A Mãe e a Puta (Jean Eustache, 1973)

Por Gabriel Dominato*

Jean Eustache, um dos grandes mestres da Nouvelle Vague francesa e possivelmente o mais desconhecido dentre todos, realizou provavelmente a grande obra – ouso dizer uma das melhores, senão a melhor de toda Nouvelle Vague – de sua carreira em 1973, intitulada A Mãe e a Puta, que dialoga sobre os orfãos do maio de 68 e o lugar da mulher na sociedade parisiense em meados dos anos 1970.

De forma exemplar – a meu ver a mais bela execução de todas, superando mestres como Godard e Truffaut – Eustache narra a história de Alexandre, jovem intelectual, que trafega pelos cafés de Paris com um óculos escuro e um terno com lenço no pescoço. Eustache cria aqui a personagem de Alexandre, que poderia ser, talvez, a mais charmosa dentre todas daquele Cinema. Ao lado de um amigo excêntrico, mas na maior parte só, ou atrás de sua ex-namorada ou da atual, Veronika, uma enfermeira que cede aos encantos das histórias curiosas contadas de forma eloquente por Alexandre, mas que irá se revelar uma das personagens mais fortes do filme. Em monólogo derradeiro no final da película será esta personagem que irá apontar um dos fundamentos do filme que é a indagação sobre a sexualidade feminina, sendo este que dá embasamento ao título do filme, onde parece haver uma dicotomia muito obscura no tocante a mulher não poder buscar o prazer, ter que ser mãe e não poder buscar o prazer, tal qual os homens; como dirá Veronika “Porque uma mulher não pode dizer que gosta de foder?”.

O filme é de uma consistência invejável, poucos realizadores de antes ou de agora conseguiram tal solidez e solicitude para uma narrativa como Eustache faz, e embora seu anonimato seja grande ele é proporcional ao seu talento.

O filme tem um ritmo exemplar, em suas 3h30m o espectador – se aceitar o convite que Jean Eustache lhes propõe – perceberá que essas horas passam voando. O tempo é frenético, mas não o que se diria ser frenético se comparado ao tempo do cinema de Hollywood, mas sim ao que poderíamos comparar com o tempo de um Nicholas Ray ou mesmo Godard em seu Acossado, porém aqui notamos uma ligeira, porém maravilhosa, displicência quanto ao tempo: Eustache não se importa com o tamanho das cenas, algumas são curtas, outras muito se delongam, mas é o seu papel dentro da película que fará com que, afinal, sua duração não importe muito. Se pegarmos um filme como Amantes Constantes do contemporâneo de Eustache, Philip Garrel, notamos a diferença entre o frenetismo de Garrel e o que me refiro ao de Eustache. O primeiro tem esse tempo envolto por um frenesi que se desenvolve durante uma cena muito longa, enquanto o segundo assume tal tempo ao fazer a decupagem. A mise-en-scène de Garrel é o que dá o tom da loucura que foi o maio de 68 e toda a revolução, mas é na decupagem, e toda a verborragia de diálogos dos mais maravilhosos da história do Cinema, que Eustache mostra sua genialidade, porque ao contrário de Garrel, ele só precisa dos corpos e da voz para criar seu tempo, seu ritmo, enquanto aquele precisa do frenesi da ação para demonstrar o que foi a revolução. Eustache está mais interessado em mostrar o que houve depois, Garrel no que houve durante, então de certa forma poderíamos dizer que são filmes complementares, e que na segunda parte de Amantes Constantes eles até mesmo entram em convergência.

A Mãe e a Puta é um filme no qual as personagens nunca se encontram paradas. Trafegando de café em café, de diálogo a diálogo, como que em episódios separados, sem uma noção muito grande da passagem do tempo, não sabemos dizer se são dias ou meses em que se decorrem os eventos ali narrados, mas isso também não importa à narrativa, porque quando uma cena está ocorrendo é somente ela que importa, e Eustache consegue conter o todo dentro de cada cena.

A forma como o diretor trata os relacionamentos merece destaque, embora relacionamentos assim fossem retratados de maneira semelhante pelo cinema da época, Jean Eustache cria personagens de uma gigantesca complexidade. Talvez as duas personagens femininas mais interessantes da história do cinema – em minha opinião – são Marie e Veronika. Elas trazem emaranhadas em si todos os sentimentos conflitantes e contraditórios que as levam à beira da realidade. Se a personagem de Alexandre parece um ser completamente fantasioso, com toda sua intelectualidade e eloquência, as personagens das mulheres são as mais tangíveis e críveis, sendo possível ao espectador reconhecer uma, ou várias, mulheres dentro delas. E creio que as duas são capazes de contemplar um universo feminino dos mais vastos, refutando a teoria de que a mulher, ao assumir um papel na sociedade, não pode possuir outro, ou será mãe, ou será puta, e, por seus gestos ou palavras, estas duas personagens demonstram, de forma sublime, que esta dualidade existe dentro da mulher tal qual existe no homem, e por si só isto valeria todo o filme. Este filme, porém, é mais, é um marco no cinema, de uma dramaturgia quase perfeita, em que tudo o que está na tela serve para seu proveito, devido à inteligentíssima mise-en-scène, cada pequeno detalhe é aproveitado para se construir a cena de forma invejável.

Além disso, há o retrato da França pós-maio de 68: uma pintura um tanto desesperançosa, em que os jovens intelectuais e militantes politizados se encontram órfãos de uma causa, e apenas vagam, pois não se vê movimento no sentido politíco dentro do filme. Isso, porém, não é um demérito a Eustache, é sua forma de mostrar a situação. Se compararmos com filmes feitos na França anos antes o tema do maio de 68 estava em vigor, era relevante. Eustache, porém, prefere ir contra essa onda politíca – a qual Godard abraçou tão fortemente – e tomar outra direção. Ambos acertaram, mas cada um em sua área.

Claro, opinião é subjetividade, mas na minha esta obra-prima figura entre as mais importantes do cinema. Existem muitos fatores que a tornam atemporal, sendo a discussão da mulher e seu lugar na sociedade, a meu ver, o que se mantém mais atual, mas apenas pela sua técnica, pela brilhante atuação de Jean-Pierre Léaud ou a direção magistral de Jean Eustache já seriam suficiente para tornar esta obra antológica. Além disso, ela ainda está envolta em toda uma bruma de mistério. Embora seja extremamente famosa entre os cinéfilos, em geral essa obra, ao contrário do que ocorre com a Nouvelle Vague, é muito pouco vista, seja por sua duração, seja pelo acesso a uma cópia. Todos falam de Acossado ou Os Incompreendidos em uma conversa sobre cinema francês, mas dificilmente alguém irá comentar sobre A Mãe e a Puta, pois, por algum motivo, Jean Eustache foi relegado a um secundarismo na história desse novo cinema. Pode ser que ele tenha chegado quando o sopro final da Nouvelle Vague já tinha sido dado. Seja como for, quem perde são os espectadores, pois é claro, Godard é ótimo, Truffaut é ótimo, mas Jean Eustache é sublime.

*Gabriel Dominato é graduando em Direito no Centro Universitário de Maringá e é redator do blog Avant, Cinema!

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