Matrix x Dogma 95 – dois cenários da imagem contemporânea na mídia

Carmen Rial – Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França. Doutora pela Universite de Paris V (Rene Descartes), U.P. V, França.

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O primeiro cenário que podemos imaginar pensando nas conseqüências das novas tecnologias sobre as imagens é a de um mundo povoado por antenas parabólicas, com TV via satélite penetrando nos mais escondidos cantos do planeta, com as séries americanas como Friends ou Soprano sendo vistas em Cashimir e Madagascar ou as novelas brasileiras em mais de 150 países. Está ainda é uma visão pouco extrema, afinal tudo isso é lugar comum já a mais de duas décadas. Novas tecnologias e mídia remetem a paisagens mais extremas e futuristas, a mundos paralelos, antes existentes na ficção cientifica, como o de Matrix.

Matrix dispensa apresentações. Quando foi lançado o primeiro filme da trilogia, representou uma inovação no uso de recursos computacionais aplicados a imagem no cinema, impactando a linguagem cinematográfica, criando topos. Nunca o vi, o que só o torna o exemplo apropriado pois hoje podemos falar com intimidade de um filme sem tê-lo visto numa sala de cinema – os programas de making-off das campanhas publicitárias das empresas cinematográficas antecipam o enredo, repetindo obsessivamente as mesmas cenas. Não vi Matrix mas vi Matrix, Keanu Reeves se contorcendo sobre o seu próprio corpo, voando, lutando contra máquinas de Estado poderoso.

Filmes do tipo Matrix são uma possibilidade cinematográfica e midiática contemporânea, uma possibilidade inacessível para boa parte dos produtores mundiais, pois implicam evidentemente em orçamentos bilionários. Eles apontam até onde fomos em termos tecnológicos na manipulação das imagens. As leis naturais são subvertidas, os corpos se movem no espaço, em torno do seu próprio eixo, a carne se transforma em outras massas, a gravidade é vencida.

É um mundo de concentração tecnológica nas mãos de poucos, de Estados extremamente poderosos e de indivíduos controlados através do uso da tecnologia. Ou seja, a esfera da intimidade é subvertida: o Estado é capaz de controlar o movimento dos indivíduos. Como sempre, a ficção cientifica não é ficção, imaginação, fabulação livre, mas uma metáfora do social. E no caso, talvez sem que se trate de metáfora, mas metonímia. Quem viu outro filme do final dos anos 1990, Inimigo de Estado, verifica que alguns dos grandes temores das utopias da ficção cientifica estão plenamente ao alcance de Estados hoje. O filme condensa num texto de ação de uma hora e pouco, alguns dos procedimentos de controle acessíveis e praticados nos Estados Unidos hoje. E como diz o protagonista interpretado por Gene Hackman (que repete em Inimigo de Estado (1998) as habilidades do personagem que encarnou em A Conversação (1974), filme anos dirigido por Francis Ford Coppola), não há novidade em alguns desses procedimentos que estão em uso há dez anos. Por exemplo, o controle através dos telefones.

De fato, já há anos existe um sistema de triagem por computadores das falas transmitidas através dos telefonemas realizados nos Estados Unidos. Uma triagem capaz detectar palavras como “presidente”; “bomba”; “assassinato”; “terrorista”. Se uma dessas palavras é dita ao telefone, imediatamente o computador inicia a gravação da conversa. O interessante é que palavras aparentemente inofensivas como “Alah” e “Islam” também entram nesse pente fino. As conversas depois são analisadas por especialistas e, em muitos casos, o autor da fala é investigado.

Claro que também a internet, mais facilmente ainda, passa por esse controle. A revista VEJA narrou a história de um brasileiro brincalhão que acabou nas malhas por ter enviado à Casa Branca a mensagem “Eu vou matar o presidente”, ou algo assim. Agentes da CIA descobriram seu endereço, no interior de São Paulo, e foram inquiri-lo sobre sua inserção política, a dos seus pais e avós. Autorizar a CIA, como fez Clinton nos seu segundo mandato, a bloquear as contas bancárias de Milosevic, parece a coisa mais simples do mundo. Nossas contas bancárias, telefonemas, movimentos, são facilmente controláveis há décadas.

