chamou de “coração selvagem”, o que significava uma atitude aberta à invenção e à descoberta dentro da linguagem cinematográfica. Segundo ele:

Bitola, bichos? Pode ser qualquer uma, desde que esteja sempre pelas pontas do “coração selvagem”. Superoito, dezesseis, trinta e cinco, cinema etc. Desde que seja com “coração selvagem e a todo vapor: tela livre. De todos os círculos. Filmes novos, invenção”. (…) Contra todas as dificuldades e todos os grilos e todas as espécies de diluição. Rigor. Em superoito, em cinemascope, nos cinemas: cinema. (DUARTE & SALOMÃO, 1982, p. 262)

Além de protagonista de Nosferatu no Brasil (1971), Torquato participou do filme Dirce e Helô (1971), de Luiz Otávio Pimentel – produção também incluída em Marginalia 70. Torquato Neto ainda dirigiu, em 1972, O Terror da Vermelha, em Super 8. Ele tinha também o projeto de realizar um filme chamado Crazy Pop Rock, em 16mm. Mas, devido a dificuldades financeiras, acabou não conseguindo levar a cabo o projeto. Ele explicita sua frustração em carta dirigida a Hélio Oiticia, datada de 10 de maio de 1972:

O que mais me aborrece agora é o filme que comecei a fazer há mais de um mês e tive de parar de repente por falta de dinheiro. Não sei se te falei nele antes. O título (mais ou menos provisório, não sei) é Crazy Pop Rock. É pra filmar em dezesseis com som direto, na marra. O elenco é uma transação bem legal porque tem uma estrela da nossa TV (Maria Cláudia) e mais Ana, Simão, Erico Freitas e umas outras figuras. Um filme bem simples, que, no entanto, não me sai por menos de seis milhões – dinheiro que ainda não consegui juntar até agora. (PIRES, 2004b, p. 281).

Em relação à única experiência de Torquato Neto como diretor, em O Terror da Vermelha, podemos considerá-la quase uma continuação de Nosferatu no Brasil, por conta da quantidade de elementos que unem as duas produções. É curioso observarmos que o filme foi realizado entre os anos de 1971 e 1972, pouco tempo antes de Torquato ter cometido suicídio. No entanto, só foi visto vinte e oito anos depois, com o advento da mostra Marginália 70. Sobre o filme, até aquele momento, havia somente dois textos, que estão publicados na segunda edição de Os Últimos dias de Paupéria, nas páginas 339 e 346 (DUARTE & SALOMÃO, 1984, p. 339 e 346). Neles, Torquato transcreve um tipo de roteiro que serviria de base para a montagem que Carlos Galvão fez em 1973, e que o autor nunca chegou a ver.

A montagem exibida na mostra Marginalia 70 foi feita por Ana Maria Duarte, que foi casada com o poeta. Todavia, além de poucas diferenças em relação à trilha sonora, o resultado visual acabou sendo bastante parecido entre as duas montagens (DEMÉTRIO, 2004). O Terror da Vermelha tem, por conta disso, um caráter de documento histórico muito forte, pois resgata um período recente da produção cultural no Brasil. E, nesse ponto, acaba diferindo do filme de Ivan Cardoso, pois não teve nenhuma repercussão na época.

O Terror foi realizado em uma viagem que Torquato fez a Teresina, por conta de sua tentativa de parar de beber, em uma clínica de desintoxicação. Segundo Pires:

Torquato passava os dias no escritório da clínica, escrevendo à máquina, e trocando ideias com os amigos. Nestas conversas, surgiu a ideia do filme, que faz uma mistura improvável de sintaxe godardiana, montagem de western, e estética de Zé do Caixão e a nostalgia felliniana de Os boas vidas. (PIRES, 2004b, p. 190).

O filme é uma sequência de micronarrativas que, assim como em Nosferatu no Brasil, mostram um anti-herói protagonista atacando vítimas indefesas. Desta forma, utilizando-se do deboche, consegue desfigurar qualquer tentativa moralizante dentro do enredo. Da mesma maneira, estabelece a agressão como um forte elemento dentro da narrativa cinematográfica. O filme estrutura-se entre o momento de identificação da vítima, a abordagem da mesma e o ataque mortal do protagonista serial-killer. A estória tem como pano de fundo o bairro da Vermelha, em Teresina, e deixa bem clara a forte influência do Cinema Marginal, tanto na escolha de um protagonista anti-herói, quanto na contraposição entre urbano e rural. Outra questão marcante explicitada pelo filme é a oposição tropicalista entre o local-doméstico (cultura popular) e o público-cosmopolita (cultural de massa). Isso também pode ser observado na alternância entre quintais (privado) e a rua, a cidade (público) (DEMÉTRIO, 2004).

