Jogos Vorazes (Gary Ross, 2012)

Por João Paulo Capelloti*

Sucesso de bilheteria nos Estados Unidos e também com boa renda no Brasil, Jogos vorazes surpreende positivamente como filme de entretenimento que, embora contenha material para reflexão, não eclipse com isso a história que conta nas telas.

Ainda que não seja exatamente original – têm sido lembradas como influências evidentes 1984, de George Orwell, até o hiperviolento filme japonês Battle Royale (Kinji Fukasaku, 2000), – a premissa criada pela escritora Suzanne Collins e levada às telas pelo diretor Gary Ross encontra aqui uma embalagem com potencial para difundir a um público bastante mais amplo temas como o totalitarismo, a espetacularização da violência e os perigos da cultura da vigilância.

Num futuro distópico, como em 1984, a heroína Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) vive no pobre Distrito 12 ao lado da irmã frágil e da mãe viúva e apática, sendo logo claramente estabelecida como o arrimo da família. Quando sua irmã é sorteada para participar dos jogos gladiatórios, realizados anualmente pelo governo e de caráter obrigatório, Katniss se oferece como voluntária no lugar dela. Representando o sexo masculino do distrito, é sorteado o filho do padeiro, Peeta Mellark (Josh Hutcherson), com quem Katniss tem uma relação dúbia de gratidão e desprezo por um difícil momento do passado.

Enviados para a capital, onde passam por um pequeno período de treinamento e ficam a par dos bastidores da competição, que envolvem a busca por patrocinadores e a formação de um rótulo para a opinião pública, os vinte e quatro participantes são enfim jogados numa selva, cheia de câmeras e manipulável pelo diretor do evento (Wes Bentley), do mesmo modo que o personagem de Ed Harris fazia em O show de Truman (The Truman Show, Peter Weir, 1998). A diferença é que, aqui, os jovens têm que matar uns aos outros, de modo que só reste um no final.

Os jogos, transmitidos ao vivo para todo o país, são uma forma de manter o controle da população, por mais de um aspecto. A participação de cada jovem está associada à comida que recebem do Estado – daí serem, numa tradução literal, “os jogos da fome”, motivo pelo qual Gale (Liam Hemsworth) inscreveu-se 42 vezes para os jogos daquele ano, como forma de obter mais provisões à sua família. O torneio também serve como lembrança do poderio da capital sobre os demais distritos, desde que uma rebelião foi sufocada anos atrás, e constitui eficiente distração (panem et circensis) para o povo que, entretido com o espetáculo, passa longe de questionar o governo despótico do Presidente Snow (Donald Sutherland).

A par de todas as metáforas, mais ou menos explícitas, com a Roma Antiga e com o Big Brother de Orwell, entre outros, um subtexto praticamente inexplorado nos comentários ao filme é o discurso feminista que Jogos vorazes engendra, em conjunto com outros elementos da cinematografia recente.

Katniss, em primeiro lugar, é interpretada por Jennifer Lawrence, de quem eventualmente o espectador já tem recordações de ser uma garota de personalidade forte – característica da Ree de Inverno da alma (Winter’s bone, Debra Granik, 2010) e da Mística de X-Men: Primeira classe (X-Men: First class, Matthew Vaughn, 2011). Ao dizer assombrosas verdades na cara de sua mãe, caçar na floresta e lutar contra oponentes mais fortes e preparados, ela mostra-se uma protagonista de fibra, bastante diferente de uma donzela em perigo.

Salvando Peeta da morte certa, e não o contrário, como normalmente se esperaria, Katniss representa a inversão de papéis que as relações de gênero conheceram de alguns anos para cá, não somente no cinema, mas ultimamente bastante demonstrado por ele. Em A Toda Prova (Haywire, Steven Soderbergh, 2012), a agente secreta Mallory, interpretada pela lutadora de muay-thai Gina Carano, passa boa parte do filme batendo em galãs de filmes de ação como Michael Fassbender e Channing Tatum. Em Millennium: Os homens que não amavam as mulheres (The girl wiht the dragon tatto, David Fincher, 2011), é Lisbeth Salander (Rooney Mara) quem salva a vida de Mikael Blomkvist (Daniel Craig).