Quanto às imagens, não é preciso nem pensar nos satélites que rondam o planeta e são capazes de ver o que se passa no interior da sala de onde escrevo se a cortina estiver aberta. Basta lembrar as câmeras nos distribuidores de dinheiro, nos bancos, nos metros, túneis, ruas. Que a cidade de Nova York ou a de Londres tenha câmeras controlando as esquinas há anos não nos surpreende (e a famosa diminuição dos índices de criminalidade nova-iorquinos, sem dúvida, está relacionada a esse controle obsessivo), o que surpreende é o baixo número dessas câmeras em Paris, capital de um país onde esse controle ainda é visto com desconfiança. Até quando?

Nossas contas bancárias, telefonemas, movimentos, são facilmente controláveis. Imaginemos um hóspede de um hotel quatro estrelas, em qualquer grande cidade do mundo: o cartão de crédito identifica o cliente, a central telefônica automática, computadorizada memoriza os números e horários de suas chamadas, a chave magnética registra o tempo de permanência no quarto, a TV pay-per-view sabe o que foi assistido, câmeras nos corredores registram os seus movimentos nas áreas de circulação.

Vários filmes tematizaram o esquadrinhamento dos espaços públicos e privados por câmeras colocadas em pontos estratégicos e até em satélites: Uma temática que não é nova no cinema e na literatura; a ficção cientifica já a explorou suficientemente; com a diferença que agora isso esta sendo realizado. E podemos ter acesso a esses e devassar o planeta em nossos notebooks, através do Google Earth, mas também de outras máquinas voyaristas que se centram nos espaços antes tidos como privados, como a casa, através dos reality-shows que vasculham as subjetividades por voluntários que se oferecem a essa dissecação anatômicas do outro.

Até países onde a tecnologia de controle é ainda vista com desconfiança tem se valido delas, mostrando que as dominam, mesmo que não sejam ativadas no cotidiano. Há alguns anos, na França, um complicadíssimo crime nacionalista na Ilha de Córsega foi desvendado depois que os policiais rastearam todos os telefonemas feitos por telefone celular na área do crime. No Brasil; até a década de 1990, o setor privado parecia mais equipado que o Estado em tecnologia de som e imagem. O extinto SNI (Serviço Nacional de Informação) talvez não conseguisse impedir que hackers registrassem protestos nos sites oficiais do Estado, porém a iniciativa privada grampeou até telefonemas do presidente. Atualmente, com as denúncias de grampeamento de senadores, deputados e ministros pela ABIN (Agencia Brasileira de Inteligência), o tempo perdido parece ter sido recuperado.

Matrix é um cenário possível para se pensar a relação novas tecnologias, mídia e imagem. Nele caberia à pesquisa em ciências sociais se debruçar sobre, por exemplo, a imagem como instrumento de controle, a transformação das esferas públicas e privadas e suas conseqüências na transformação da subjetividade dos indivíduos, o controle social por parte do Estado que detém os meios tecnológicos.

O outro cenário, que vou chamar de Dogma 95, é bem diferente. Dogma 95 não é o nome de um filme e sim de um grupo de cineastas que compartilham certas idéias e que passou a ser visto como uma escola. Esse grupo dinamarquês, liderada pelos jovens diretores Thomas Vinterberg e Lars Von Trier, ganhadores da Palma de Ouro de Cannes com Festen Festa de Família (1995), resolveu estabelecer, quase como uma brincadeira, certas regras que norteariam as suas produções, visando mudar os caminhos ditados por Hollywood. Os 10 mandamentos do Dogma, retomam um tipo de cinema onde os efeitos especiais estão proibidos, onde a manipulação da imagem é reduzida; não há nem mesmo iluminação artificial, as locações não são em estúdio, etc. e uma mobilidade que o cinema teve nos seus inícios[1].

