O Círculo (Der Kreis, Stefan Haupt, 2014)

*por Henrique Rodrigues Marques

“O Círculo” é sem dúvida o filme mais importante da safra LGBT exibida nesta 38ª edição da mostra. O híbrido entre documentário e drama foi uma das sensações do Festival de Berlim deste ano, levando para casa o prêmio Teddy Awards (dado a obras de temática LGBT) de melhor documentário e sendo o escolhido da Suíça para tentar uma vaga ao Oscar 2015. Curiosamente, o outro vencedor do Teddy Awards, o nacional “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014, Daniel Ribeiro), também está tentando uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro na premiação.

O título faz menção à revista “Der Kreis”, considerada a primeira publicação voltada para o público LGBT do mundo, nascida nos anos 30, sobrevivendo ao regime nazista e atingindo seu apogeu na era do pós-guerra, sendo a responsável por criar uma espécie de sociedade secreta. Apesar de ser traduzida em várias línguas e possuir assinantes em diversos países, a organização fundamentou sua base em Zurique, devido a ausência de leis que criminalizassem a homossexualidade na Suíça. O grupo organizava bailes fabulosos que fizeram história, atraindo a atenção de gays e lésbicas por toda a Europa.

Somos introduzidos neste libertário universo através dos olhos do professor Ernst Ostertag, novato no Círculo, fascinado com a recém-descoberta de um espaço onde pode ser quem ele é e ainda encontrar seus semelhantes. Não demora muito para Ernst conhecer o jovem Robi Rapp, drag queen e estrela dos bailes do Der Kreis. Os dois, que estão vivos e juntos até hoje, são os responsáveis por guiar também a parte documental, dando depoimentos que complementam a ação vista em cena.

O filme se desenvolve de modo bastante quadrado, utilizando-se de fórmulas clássicas, tanto na frente ficcional quanto na documental, sendo uma narrativa eficaz mas sem grandes ousadias. Uma pena que esta tenha sido a escolha do diretor Stefan Haupt para contar a história de tão transgressor período. Faltou um punhado de beijos apaixonados sem câmeras desviando para o abajur no momento que as peças de roupas começam a cair, faltou uma certa nudez sem castigo ou fetichização, um desbunde politizado. No entanto, é de se entender que a tática por trás da postura limpa de fato funciona. È a mesma encontrada no seu companheiro, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de se posicionar sem incomodar. Bom, tanto a premiação em Berlim quanto a confiança de seus respectivos países em seus potenciais no Oscar, comprovam que ambos são verdadeiros crowd-pleasers, status que dificilmente atingiriam com propostas mais polêmicas.

Apesar de não assumir grandes riscos, a direção de Haupt conquista alguns momentos poderosos, como a angustiante cena em que Ernst e o diretor da escola onde trabalha – também gay e membro do Der Kreis -, ouvem calados seus colegas zombando de um homossexual que foi assassinado, ou quando

os verdadeiros Robi e Ernst contam sobre o julgamento do assassino, no qual a mídia o transforma em vítima, sendo induzido ao crime pela influência negativa dos pervertidos homossexuais. Ambas as cenas trazem um amargo gosto à boca, principalmente aos espectadores LGBT. Esse sofrimento silencioso provocado por opressões cotidianas é um velho conhecido nosso até os dias de hoje, e a angústia de se ver refletido na tela é devastadora.

No fim das contas, “O Círculo” é uma obra que justifica os aplausos que recebeu em sua exibição no Cinesesc. Seja por prestar tributo à uma desconhecida e importante fase da cultura LGBT, seja pela história de vida de Ernst e Robi (que,vale citar, foram o primeiro casal gay registrado da Suíça), seja pela manutenção de um espírito militante. Em um ano em que Ryan Murphy e seu “The Normal Heart” transformaram o início da crise da AIDS nos Estados Unidos em uma histérica e elitista novela, é revigorante ver um filme queer tratando a trajetória dos nossos fabulosos e valentes anscestrais com o devido respeito. E à Haupt, Ostertag, Rapp e os demais responsáveis pelo Der Kreis, ficam os meus sinceros agradecimentos. Muito obrigado.

*Henrique Rodriguez Marques atualmente é graduando do curso de Imagem e Som (UFSCar) e editor geral da RUA.

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