Em O Terror da Vermelha, encontramos mais uma vez o artifício da palavra escrita como forte elemento narrativo. O mesmo acontece em Nosferatu, nos termos citados anteriormente. O recurso textual, que remete ao cinema mudo, retoma através do recurso audiovisual, mais uma vez, a influência concretista dessa geração tropicalista ou pós-tropicalista. Isso concorre para a formação de mensagens que se compõem através da soma de enquadramentos de letreiros, placas, pichações, outdoors encontrados ao sabor da paisagem urbana ou até mesmo imagens televisivas. Como no caso de uma das sequências iniciais do filme, na qual aparecem planos fixos de uma televisão ligada. Compõe-se, então, uma mensagem articulada na justaposição entre o nome de uma novela, “Na Idade do Lobo” (vide figura 11), e um comercial, no qual se lê “Você compra e não paga” (vide figura 12). Cria-se, assim, uma nova mensagem: “Na idade do lobo você compra e não paga”.

Para Silvio Ricardo Demétrio, em texto dedicado à análise deste filme:

O jogo de comutação e montagem de palavras tomadas a partir de sua materialidade enquanto significantes denota a forte influência da poética concretista transplantada para um contexto fílmico — o que reforça ainda mais esta influência, tendo-se em vista a abertura que a poesia concreta introduziu em relação a suportes alternativos e uso de tecnologias na construção de sua poética. Isto faz com que estas “palavras-cenário” cumpram uma função muito singular na estética de O Terror da Vermelha. Elas não são meros elementos secundários, mas parte de um discurso poético não narrativo, e porque não dizer, até mesmo de caráter construtivista, que corre em paralelo com o filme. Torquato Neto reúne com isto as condições para que a montagem prolifere como procedimento para além do discurso cinematográfico. O cinema é então vampirizado pelo poeta que extrai de suas possibilidades arteriais o fluido vital que vai nutrir o rigor formal de sua poética-moviola. (IBID.)

Ao utilizar este recurso não-narrativo, Torquato Neto cria uma composição que se transfigura em um curto-circuito em relação à forma e ao conteúdo, pois é a forma que se transforma no conteúdo da mensagem. O autor traça esses elementos, que fazem parte de seu pensamento cinematográfico, em um dos textos utilizados por Carlos Galvão para sua versão do filme.

plano geral

paisagens-planos-gerais,

distâncias. A cidade transformada

retornada transformada em

EM TRANSFORMAÇÃO. O jogo

(from navilouca) VIR/VER/OU/VIR

etc (AQUI/ALI), títulos subtítulos

versos pontuação; TEXTO-LEGENDA,

ora ocupando totalmente o

fotograma ora

precisamente ilustrando-o

“sur-place”, como

palavra-cenário (luiz otávio), e

também (galvão em OU),

palavracontradestaque, como

palavra contra destaque, como

destaque (waly) na dança da

herondina, nove cassetes filmados,

filme ectachrome kodak

(DUARTE & SALOMÃO, 1982, p. 240).

Uma outra questão colocada em O Terror demonstra a influência tropicalista na produção de Torquato. Trata-se da cena, logo nos primeiros minutos do filme, em que a empregada doméstica da casa de seus pais, aparece estendendo roupas e depois sua própria mãe aparece em um ambiente doméstico e completamente banal (vide figuras 13 e 14). Ao fundo, escuta-se Mamãe Coragem, música do próprio realizador, que reforça o espaço da vida privada. Este espaço estará em contraposição às ações e perseguições do filme que irão se desenrolar na rua, o espaço para os acontecimentos.

Em sequências seguintes, vemos que nosso serial-killer, vivido por Edmar Oliveira, que usa boina e cabelos compridos, constantemente está com a mão levada à boca (vide figuras 15 e 16), numa referência clara ao filme Acossado (1959), de Jean-Luc Godard. Ele está sempre à espreita de novas vítimas. Assim que as identifica – e isto fica explícito nos procedimentos fílmicos realizados por Torquato –, desenvolve-se a perseguição. Diversas são as vezes em que esta ação é desenvolvida, ficando Terror com uma série de assassinatos realizados que possuem um padrão parecido. Em inúmeros momentos, o filme volta-se para a utilização da palavra-cenário como forte elemento estético.