Façamos um pequeno détour, para lembrar: o cinema dos irmãos Lumière no final do século passado era feito com uma câmera portátil, que ia ao encontro dos sujeitos filmados, nas estações de trem, na saída de fábricas, no jardim e, em seguida, após terem treinado alguns empregados, por todo o planeta em busca de imagens. Um milionário como Albert Kahn financiou expedições de cineastas e fotógrafos que estiveram nos lugares mais exóticos e registraram a vida lá. Filmes que depois eram passadas em muitos lugares. Ha cem anos atrás, ou seja, quatro anos apenas após a primeira projeção em Paris, quase todos os países já tinham visto o cinema.

E no início tanto da fotografia quanto do cinema, a antropologia estava presente de modo intrínseco (Piault 2000). Foi mesma, diria, sua parteira, como fica comprovado quando passeamos pelos museus guardam essa memória, como o Museu do Cinema de Londres: os primeiros artefatos de registro de imagem foram desenvolvidos com o intuito cientifico de estudar o movimento do corpo humano (ao lado de outros animais) e de registrar as diferentes culturas. Claro que já no início se poderiam identificar duas propostas opostas: a primeira de um cinema documentário, representada pelos irmãos Lumière, tidos como os inventores do cinema, para quem a câmera era um artefato a serviço da ciência e disseminar o conhecimento era o seu propósito; a segunda, de Édson nos Estados Unidos ou Georges Mèlies na França, a de entreter. Basta comparar os primeiros registros para se perceber já ali esta oposição: enquanto o genial inventor da energia elétrica divertiu-se experimentando sua câmera para filmar a performance de uma bailarina num quarto, os irmãos Lumières a emprestaram para registrar uma saída de sua fábrica, na estreita rua que passava atrás de sua casa. No caso dos irmãos Lumières, o cinema distinguia-se mais cedo do teatro enquanto linguagem, embora a longa polêmica jurídica francesa em torno do estabelecimento do seu status, o tenha aproximado por momentos da literatura, de outros do teatro. Meliès muito cedo lança as bases de um cinema ficcional, com manipulações da imagem e efeitos especiais.

E desde o início também o cinema ancorou-se em um projeto globalizante. Não foi necessário mais do que alguns pares de anos para que um Gorky assistisse com desgosto ao reino das sombras, como designou na crônica de um pequeno jornal, após assistir na sua província russa a projeção de imagens de um imenso trem chegando a uma estação ou a saída de operários de uma fabrica. Ainda assim, se o notável literato russo ficou aterrorizado com o que descreveu como “homens em preto e branco, o mundo cinza”, reconheceu, fascinado, a importância do invento e a especificidade do cinema ao louvar a possibilidade de registrar o movimento das folhas dos arbustos por trás da mesa de um pacato almoço familiar em jardim burguês, movimento que, por não ser humano, por ocorrer no exterior, o teatro não era capaz de captar.

Rússia, Brasil…Os irmãos Lumière não apenas fizeram o mundo conhecer suas imagens, foram ao mundo capta-las: treinaram operários de sua fábrica no manejo de câmeras e os enviaram a caça de imagens em lugares os mais distantes. Seu cinema, no final do século passado, era feito com uma câmera portátil, que ia ao encontro dos sujeitos filmados.

Esse procedimento de fato não fazia mais do que levar ao cinema uma prática da fotografia. Antes deles, um milionário alemão radicado na França, Albert Kahn financiou expedições de cineastas e fotógrafos que estiveram nos lugares mais exóticos e registraram a vida lá – em acervo hoje disponível no museu que leva o seu nome (Peixoto 2001). O Brasil não esteve ausente e isso desde os tempos do Império (D. Pedro II, como se sabe, foi um amante da fotografia) por aqui passaram os enviados de Kahn, e alguns anos mais tarde, treinado em Paris, o Major Reis tornou-se nosso primeiro cineasta/antropólogo ao registrar danças e rituais dos Boróros e outros grupos indígenas para a expedição Rondon.

Quer dizer, no seu início, o cinema era solto, leve, deslocava-se no espaço geográfico, era global. Havia, é claro, sérios constrangimentos: os filmes tinham que ser curtos, a câmera tinha no interior um filme que durava apenas um minuto. Ainda assim havia uma mobilidade que não durou para sempre. Nem sempre as invenções tecnológicas contribuem para a mobilidade como poderíamos ser levados a pensar vendo os computadores diminuírem de tamanho, os chips armazenam cada vez mais informação.

