Crônica em torno do Dragão

Terça-feira, 17/06/1969

“O dragão da maldade contra o santo guerreiro” aí está. Cannes. Tropicolor. Antonio das Mortes. Coronel latifundiário. Político oportunista ligado ao coronel. Padre. Professor. Cidade no sertão nordestino. Cangaceiro. Beato, Santa. Jagunços. Mulher de coronel. Mito de S. Jorge. Lampião. Antonio Conselheiro. Padre Cícero, Povo. Tudo articulado dentro de um grande equívoco. A continuação de uma velha estória, com base num velho personagem (Antonio das Mortes), se desenvolve dentro de uma proposta de revisão já feita. Glauber Rocha reúne no “Dragão” os elementos contidos em “Deus e o Diabo” e “Terra em transe”. Mas confunde revisão com repetição. E se repete. E quando não se repete, repete os outros, diluindo. Por um motivo ou por outro, Glauber Rocha quis falar do passado, aproveitando os próprios elementos do seu cinema do passado. Antonio das Mortes já está aposentado, vivendo tranqüilo numa cidade. Os cangaceiros estão mortos. E Glauber faz questão de mostrar que sabe disso, logo no começo nos “informa” que a morte de Lampião é uma data ao lado de outras da nossa história. Mas mesmo sabendo disso, Glauber ressuscita o cangaceiro na figura de Coirana, e com ele a figura do Beato, da santa, sintetizando os mitos do Nordeste. Tira Antonio das Mortes do seu retiro, utilizando o político do Interior, oportunista que vai à sua procura e  lhe pede para cumprir a velha função: matador de cangaceiro. Antonio, apesar de cético, aceita: paga para ver. Chega a Jardim das Piranhas de “Rural Willys” e temos todos os elementos para a elaboração de uma “mise-en-scene” que se estrutura em torno de citações do passado. A massa que acompanha o cangaceiro e a santa, como em “Deus e o Diabo’, dança o tempo todo ao som de “Terra em transe”. O épico de “Deus e o diabo”se funde com a ópera de “T em T”. E os personagens, misto de um e do outro, refazem cenas de um e do outro, juntos. E, no momento da superação, na hora de resolver as antigas contradições, apela-se para um trilha sonora que representa uma má assimilação do tropicalismo e para uma transformação de Antonio (compreende que precisa ficar ao lado do povo; resolve primeiro pedir ao coronel a ajuda ao povo; depois, com  a negativa dele, resolve matá-lo) que não passa de uma satisfação a certa crítica que apontou distorções no Antonio de “D e o D”. O coronel descobre as relações de sua mulher com o político e uma briga doméstica inicia uma etapa de violência que culmina num episódio estilo “duelo de gigantes”, que não é suficiente para se atribuir ao filme uma proposta de cinema-espetáculo para o grande público (funcionou apenas o cinema-espetáculo para intelectuais da Europa). No final o velho plano: a câmera fixa no personagem que se afasta. Uma última diluição, um plano igual ao de “Tropici”, de Giani Amico. E o filme termina à beira da estrada, esquecendo que muita coisa aconteceu no cinema brasileiro, além de “Deus e o diabo” e “Terra em transe”.

Ismail Xavier

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