O Deus da Carnificina (Roman Polanski, 2012)

Por Gabriel Ribeiro Alfredo*

A sinopse do novo filme de Roman Polanski é simples. Um garoto comete um ato de violência contra seu colega após uma briga. Para tentar resolver a situação de forma educada e civilizada, os pais das duas crianças se encontram de maneira informal para uma conversa. Porém seus defeitos, vícios e falhas de caráter acabam por derrubar as máscaras de bons cidadãos “burgueses” e transformam o encontro em um caos.

A história inteira se passa dentro do apartamento dos pais da criança agredida, com exceção apenas da primeira e última cena. A primeira, em que se passam os créditos iniciais, mostra o momento da briga dos garotos em um parque de Nova York. O interessante desta cena inicial é que ela se desenrola inteiramente em um plano geral, distante dos garotos, seguida por uma trilha sonora leve com uma orquestração que lembra as comédias de Woody Allen na sua cidade natal. Ironicamente, a música composta pelo ganhador do BAFTA, Alexander Desplat, se contrasta com a ação de violência que se desenrola.

A estrutura narrativa se desenvolverá a partir dos diálogos e das ações pontuais dos quatro atores, que são peça chave, fechados em um apartamento. Isso pode parecer inusitado a uma pessoa acostumada apenas com a linguagem cinematográfica, já que essa fórmula narrativa vem do teatro. O filme foi inspirado na peça de teatro O Deus da Carnificina da autora Yasmina Reza de 2009. Convém apontar que Yasmina assina o roteiro juntamente com Polanski e, provavelmente, quis diferenciar as obras em seus formatos já que no título americano o filme leva apenas o nome de Carnage. Mesmo para o teatro, esse tipo de história (“comédia” crítica da burguesia através de uma situação limite em um lugar restrito) pode soar ultrapassada, por ser uma forma narrativa que teve grande desenvolvimento com dramaturgos marxistas nos anos 60. Digo ultrapassada não por sua possível função como expressão artística, mas pelo fato de grandes obras já terem contemplado muitas das coisas discutidas no filme, como por exemplo a icônica “Entre quatro paredes” de Jean Paul Sartre com a famosa passagem “O Inferno são os outros”, tornando o que é passado nessa peça, e agora no filme, em um “mais do mesmo”.

Apesar disso o filme não deixa de ser irônico e emocionante. Por mais que ele não se compare ao peso de obras antigas do diretor, como o ilustre Chinatown (1974), vemos que a experiência e sua influência como cineasta contaram muito ao conseguir reunir quatro atores excepcionais e tirar de tudo deles, principalmente das personagens femininas Penelope Longstreet e Nancy Cowan, interpretadas por Jodie Foster e por Kate Winslet, respectivamente. Juntamente temos os respectivos maridos, Michael interpretado por John C. Reilly, que se destacou recentemente com o ótimo Precisamos falar sobre Kevin (2011) e o excelente Christoph Waltz como Alan. A empatia por eles é tamanha que não é de se surpreender quando nos emocionamos, rimos, revoltamos e até ficamos chocados com os personagens. A participação destes quatro atores é tão boa que talvez só por isso o filme já tenha se tornado válido. Jodie Foster se entrega ao papel da mulher histérica, cheia de moral e que, apesar da pose apaziguadora do começo do filme, não demora a mostrar que acha seu filho o maior prejudicado, já que teve um grave machucado da agressão, julgando desde o principio os pais do outro garoto. Reilly faz o marido de Penelope (Jodie) e, mesmo quando os conflitos começam, ele passa grande parte do filme tentando harmonizar o ambiente, entrando para a briga somente quando começa a ser ridicularizado e insultado pelo outro casal e pela própria mulher. Kate Winslet faz muito bem o papel da mulher moderna e de “classe”, mas se descontrola após ter a dignidade de seu filho contestada e cair do salto alto em uma das cenas mais bizarras do filme. O grande destaque, porém, vai para Christoph Waltz no papel do executivo mesquinho e aniquilador, que menospreza todos na sala e que só começa a perder o controle da situação quando sua mulher resolve interferir em seus negócios jogando seu celular em um jarro de flores com água. Nesta cena, a revolta de Waltz nos faz lembrar com alegria de seu personagem Hans Landa em Bastardos Inglórios (2010) de Tarantino.

Tirando os atores, o grande mérito deve ir para Polanski, que soube muito bem ir aumentando o nível dos conflitos que, como havia dito, passam por temas muito debatidos. Problemas ideológicos sobre ética, conflitos sócio-econômicos e de gênero, chegando finalmente ao niilismo. O que divide esses conflitos é uma linha tênue que se desenha separando os personagens um do outro. O interessante é que em muitos momentos os personagens Nancy e Alan tentam sair do conflito indo embora do apartamento, porém as circunstancias acabam sempre por fazê-los ficar, como se estivessem presos àquilo.  O ponto fraco fica para o desfecho onde, em um movimento inverso ao começo do filme, vemos um pequeno roedor em um plano próximo no qual a câmera vai se afastando e abrindo para um plano geral que mostra as crianças que causaram a briga, agora brincando como amigos novamente. Uma forma meio fraca de dizer que, no fim, toda aquela discussão não significava nada.

Há quem diga que este filme na verdade tem outros propósitos. Não é a toa que a adaptação da peça se passe em Nova York, um lugar onde claramente Polanski não pode por os pés desde que foi condenado em Los Angeles pelo suposto crime de violação de uma garota de 13 anos. É como se o diretor quisesse zombar daqueles que o julgam até hoje, criticando os falsos moralismos antiquados da sociedade norte-americana. Não que seja correto o que ele possa ter feito mas, no contexto em que aquilo se passou e com um julgamento 40 anos de atraso, Polanski acaba ganhando munição para suas criticas que não devem ter passado desapercebidas pelo público americano.

*Gabriel Ribeiro Alfredo é Graduando em Imagem e Som e ex editor geral da Revista Universitária do Audiovisual

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Este post tem 2 comentários

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    Cacá Smith

    Tentei entender o que Polanski quis ao realizar esse filme. Como fã dos trabalhos dele admito que me decepcionei bastante. 
    Deus da Carnificina é cansativo e tão repetitivo que chegou a me despertar ânsia pelo berro. Chega um momento do filme que nada mais importa, que qualquer desfecho serve e não se está nem na metade do filme. Daí tem umas cenas de gracinha para você rir e não dormir ou não sentir raiva, uns trocadilhos bobinhos.

     Enfim, como você mesmo descreveu, pode ter sido uma critica aos americanos, porque eu, bem eu não achei nada.

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    Adorei o filme. Polanski consegue realmente extrair do quarteto de atores o máximo de suas performances. A sátira é muito bem conduzida. Acredito que não se pode experienciar uma obra artística, seja ela qual for, já começando com um pé atrás e não se colocando como um expectador inocente, que vê todo o desenrolar do enredo como se fosse a primeira vez; o típico “estranhamento” sartriano.

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