No cinema aconteceu um movimento inverso. A invenção tecnológica do som trouxe, ao contrário do que se poderia pensar, uma maior rigidez ao cinema. Antes, tanto o documentário quanto a ficção podiam ser realizados ao ar-livre. A tecnologia de captação do som exigia, no seu início, ao final dos anos 20, um aparelho maior do que um piano, os filmes tinham que serem realizados no interior de estúdios. O som decretou o fim dos filmes em locação natural (Piault 2000). O som pôs fim a filmes como o que Edward Curtis produziu em 1914, Na terra dos caçadores de cabeças sobre os Kwakiutl, um longa locado em “real-life” com nativos americanos como atores, com cuidados para que as reproduções da cultura material fossem autênticas. Quer dizer, continuaram existindo documentaristas que filmavam junto a tribos exóticas, mas nenhum outro obteve o sucesso de um Flaerthy que viveu entre os Inuit para fazer Nanouk, ou, na ficção, de um King-Kong, também filmado em locação natural.

Diante da comparação com os filmes sonoros, os seus apareciam obsoletos. E pouco importava se para a antropologia, os filmes afastavam-se dos sujeitos vivos para imergindo em um mundo de esteriótipos: Holywood desenvolveu filmes tipo Tarzan (Ribeiro 2008) como abordagem de culturas estrangeiras, supostamente filmada na selva do Congo, e outros ainda nos quais, não raras vezes, negros atuavam no papel de ameríndios.

Foi só nos anos 1960, com a invenção de um captador sonoro portátil, o Nagra, que os filmes voltaram às locações naturais. O registro do som direto através desses gravadores portáteis produziu uma revolução nas imagens e uma transformação do nosso imaginário: os nativos já não apenas dançavam ou expunham suas máscaras, como nos filmes mudos Australianos e Africanos, como nas expedições de Griaule. Com o som, os nativos passaram a falar; logo, a pensar. O avanço tecnológico da imagem, visual e sonora, contribuiu para que se alterasse também, um pouco, o imaginário ocidental do “selvagem”, que, como se sabe, variava entre o “selvagem nobre” e o “selvagem ignóbil”. O “selvagem nobre” (desde o séc. XVIII, com Diderot e Rousseau), inocente, puro, produzindo uma postura de distanciamento, de intocabilidade e o “selvagem ignóbil”, bárbaro, induzia a uma postura de intervenção, seja pelo catecismo, pela Bíblia, e, mais recentemente, pelos Direitos Humanos. Jean Rouch, que foi o um dos primeiros antropólogos documentaristas a filmar os diálogos de seus protagonistas africanos, não se cansou de sublinhar esse ponto, a revolução que foi para a antropologia a incorporação do som no cinema (Devarrieux 1988, Piault 2000).

Se os anos 1960 foram marcados por essa conquista do som portátil, pela volta do cinema as ruas e as locações distantes, os anos 1970 e 1980 o foram pelo advento da câmera de vídeo e do aparelho de videocassete e sua relativa acessibilidade a um grande número de pessoas. A enorme importância desses instrumentos para a retomada de controle dos sujeitos sobre a imagem não tem sido suficientemente enfatizada.

É claro que na maior parte dos casos essa câmera portátil servirá, como antes a máquina fotográfica, para registrar festas de aniversário ou casamento, para eternizar o momento social (Bourdieu et alli 1965). São vídeos de família e talvez daí resulte certa indiferença da antropologia para com a disseminação dessa nova forma de escrita, que pode ser causada também pela sua ojeriza histórica em relação a imagem. Muito do que os novos “cineastas” registram são cenas em movimento “pousadas”, pose aqui perdendo a acepção de inércia para significar mise-en-scène. Assim, o filme é algo que vem acompanhado de todo um projeto anterior, de toda uma encenação: mostrar a alegria do momento, registrar as diferentes etapas da festa, as diferentes festas do ano. Não que a pose seja uma característica particular desses filmes de família. Todos pousam diante de uma câmera, de vídeo ou de fotografia “Ora, a partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Esta transformação é ativa e sinto que a Fotografia cria o meu corpo ou o modifica a seu bel-prazer” (Barthes 1980). Aqui, a pose mantém o significado individual de encontro consigo mesmo que lhe atribui Barthes acrescentando o significado social. O papel destes vídeos de família é assim social: trata-se de congelar uma imagem que a sociedade atribui a um seu representante, que deve, evidentemente, representá-la: isto é, ser, mas à imagem do outro. Esta imagem não é interior e subjetiva, mas coletiva e pública (Rial 1992).

