O Fantasma da Interatividade

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Paulo  B. C. Schettino é cineasta e Mestre em Cinema e Doutor em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo – USP.   Professor da Faculdade de Comunicação – Depto. de Cinema da FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, nível de Mestrado stricto sensu, da UNISO – Universidade de Sorocaba. Autor do livro Diálogos sobre a Tecnologia do Cinema Brasileiro (São Paulo: Ateliê Editorial/2007). Menção Honrosa como Realizador pelo documentário Ora (direis) ouvir estrelas! no Festival Porto 7 – Porto/Portugal, em junho de 2008.

Resumo:

Dada a importância da Palavra na transmissão de informações e mensagens entre os homens, independentemente do contexto histórico, é certo que em um determinado período de tempo uma delas se sobressai, criada ou ressuscitada, e passa a vagar por diferentes bocas – pântano enganoso, segundo o poeta Thiago de Mello – até tornar-se encontradiça nos mais diferentes discursos.

Podemos, sem sombra de dúvida, afirmar que Interatividade ocupa o topo do ranking das palavras que compõem a semiosfera que circunda o homem na atualidade.

The   Spectrum of   Interactivity

Abstract:

Considering the importance words in exchanging information and messages among men, regardless the historical context, it can be taken for granted that as time goes by, one word is highlighted over the other ones. It doesn’t matter whether it was created or reborn, it starts being used by different speakers – whose mouths are misleading swamp, according to the poet Thiago de Mello – until the moment it can be found in the most different kinds of discourses.

We can surely say that Interactivity is top placed in the ranking of the words which compose the semiosphere that embraces men nowadays.

INTRODUÇÃO

O diálogo fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse estar o seu espírito atento aos múltiplos sentidos das palavras que cautelosamente ia pronunciando, sobretudo aquelas que parecem ter  um sentido só, com elas é que é preciso mais cuidado.  Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, pertubações magnéticas, aflições.

(José Saramago, Todos os nomes)

“Transparência” ou “transparente”; “pontual”; “empreendedorismo”; “cidadã”; “convergência”; “evidentemente”; “criatividade”… Todas estas palavras e tantas outras, não mais que de repente, entraram em voga e passaram a ser reproduzidas, reiteradamente, e podem ser encontradas em todos os discursos que a nós, de forma inda que  prosaica, são dirigidos. E, o que é pior, também naqueles discursos que são dirigidos ao cidadão anônimo das massas humanas e que caem indistintamente nas redes de recepção tanto dos preparados para criticá-los quanto dos indefesos que os assimilam sem deglutição e, que mesmo assim, se incubem de disseminá-los.

Razão tinha Saramago ao nos advertir sobre o perigo que corremos quando da emissão despreocupada das palavras, ao fazer sua criatura, em Todos os nomes, despertar para o problema.

Por quase 300 anos a Física Clássica apoiou-se na Mecânica newtoniana que embasava os fenômenos relativos aos termos repouso e movimento dos corpos materiais em apenas três leis. Dentre elas, a terceira, interessa-nos no momento. Se as duas primeiras regiam o repouso e o movimento dos corpos, a terceira lei ocupava-se das relações entre dois ou mais corpos em um universo em contínuo movimento. Nela, o físico inglês estabelece que corpos em movimento no espaço ao se encontrarem dividem igualmente a ação que um possa exercer sobre o outro.  A reação surge automaticamente como resposta à ação e, o que é mais importante, em igual intensidade. A Terceira Lei da mecânica newtoniana é que afirma a igualdade entre “ação” e “reação”. Vulgarmente conhecida como “a lei da ação e reação”, é facilmente verificável ao percebermos que doem igualmente tanto a face esbofeteada quanto a mão que esbofeteia.  Se na boca do poeta “a mão que afaga” é “a mesma que apedreja”, já seriam outros quinhentos, pois se o autor da ação é o mesmo – o dono da mão – as ações diferem em suas qualidades e intenções. As diferenças de intenção são assinaladas pelos verbos que as identificam. Para cada uma das ações, o seu verbo.

É em torno da palavra “ação” – o resultado do ato do “agir”, por sua vez denotando a opção pela iniciativa de romper com a inércia, que surge toda uma família de palavras. Àquela estão ligadas, entre outras, “ator”, “actante”, “inação”… E “interação”. Aqui chegamos, finalmente, “no xis do problema”, no dizer do grande Noel Rosa, pois é a partir de “interação” que chegamos, enfim, à palavra mágica da atualidade – “interatividade”!

É inexorável o seu surgimento, por diversas vezes, quando o assunto do debate é a entrada no mercado consumidor brasileiro da Televisão Digital, e a ela está sempre acoplada a palavra “convergência”.

