Terça-feira, 29/10/1968
“O assassino tem as horas contadas” não apresenta em seu título uma indicação direta de que se trata de um filme (mais um) de agente secreto. Os nomes e os números que lembram códigos secretos já não mais servem para uma atração efetiva do público. Volta-se, portanto, para os velhos títulos de fitas policiais e de suspense. A própria definição do gênero é o bastante para que se possa delinear tudo o que o filme vai ser desde o seu início. Neste caso temos um exemplar que não foge à receita. Tem tudo o que já está padronizado no que se refere à estrutura básica. Em meio a essa estrutura, insere elementos novos ou retoma de forma diferente, velhos elementos. Eis aí a fórmula que garante a aceitação. Falar do já conhecido seria perder tempo, portanto não cabe aqui citar e comentar muito do que acontece na tela. Nem tampouco falar sobre o colorido e a paisagem turca, sobre a violência ou sobre as habilidades do super-herói. Vamos salientar um aspecto de ordem geral que surge em todas as aventuras dos super-heróis deste século e que nesta fita, como em nenhuma outra, ganhou uma expressão muito concreta e direta (o que justifica uma ida ao cinema para assisti-la, principalmente para os mais interessados nos mecanismos básicos da cultura de massa). Trata-se da nova formulação que a cultura de massa no ocidente deu às mitologias e às narrativas heróicas das antigas civilizações. Nestas, a figura do herói, do eleito entre os melhores, surge como personificação dos grandes dramas da civilização e sua presença está ligada essencialmente a uma prática e a uma crença de caráter religioso. Seu grande papel na comunidade é o sacrifício, a purificação. Desta forma sua trajetória é sempre trágica e sua heróica aventura o sacrifica em nome da comunidade perante os deuses. Neste contexto a grande linha de força é a tragédia num plano mitológico e o sacrifício no plano da prática religiosa concreta. Hoje o mecanismo de heroização inverteu a direção do vetor: simplesmente não há lugar para a tragédia. O herói continua mitológico, super-homem, eleito entre os bons, porta-voz e defensor das tradições, mas seu destino é a felicidade, o amor e o sucesso, nunca o sacrifício. Este fica reservado para aqueles que o cercam (é impressionante como morrem assessores e as mulheres neste filmes). As necessidades que presidem a elaboração de um mecanismo de projeção e de identificação do “público” com o herói mudaram muito de lá para cá (lá esta elaboração não era consciente). A ideologia da felicidade, do conforto e do bem-estar, veiculada pelo cinema não comporta sacrifícios nem tragédias; é preciso que o herói represente e consuma a felicidade concentrada no presente, eternizada no supremo momento do “beijo na boca”. É a forma de ser consumido e estimular o consumo como forma de vida. Pois bem em “O assassino tem as horas contadas” temos a retomada de um ritual hitita que representava para esta civilização o sacrifício dos melhores, o exorcismo. Toda a terça parte do final do filme é uma enorme seqüência, onde o super-herói participa de uma aventura que tem a estrutura e a finalidade deste sacrifício. Só não tem a conclusão trágica e o sacrifício se transforma em triunfo, a morte é substituída pelo amor e o herói é salvo pela nova mitologia redentora.
Ismail Xavier
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