Quer dizer, a imagem aqui está a serviço do registro de algo significativo para quem filma e quem assiste, serve para reforçar as relações e os valores entre as pessoas, mantém a memória do grupo. Algumas vezes, porém, essa câmera que se torna acessível a muitos a partir dos anos 1980, assume uma importância que transcende a do registro festivo, para ingressar numa esfera política. Testemunhas oculares espalhadas por lugares imprevistos elas são instrumentos fortes de denúncia, seja nas mãos de jornalistas – como no massacre de El Dourado do Carajás, no Brasil, por exemplo – seja nas mãos de centenas de milhões de amadores. Penso no caso da Checoslováquia, ou Polônia, onde ela foi decisiva para a queda dos regimes ditatoriais. Lá, a oposição criou uma rede underground de distribuição de fitas cassetes gravadas por cineastas, nas ruas, nas manifestações de modo que, enquanto as TVs eram censuradas, a informação do que de fato ocorria circulava por todo o pais através de videocassetes domésticos, fazendo engrossar cada vez mais as manifestações de protesto. Esse sistema em pouco tempo tornou ineficaz a tentativa do governo de controlar a informação pela censura as TVs estatais. Na Checoslováquia, depois de apenas uma semana de contra-transmissões, o governo checo avaliou que era mais danoso a visualização das imagens numa rede clandestina do que permitir a TV de mostrar a extensão das manifestações. Essa liberalidade porém, não foi suficiente para se manter no poder.

Do mesmo modo, na União Soviética as minorias étnicas e as culturas nacionais usaram esse recurso para ganhar um pouco de controle sobre o destino de sua própria mídia. Poderíamos citar também a revolta racial em Los Angeles, em 1992, quando do julgamento de inocência dos policiais que haviam espancado Rodney King, um motorista negro, cuja agressão tinha sido registrada por um cineasta-amador. Ou, o quase levante hispânico em Miami em 2004 por causa das imagens dos cubanos em busca de asilo e que foram agredidos com jatos de água pela polícia costeira.

Na antropologia, essa disseminação teve uma conseqüência importante e pela primeira vez os até então, alvos das câmeras dos antropólogos, pegaram em câmeras.Os projetos de produção de vídeos levados a cabo por antropólogos, e que resultaram na criação do Warlpiri Mídia Association, na Austrália, ou, no Brasil, do Projeto Vídeo nas Aldeias, do CTI de São Paulo demonstram um outro aspecto também não negligenciável. Autodeterminação e identidade pessoal aparecem como valores relacionados com esse processo.

Claro que isso não pode ser super-valorizado; a vida desses grupos não mudou radicalmente porque eles fizeram um vídeo ou abriram um canal de TV próprio. É sempre bom lembrar o diálogo que conta o antropólogo David MacDougall quando pediu a autorização de um chefe indígena para a realização de vídeos. O chefe pensou, pensou, depois perguntou apontando para o campo: “esses filmes vão fazer mal para as ovelhas?” O antropólogo, satisfeito e seguro de si explicou que não havia qualquer risco, os documentários certamente não fariam mal algum as ovelhas. O chefe então com a calma dos sábios fez a segunda pergunta: “esse filmes vão fazer bem para as ovelhas?” O antropólogo teve que admitir, sem a mesma eloquência, que eles também não fariam bem para as ovelhas.

