Samuel Douglas Farias Costa*
Primeiro filme de ficção dirigido pelo cazaque Sergei Dvortsevoy, Tulpan (2008) é um show de delicadeza, sensibilidade e cinema. O diretor beira a fronteira do documentário, trabalha com atores não profissionais e deleita o espectador com uma fotografia desértica dos estepes do Cazaquistão. Tal genialidade contribui para a expansão das fronteiras do cinema e resultou no aclamado prêmio francês Un Certain Regard no Festival de Cannes de 2008. Seguindo o raciocínio do próprio diretor, os destaques do filme ficam por conta do sonho de Asa, o personagem principal, e a paisagem[1]. A história se passa ao redor do personagem Asa (Askhat Kuchencherekov) que ao voltar do serviço militar passa a viver com a irmã e a família dela. Asa quer se tornar um pastor de ovelhas, assim como o cunhado Ondas (Ondas Besikbasov), no entanto, este diz que apenas lhe dará um rebanho se ele se casar. A única garota disponível na região é Tulpan, e eles vão ao encontro dela. Ondas ajuda fazer a negociação do casamento com os pais da garota, mas surge um problema: Tulpan rejeita Asa porque ele tem orelhas grandes.
Essa é a linha fictícia que nos guia por um filme banhado em peculiaridades antropológicas. Etnograficamente belo, a obra nos leva ao encontro do modo de ser daquelas pessoas. Enquanto Boni (Tolepbergen Baisakalov), melhor amigo de Asa, é um entusiasta da cidade grande e sonha com os Estados Unidos, o sonho de Asa é outro. Na marinha é de costume que os marinheiros registrem seu sonho na parte de trás da gola da farda. Asa desenhou um rancho nos estepes com camelos e um céu estrelado. Mas antes de falarmos mais de seu sonho, nos foquemos em outro elemento importante: a paisagem.
Destacada pelo próprio diretor, a paisagem em Tulpan nos apresenta tanto a cultura quanto a natureza. A força vem de ambos os lados criando uma fusão, apresentando o ser humano como ser natural e cultural, modificamos a natureza e ao mesmo tempo ela nos impõem limites. Isso está bem colocado, por exemplo, na relação entre as ovelhas e o pastor. As primeiras não conseguem dar a luz, seus filhotes nascem mortos por causa da falta de pasto verde para se alimentarem. Vemos a força da natureza representada nesses animais, que correm uns por cima dos outros como uma manada desenfreada. Por outro lado vemos a cultura humana que controla as ovelhas, as marca, guia e ajuda nos partos. Em uma das cenas mais lindas do filme, vemos Asa fazendo o parto de um desses animais. Uma sequência real e sem cortes. Vida, natureza e cultura banham os sentidos de quem assiste.
As próprias condições para produzir o filme mostram essa estreita relação entre a cultura e a natureza. O filme levou cerca de quatro anos para ser realizado, dentre outros motivos, pela questão do manuseio dos animais e da espera pelo tempo da natureza, como, por exemplo, a gestação das ovelhas e as condições climáticas no deserto. Ficamos estonteados com a filmagem de um rodamoinho enorme de areia e, sem nenhum corte, a câmera muda direto para os personagens.
O segundo aspecto que, assim como o diretor, destacamos é o sonho de Asa. Como já vimos, ao contrário do que o amigo Boni pensa, deixar os estepes pra viver na cidade não faz parte das suas idéias do que é ser feliz. Ele sonha com fartura e riqueza, mas dentro da cultura na qual aprendeu a viver. Essa situação apresenta uma visão que quebra com a idéia etnocêntrica de que os padrões de vida ocidentais são melhores do que outros modos de vida. A melhor forma de se viver é algo muito relativo, varia de uma cultura para outra, da forma que se aprendeu a viver e da experiência de vida. No entanto, nascer em uma cultura não quer dizer que sempre se viverá dessa forma, isso é mais um engano, pois a cultura é dinâmica e está em constante transformação, os homens criam-na e modificam-na a todo instante. Nos sonhos de Asa e Boni, não há quem esteja mais correto ou errado, o que há são escolhas e caminhos diferentes. O que devemos nos atentar é que viver em uma metrópole, ou em uma casa luxuosa, não é necessariamente melhor do que viver no interior da Ásia, nos estepes do Cazaquistão, isso depende do ponto de vista, sendo que até mesmo o que é “luxuoso” ou “ser rico” pode ser relativizado.
Para completar sua grandiosidade, o filme conta com técnicas simples. A fotografia capta a imensidão do deserto, quase não tem cortes, a maior parte da luz que vemos é a do sol, a trilha sonora são canções, às vezes cantadas pelos personagens ou estão tocadas em cena. O espetáculo não está nos efeitos, mas sim na representação da vida de forma simples, mas poderosa.
Tulpan é um belo trabalho de estréia de Dvortsevoy. Ele quebra com algumas fronteiras do cinema ocidental de um modo muito sensível. Mostrar algo tão forte quanto a vida de forma tão simples e delicada infelizmente não é tão comum no cinema contemporâneo. Tomando cuidado para não romantizar a cultura, o cinema tem muito a ganhar com diferentes experiências de vida, formas de pensar e ver o mundo, ou seja, diferentes formas de ser humano.
[1] Matéria com trechos de fala do diretor onde ele destaca como tema do filme o sonho do personagem principal e a paisagem, disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,tulpan-o-belo-filme-de-um-diretor-do-casaquistao,529218,0.htm. Acesso em 28 de maio de 2011.
*Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)
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