Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011)

Samuel Douglas Farias Costa*

Drama, horror, suspense… Qual seria o melhor gênero para categorizar o filme Trabalhar Cansa (2011) de Juliana Rojas e Marco Dutra? Confesso que não sei e acho desnecessário enquadrá-lo aqui ou ali. O filme nos prega uma peça ao tentar rotulá-lo e nos coloca um cinema que caminha entre o realismo e o fantástico, o cotidiano e extraordinário, o subjetivo e o objetivo, o indivíduo e o grupo, a cultura e a natureza. E para além de oposições e dicotomias vagueia pelas zonas intermediárias e nebulosas para nos falar do mundo do trabalho. Trabalhar Cansa foi exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes de 2011 e é um dos filmes brasileiros mais comentados e com repercussão internacional deste ano.

A história do longa se desenvolve ao redor de três personagens centrais e a forma como se relacionam entre eles e com o mundo do trabalho. Helena (Helena Albergaria) é uma dona de casa que decide abrir um pequeno mercado, arrisca entrar no negócio com a crença e esperança de que dará certo. Ela contrata Paula (Naloana Lima) para cuidar da casa e de sua filha. Ao mesmo tempo seu marido Otávio (Marat Descartes) é demitido depois de anos de trabalho como executivo em uma grande empresa. Desse núcleo principal desenvolve relações cotidianas, sempre com o trabalho como plano de fundo. Os personagens são influenciados pelo mundo do trabalho, indivíduos e grupos, nesse caso a família, se transformam, entram em uma mutação que permeia nossos aspectos culturais e biológicos.

No mercado de Helena os produtos somem sem explicação, uma parede começa a embolorar e apodrecer, um cano estoura e vaza, coisas aparentemente estranhas acontecem e a relação entre ela e os empregados se torna cada vez mais dura, desconfiada e burocrática. Otávio segue na busca de um emprego, mas se depara com uma lógica de mercado que o rejeita principalmente por ter mais de quarenta anos, apesar de toda a experiência. Paula é a personagem que vive presa, não tem liberdade. Ela é jovem, mas se muda para o apartamento de Helena para poder trabalhar. À ela é negado o direito de sair às festas, de se divertir com os amigos, de namorar, de estudar e até mesmo de fumar, ela precisa do emprego.

O clima de mistério é realçado por uma fotografia de cores frias, opacas, uma câmera lenta e quase estática. Os corpos e os olhares se movem devagar. As palavras são lentas, espaçadas uma da outra e os sons são crus e secos. Ouvimos o barulho da geladeira, dos passos e das lâmpadas. E por mais frio e não acolhedor que o filme seja, nos identificamos em cada momento e nos sentimos desconfortáveis no melhor sentido do que o cinema pode nos provocar.

A todo o momento impera a sensação de que há algo muito assustador por trás de tudo isso e nós não sabemos o que é. Mas será que não sabemos? Será que os personagens não sabem? Uma sequência bem emblemática pode ilustrar melhor o que quero dizer. Helena e Otávio vão assistir a uma peça de teatro da filha no colégio. Se trata de uma encenação da abolição da escravidão. O que nos deparamos é com várias crianças brancas com as caras pintadas de preto sobre um palco enquanto uma aluna simula a leitura do decreto da Lei Áurea. Logo em seguida somos levados para uma cena no apartamento de Helena, onde Paula, uma empregada negra, está impedida de sair. A escravidão foi mesmo superada? Esse é só um exemplo dos problemas do mundo do trabalho que o filme aponta de forma magistral e sem levantar nenhum tipo de ataque ou panfletagem ideológica. O que o filme faz é apontar as barbaridades e selvageria que permeiam essa lógica competitiva na qual o trabalho está inserido.

A abordagem e a composição dos elementos audiovisuais do filme é bem típica do trabalho dos diretores, quem já viu algum curta deles como O Lençol Branco (2004) ou Um Ramo (2007), notará que a estrutura é muito parecida. Há o risco de cair em repetições, mas os diretores são felizes ao colocar um estilo próprio de seus filmes e inovar ao tratar de um tema que tanto já foi discutido. O trabalho dos atores é bem elaborado, Gilda Nomacce, que interpreta uma funcionária do mercado de Helena, desempenha uma atuação marcante, apesar de ser um papel secundário. A mesma recebeu o Troféu Cadango de melhor atriz coadjuvante no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2011.

Trabalhar Cansa trás um fôlego de novos ares para o cinema brasileiro. Vai por um caminho não tão preso à realidade, mas que usa do sobrenatural e do desconhecido para falar da realidade. E essa é a magia do cinema, nos permite imaginar e criar sem abandonar o real. Nesse sentido, estamos falando de uma obra que nos cutuca e aponta para as selvagerias desse universo do trabalho, em que ao mesmo tempo que são visíveis os problemas, que percebemos e nos incomodam, há um esforço para escondê-los e amenizá-los, da mesma maneira que fazemos com uma parede embolorada.

Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!” .

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Este post tem um comentário

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    Diego

    Meu nome é Diego.

    Sou estudante de Psicologia – UCP – Universidade Católica de Petrópolis

    Acabei de ver o filme agora… Achei de uma excelência imensa.

    Sobre a minha perspectiva o filme vem tratando de uma temática que só de falar o nome hoje é uma escravidão para os ouvidos escutar que é o trabalho. É tanto que das várias cenas do filme é possível perceber a ausência de vontade de trabalhar de todos os lados, do marido desempregado, da mulher que está sempre para baixo, da empregada que já começa a procurar um novo emprego. E o filme vai mostrando o desprezo que outros tem pelo seu trabalho, é o caso da mãe da personagem principal que fica menosprezando o trabalho da doméstica.

    Acho que é isso que essa sociedade capitalista está produzindo, uma estafa existencial. que faz com que não consigamos realizar as nossas pequenas vontades, porque dentro do jogo do trabalho não existe a minha ou a sua vontade, porém existe a vontade de um outro. E vamos atendendo as exigências do mercado e vamos esquecendo da gente, ou seja, aquilo que queremos com a nossa vida.

    Acho que a náusea sartriana é diagnostica. A questão é fazer cada um perceber a náusea que vive no seu dia-a-dia.

    No final do filme é o que surpreendente: O marido vai para uma entrevista de emprego cujo o dilema é: Qual sobreviver ao mercado de trabalho? Ai um selecionador diz: ” Temos que entrar em contato com os nossos instintos, gritem, gritem, gritem. Aqui é selva..AHhhhhhhhhhh.”. Após isso acontecer todos gritam. E o único a percebe que isso é uma verdade e começa a chorar é o marido da mulher. Essa verdade cruel do mais forte e apto sobreviviver é complicado de engolir.Eu não sei o que sobrevive da pessoa, ela cede os suas vontades, luta para conseguir um emprego que vai fazer com que ela seja explorada e ela luta para isso? Se for ser selvagem quero ser não para os outros, mas quero isso para arte, poesia, musica. Pois é isso que dá sentido a vida.

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