Se os anos 1980 foram marcados pela disseminação das câmeras portáteis, os 1990 o foram pela comunicação via satélite, seja através da televisão, seja através da Internet que embora não tenham sido invenções dessa década alcançaram um número significativo de usuários. O crescimento da televisão por satélite ou por cabo tem tido como conseqüência nefasta um processo de exclusão que se têm chamado de apartheid social, causado pela globalização. Esse apartheid retrata um mundo dividido não mais, apenas, entre hemisfério Norte e Hemisfério Sul, mas entre os que tem acesso a TV paga, por satélite, cabo, internet, nos celulares, etc., e podem escolher o que vêem em uma gama larga de possibilidades, e os que ficam com a TV hertziana, com uma programação que a cada dia subestima mais a inteligência dos espectadores.

Além de excluir a maioria da população das imagens transmitidas na TV (até bem pouco tempo, um meio tido como de acesso relativamente democrático), o apartheid tem rebaixado significativamente a qualidade da programação da TV aberta – esse um aspecto negativo da disseminação da TV por satélite que tem sido negligenciado por intelectuais que não distinguem uma TV de outra, como o faz Bourdieu (1997) em Sobre a televisão, conferência ácida contra o jornalismo e a televisão, que ironicamente foi ao ar através de um canal de TV paga. Por outro lado, o fato da TV fechada por definição não se dirigir a um grande público coloca por terra alguns pressupostos frankfurtianos na definição da cultura midiática; o de que a indústria cultural visaria um gosto médio, acessível ao grande público incapaz de entender a alta-cultura e o segundo, o de que a indústria cultural transmite mensagens compreensíveis por todos, e assim a cultura de massas evitaria toda a complexidade e polissemia (basta pensar nos canais em alemão). Regida agora pelo princípio da multiplicação de canais que buscam captar a atenção dirigindo-se a gostos bem especializados, a televisão finalmente estaria liberta da escravidão imposta pelo gosto médio da massa.

É claro que a visão de Adorno e Horkheimer da televisão hertziana, ainda que forneça lentes para muitas análises, é questionável em diversos pontos pelo seu pessimismo. Mas o que é novo na TV a cabo é a possibilidade de tornar um meio de comunicação não necessariamente voltado para um gosto médio e assim capaz de ingressar em territórios que tinham sido abandonados pela TV tradicional.

Um desses territórios, que interessa de perto aos cientistas sociais, é o do documentário.

Os documentários na TV e a sua especificidade retórica

Uma etnografia da programação da nova TV nos leva a constatar a vertiginosa ascensão do vídeos/filmes documentários. E aqui um parêntesis se impõe para afinarmos os termo e definir o que estou entendo por documentário.

Não tem sido sem criticas o emprego do termo documentário na teoria cinematográfica e especialmente na antropologia visual, embora quase todo mundo saiba a que nos referimos quando apelamos a essa categoria tão discutível – em alguns livros, a definição do que é um documentário chega a se dar pela sua duração: são filmes de 30 minutos. Aqui, chamamos “documentário” o filme ou vídeo que não utiliza atores, ou seja, onde os protagonistas fazem o papel deles mesmos, representam-se enquanto atores sociais.

Embora a primeira utilização da palavra documentário, remonte a um texto publicitário para o filme de Edward Curtis, o termo documentário foi consagrada por John Grierson, um realizador dos anos 1930, na Inglaterra, responsável pela importante produção do que ficou conhecido como a escola britânica. O documentário (que vem do latim docere, mesma raiz de docente) segundo Grierson deveria ser pedagógico, documentar, isto é, registrar, testemunhar, comprovar e ter como objetivo último um aumento da consciência social. Deveria ser dirigido a grupos e projetado em reuniões de militantes, escolas, etc.

Não que as questões de ordem estéticas tenham sido deixadas de lado em nome desse objetivo social. Sabe-se que isso não é necessário, como já tinha sido provado pelo movimento russo dos anos 1920, liderado por Dziga Vertov.

Utilizar “documentário” como o faz Grierson seria, a meu ver, um empobrecimento das possibilidades estéticas desses filmes. Prefiro pensar que filmes são textos; textos pressupõem códigos; prefiro interrogar da especificidade do código que está organizando esse tipo particular de texto cinematográfico que é o documentário. Ou seja, o que faz um documentário diferente de outros textos fílmico?