Todavia, o que deve ser ressaltado, e que pode ser encarado como um prenúncio do que iria acontecer na vida real, é a cena em que nosso protagonista anti-herói persegue e mata Torquato Neto. Com trilha sonora de Let’s Play That, uma parceria entre o autor e Jards Macalé, o filme chega ao seu ponto mais alto, com sua cena mais impactante. Na verdade, o próprio autor não escapa ao personagem que criou (vide figuras 17 e 18). Ele é atacado pelas costas com uma corda pelo Terror, enquanto lia a Geléia Geral no Jornal do Brasil, sentado em um banco de praça no bairro onde cresceu, em sua cidade natal. É interessante salientarmos que desde o início da concepção do filme o personagem de Terror era encarado pelo próprio Torquato como seu alter-ego, o que acaba corroborando para associarmos esta cena ao suicídio do próprio autor.

O restante do filme desenrola-se da mesma forma, entre as micronarrativas de agressão e as palavras-cenário. Talvez a sequência que mais destoe do filme e cause estranheza, seja a cena em que Herundina, sobrinha de Torquato, que recentemente havia chegado dos Estados Unidos, dança no quintal de uma casa (vide figuras 19 e 20). Na versão de Ana Maria Duarte, a música escolhida como trilha sonora é La Bamba, o que acaba conferindo um tom engraçado, junto com as palavras-cenário aqui e ali (vide figuras 21 e 22). Mais uma menção à oposição entre interior e exterior, doméstico e cidade.

Desta forma, para Demétrio:

O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio por Torquato Neto dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal. (DEMÉTRIO, 2004).

Na verdade, o filme é um discurso cinematográfico que expõe um exercício formal feito por Torquato Neto, no sentido de desenvolver uma poética rigorosa que acaba desembocando em uma potência estética muito forte. É mais um indício do avassalador poder de síntese da obra do autor, que, ao aventurar-se pelo cinema, através do Super 8, consegue deixar sua marca inegável nesta seara da produção cultural brasileira.

¹ O formato 8 milímetros tinha uma perfuração por fotograma do lado esquerdo da película, situada entre os quadros da imagem. O super – 8 também tinha uma perfuração por fotograma, só que no meio do quadro e do lado direito da imagem. Esta perfuração, a qual nos referimos, é a que faz com que a película corra dentro do projetor. Ver: SUPEROITO : mais forte e mais vivo. Panorama. Curitiba – PR. nº225, p. 21-23, abr. 1975.

² Colégio onde Ivan Cardoso concluiu o ensino médio.

³ O cineasta Bruno Barreto é filho de Luiz Carlos Barreto, figura importante e controversa da cinematografia nacional.

4 Ivan Cardoso tinha como sua principal referência o filme Nosferatu, de Friedrich Wilhelm Murnau, feito em 1922 e ligado à escola cinematográfica de vanguarda chamada de Expressionismo Alemão

* Flávio Rogério Rocha é formado em História pela Universidade Federal do Paraná (2000), iniciou suas pesquisas em torno da linguagem cinematográfica de Super 8 em sua graduação. Fez especialização em Comunicação e Semiótica na PUC/PR, e atualmente está cursando o mestrado em Comunicação e Linguagem na Universidade Tuiuti do Paraná. Como realizador tem se dedicado a produções de documentários e produções fotográficas. Já atuou no canal de televisão educativa TV Paulo Freire (Secretaria de Estado da Educação do Paraná) como editor de vídeo e atualmente desenvolve o projeto de Residência Artística promovido pela FUNARTE com o tema

ETNOFOTOCAIÇARA.

Referências Bibliográficas:

BOTTMAN, Denise. Super-8 Paranaense: Elementos para uma História. História: Questões e Debates – Revista da Associação Paranaense de História – APAH, Curitiba, ano 3, n. 4, p. 27-53 , jun. 1982.

CAMPOS, Haroldo de. Glauberélio / Heliglauber. In: CARDOSO, I. Heliglauber. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura / Riofilme,1997.

DEMÉTRIO, Silvio Ricardo. O Terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema. São Paulo: USP, 2004. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/demetrio-silvio-terror-vermelha.html>. Acesso em: 23 jul. 2010.

DUARTE, Ana Maria Silva. SALOMÃO, Waly (org.). Últimos Dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.

MACHADO, Rubens. Marginália 70: O Experimentalismo no Super 8 Brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001.

PIRES, Paulo Roberto (org.). Torquatália – do Lado de Dentro: Obra Reunida de Torquato Neto (vol. 1). Rio de Janeiro: Rocco, 2004a.

_______. Torquatália – Geléia Geral: Obra Reunida de Torquato Neto (vol. 2). Organização de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004b.

SUPEROITO : mais forte e mais vivo. Panorama. Curitiba – PR. nº225, p. 21-23, abr. 1975.

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