Mallory, Lisbeth e Katniss, com alguma abstração, são a síntese das heroínas do cinema dessa primeira década do século XXI: espertas, determinadas, desbocadas, independentes, longe da fragilização e da passividade, são protagonistas não de histórias de amor – que não existem ou são coadjuvantes – mas de contos de opressão violenta e reação igualmente violenta contra um mundo machista.

Porém, enquanto a cruzada de Lisbeth nesse sentido, embora cheia de nuances, é muito mais explícita (a começar pelo título da história, passando por seus motivos de fundo e pelas agruras da própria Lisbeth nas mãos de seu tutor), o subtexto feminista de Katniss é mais sutil, e revela-se principalmente em seu confronto com Cato (Alexander Ludwig) e em sua relação com Peeta.

Cato, que se preparou a vida inteira para os jogos, percebendo-a como favorita do público desde que se mostrou carismática em sua entrevista com o bizarro apresentador Caesar Flickermann (Stanley Tucci), não mede esforços algo misóginos para exterminar a concorrente de um mercado que imaginava ser só seu.

Todavia, apesar de sua superioridade técnica e estratégica, Katniss só se sai realmente vencedora porque percebe que o público ainda tolera mal uma heroína solitária, e embarca no romance declarado publicamente por Peeta antes do início da competição. Já ciente do carisma, da força e do favoritismo de Katniss, ele acaba sedimentando-a como objeto de desejo – condição à qual já havia sido alçada, representada pelo vestido, obviamente vermelho, escolhido pelo figurinista Cinna (Lenny Krawitz). O romance, incentivado a concretizar-se pelo coach Haymitch (Woody Harrelson), bem sinaliza que, embora lute contra o sistema, Katniss pode apenas driblar suas regras, mas não rasgá-las. O que inclui, de certo modo, encontrar um belo e monogâmico par, caminhando, nos sonhos do público, para mais uma família de famosos.

Tal como se vê nos reality shows da TV, casais ganham tempo extra de vida no programa e, no caso específico dos jogos, tal vantagem deve ser interpretada de modo literal. Felizmente, o roteiro e a interpretação dos atores preserva uma interessante ambiguidade em definir se Katniss e Peeta realmente se gostam ou simplesmente perceberam as reais vantagens de um beijo na frente das câmeras.

*João Paulo Capelotti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e mestre em Direito das Relações Sociais na UFPR.

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Este post tem 3 comentários

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    Renan Lima

    Bom o texto. Acho complicado o modo como o filme foi vendido. Era sim um filme (e um livro) que poderiam suscitar uma discussão muito importante e muito eminente sobre os realitys e as mídias em geral. Sobre até onde vamos pagar, para ver o que vemos e o que queremos ver.

    Independente de ser ou não o mesmo público de “Crepúsculos” e “Harry Potters”, acredito que o papo seja um pouco mais sério.

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    Renan Lima

    Bom o texto. Acho complicado o modo como o filme foi vendido. Era sim um filme (e um livro) que poderiam suscitar uma discussão muito importante e muito eminente sobre os realitys e as mídias em geral. Sobre até onde vamos pagar, para ver o que vemos e o que queremos ver.

    Independente de ser ou não o mesmo público de “Crepúsculos” e “Harry Potters”, acredito que o papo seja um pouco mais sério.

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    Renan Lima

    Bom o texto. Acho complicado o modo como o filme foi vendido. Era sim um filme (e um livro) que poderiam suscitar uma discussão muito importante e muito eminente sobre os realitys e as mídias em geral. Sobre até onde vamos pagar, para ver o que vemos e o que queremos ver.

    Independente de ser ou não o mesmo público de “Crepúsculos” e “Harry Potters”, acredito que o papo seja um pouco mais sério.

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