Talvez fosse interessante retornar ao filósofo grego Aristóteles, como faz Bill Nichols (1981) quando se coloca essa mesma questão e busca a definição de um documentário a partir da classificação de Aristóteles, na Retórica (1998), das três formas literárias dominantes em um texto: a narrativa, a expositiva e a poética. Essas três formas coincidem a grosso modo, diz Nichols, com uma divisão clássica do cinema entre filme de ficção (no qual predomina o modo narrativo), o filme documentário (no qual predomina o modo expositivo) e o filme experimental (no qual predomina o modo poético).

Essas três categorias ajudam a agrupar filmes que repartem certas características retóricas, mas de modo algum podem ser tomadas como traços diacríticos intransponíveis, fronteiras a separar gêneros puros. A divisão que freqüentemente se faz entre filmes narrativos e filmes não-narrativos não se sustenta diante de uma olhar mais escrutinador. A exposição e a narrativa não se excluem mutuamente e nem essas da poética: todas as três podem aparecem na linguagem de um dado filme. Por exemplo, alguns filmes do chamado cinema-verdade não contém arranjos seqüenciais de funções como os propostos por Propp na suas análises de narrativas? São conhecidas as relações próximas entre o cinema de Jean Rouch (documentário?) e a Nouvelle Vague (ficção?); Godard usa o modo expositivo, etc. De todos os modos, documentários não são, como se poderia pensar ingenuamente ou guiados pela reflexão de Grierson, reflexos do real, janelas para a realidade; não são transparentes. É sempre importante enfatizar a presença da tela, do recorte, da escolha, da edição, enfim, da estrutura do texto.

Fecho o parêntesis.

A nova televisão é responsável, entre outras coisas por um maior espaço para os documentários. De fato, ao lado de um maior espaço para os noticiários televisivos, que são uma forma de documentário, existem diversos canais que transmitem quase que exclusivamente documentários. E bem verdade que entre os filmes que poderíamos chamar de documentários os que mais tem ganhado espaço na televisão e os que contam com os orçamentos dignos de filmes de Hollywood são os documentários sobre o mundo animal. O espaço e os custos de produção devem significar que tem a fatia de audiência mais importante. É no registro do reino animal que encontramos uma aposta na superprodução, com a permanência das filmagens por longos períodos de tempos, pelos recursos mais avançados no que tange a tecnologia, com o uso de câmeras minúsculas. Em termos de linguagem, muitos optam pela observação, como nos cânones da escola norte-americana conhecida como cinema direto, com uma voz over que essa sim, merece o qualificativo de voz de Deus, tal a ambição de penetrar na mente dos animais e de aproximar seus atos e sentimentos do mundo humano. Há reis, rainhas, chefes; formigas se organizam em exércitos que marcham sem piedade, há crueldade na caça, etc. Mas a narração em off nem sempre é a regra, como em Microcosmos: um filme sobre a sexualidade dos insetos, que dispensa a narração lingüística em off, dando à montagem um papel absolutamente fundamental no estabelecimento do significado.

Porem, não é apenas os documentários que apresentam animais como protagonistas os únicos a terem espaço na televisão e nos cinemas. Há muitos anos praticamente excluídos das salas de cinema, que se tornaram territórios de cinema de ficção, o documentário começou a criar um público especial graças à televisão e hoje já não é projetado exclusivamente em reuniões militantes, escolas ou associações culturais como nos tempos de Grierson. Está na TV, nos cinemas, mas também no You Tube e todos os outros sites que divulgam imagens, mudando sua linguagem, encolhendo seu tempo, dando preferência aos planos de detalhe.

De fato, graças à televisão essa ascensão do documentário é considerável em diversos países e já há alguns anos se faz presente. Ela parece estar na base da criação de um público, assim como a disseminação de câmeras o está na multiplicação numérica e das possibilidades expressivas dos documentários. Filmes etnográficos podem ser assistidos, ainda que se muita regularidade, em séries de ciência, como Nova, Odyssey ou as do National Geographic Special, e algumas vezes em séries especiais, como foi o caso de Milênio. A Inglaterra mantém um papel de destaque nessa área e a serie Disappearing World talvez seja o exemplo mais interessante de produção de cinema etnográfico para a televisão. No Canadá, uma série de documentários etnográficos ocupou durante anos o horário nobre na televisão, indo ao ar uma vez por semana. Também nos Estados Unidos, a televisão assegura a um cineasta que não faz concessão como Frederick Wiseman um público que varia entre seis e oito milhões de telespectadores. Isso é pouco quando comparado aos 60 milhões de Dallas, mas ainda assim nada negligenciáveis, sabendo-se que os objetivos dos documentários geralmente vão além do objetivo da maioria dos que assistem televisão, que é o de se entreter, se divertir. Na Inglaterra (BBC), na Alemanha, na França (Arte, Planète, mas também os canais públicos da France 2 e France 3) os documentários passam a ser vistos por milhares de pessoas; quase que diariamente, criando um público que permite hoje a sua projeção em circuito comercial, casos na França de filmes como No sex last night de Sophie Calle, dos documentários de Raymond Depardon ou de Pierre Carles) e a existência de salas de cinema onde sua presença é freqüente, caso de um cinema criado por cineastas na Place de Clichy onde alias já foi projetado um documentário brasileiro, o Ilha das Flores, do Jorge Furtado, com uma vertiginosa montagem de Giba Assis Brasil.

Se na TV aberta brasileira eles ainda são raros, na televisão por satélites temos até documentários que seria dignos representantes da tendência que chamei de Dogma 95. São nesses espaços que os documentários etnográficos, mesmo os realizados com poucos recursos de orçamento, poderiam tentar conquistar um maior território. E daí, quem sabe, estender suas fronteiras aos notebooks, celulares, e todos os suportes que nossa sociedade de imagens venha a criar.

Referências Bibliográficas:

Aristóteles. 1998. Retórica. Lisboa: INCM.

Bourdieu, P 1997. Sur Ia télévision. Paris, Liber Éditions,. ( Trad. Portuguesa: Sobre a Televisão. Celta, 1997.

Bourdieu, P, L. Boltanski,R.Castel, J.-C.Chamboredon 1965. Un art moyen,essai sur les usages sociaux de la photographie.Paris : Éd. de Minuit, Le sens commun.

Devarrieux, Claire e Marie-Christine de Navacelle. 1988 Cinéma du réel. ed. Autremant.

Nichols, Bill 1981 Ideology and the Image: Social Representation in the Cinema and Other Media. Indiana: Indiana UP.

Peixoto, Clarice 2001. Les archives de la Planete: imagens da coleção de Albert Kahn em Cadernos de Antropologia e Imagem, Vol 8.117-132 , Rio de Janeiro,UERJ, NAI

Piault, Marc-Henri, 2000. Anthropologie et Cinéma. Passage à l’image, passage par l’image. Paris, Nathan.

Rial, C. S.1992. Da Casa de ‘Antigamente’ A Casa Decorada. Ciência Hoje, São Paulo, v. 14, n. 82, p. 19-24.

Ribeiro, Marcelo R. De Souza. 2008. Da economia política do nome de ‘África’: a filmografia de Tarzan. Dissertação de mestrado. PPGAS/UFSC.


[1] Os 10 mandamentos:

1.        A filmagem deve ser feita em locais externos. É  proibido incorporar objetos e cenários. Se a cena requer um objeto particular, deve-se procurar umlocal externo onde ele se encontre.

2.        O som nunca deve ser produzido separadamente das imagens ou vice-versa. A música só pode ser usada se fizer parte da cena.

3.        A camera deve estar sempre na mão.Todos os movimentos são permitidos. O filme nao deve ser feito onde está a camera, está é que deve estar onde o filme ocorre.

4.        O filme deve ser colorido, sem iluminação artificial. Se há muito pouca luz a cena deve ser excluida ou entao pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera.

5.        Truques óticos e filtros são proibidos.

6.        O filme não deve conter ação superficial, como assassinatos ou disparos de armas.

7.        A ação deve se passar em tempo real, sem recorrer a flashbacks ou outros recursos temporais e geográficos.

8.        Filmes de gênero também são inaceitáveis.

9.        O formato final do fime deve ser o 35 mm acadêmico.

10.     O diretor não deve receber crédito.

Constam ainda na filmografia do grupo Os Idiotas e Mifune.

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