A extrema atualidade da palavra Interatividade vem com o sentido de dotar o receptor do Meio de Comunicação da competência de reagir a ele, não apenas de uma única vez, pois se encontra embutida no sentido da palavra a possibilidade de reação continuada. E, também se verifica a necessidade de utilização de forma auxiliar de um outro meio de comunicação para atingir seu objetivo – fazer com que chegue a sua reação ao meio detonador originário da ação. Às redações dos jornais e revistas chegam as reações de seus leitores em forma de mensagens epistolares transportadas pelos correios. A Imprensa mantém uma seção de recebimento e resposta impressa da mensagem de seus leitores. É no aproveitamento desta brecha que os leitores explicitam suas reações, favoráveis ou não, a algo que tendo sido publicado os tenha atingido. E, é quando podemos verificar a concretização do diálogo que se estabelece entre o meio responsável pela emissão e o receptor. Alguns vão mais longe, pois além de responderem aos seus leitores ainda abrem espaço para que se manifestem. A seção “Cartas dos Leitores”, “Página do Leitor”, “Cantinho do Leitor”, ou lá que nome leve, no fundo é o locus em que a interatividade de receptor e emissor se concretiza. A reação do rádio-ouvinte utiliza o telefone. O mesmo se observa com a Televisão.

Intervalo Hitchcokiano:

Rio de Janeiro / 7 de agosto de 2008 – 15h40min

Calçadas que contornam o prédio da Biblioteca Nacional – Cinelândia – região central da cidade.

Descendo a escadaria lateral da esquerda, da frente do prédio da Biblioteca Nacional, tivemos a atenção atraída pelo alarido de um agrupamento de pessoas que quase lotavam a escadaria da frente do prédio do Teatro Municipal. Manifestantes, pelos discursos inflamados, cartazes e vozerio. Reação popular a qual fosse à ação de governante, e a quem ele fosse. Continuamos a caminhada, pressionados pelo relógio que acusava a proximidade do horário de encontro marcado. Atravessamos a Rua México, passamos pelo prédio do Ministério da Educação e antes de prosseguir, uma pequena parada para matar a saudade dos azulejos do mural de suas paredes, cotidianamente vistos no passado. Tomamos a direção da Igreja de Santa Luzia em busca do novo prédio da Academia Brasileira de Letras, erguido ao lado da célebre casa de Machado e construído no terreno que abrigava a biblioteca da FNFI-Faculdade Nacional de Filosofia, tão familiar na memória pelo tanto uso que dela fizemos. O encontro era para abraçar e prestigiar um diretor de Cinema, amigo, no Teatro Raimundo Magalhães Júnior, onde seria exibido o seu documentário que estava sendo recepcionado pelo acadêmico Nelson Pereira dos Santos.   Esquecêramos das velhas revistas de Cinema adquiridas, rapidamente, ainda na calçada da Biblioteca onde estavam espalhadas à venda, antes de atravessar a Rua México, e inconscientemente metidas na bolsa. Reencontrar o cineasta amigo e rever o velho Nelson foi demais. Após a exibição, sem tempo para muita conversa rumamos para o aeroporto Santos Dumont. Só no interior do avião para São Paulo é que as revistas foram lembradas e visitadas e saboreadas. Em tempo: o tema deste escrito já fora acordado entre nós e o editor, e já havia entrado em processo, semelhante ao bovino, de ruminação. Folheávamos um exemplar de 1954 da revista “A Cena Muda” e, obviamente, nos detivemos na página do leitor. Entre as contribuições dos leitores enviadas à redação, o exemplar publicava naquele número um texto selecionado por sua qualidade. Tratava-se de uma dissertação versando sobre a personalidade do cineasta norte-americano Stanley Kramer, figura que, como o autor do texto, também admiramos. Percorremos o texto até o fim, com satisfação. Ao final, a surpreendente assinatura de autoria: “(a) GLAUBER (Salvador-Bahia)”.

Lembramo-nos de uma entrevista concedida a nós pela cineasta Suzana Amaral quando executávamos para ela a pós-produção de seu filme de estréia, “A Hora da Estrela”, que publicamos então na revista “Cinemin”: “O começo é sempre igual: suspirar pelos artistas do “star system”, escrever para revistas de fãs como “Cinemin”, ver muitos filmes, descobrir o Cinema Brasileiro…”.

É querida Suzana (sem blague), tens razão. Admirar os artistas, escrever para revistas de fãs de Cinema, ver muitos filmes, descobrir o Cinema Brasileiro… Seus diretores como Lima Barreto, Roberto Pires e, depois, o encontro decisivo com Nelson… E depois iniciar a longa viagem pegando de início, pelos costados, o vento/Barravento… E seguir até…

O resto é História!

Fim do Intervalo Hitchcokiano.

Historicamente, os avisos fornecidos ao presuntivo consumidor, que constituem o cerne da atividade de Publicidade e Propaganda ainda no século XIX, migraram do medium impresso – jornais e revistas – para o Rádio, quando de sua implantação nos Estados Unidos logo após o término da I Guerra Mundial. Tornam a migrar, já para a Televisão tão mal terminada, em 1945, a Segunda Grande Guerra Mundial. O modelo americano implantado tanto para o Rádio quanto para a Televisão recebeu a adjetivação “comercial”. Isto devido ao fato de ambos apresentarem uma programação de avisos aos consumidores sobre marcas de empresas, seus produtos e serviços. E para que o consumidor não se enfarasse diante dos dois media, ambos usaram e continuam a usar o estratagema de cortar, de tempos em tempos, a enxurrada dos avisos criando intervalos recheados de diversas atrações prazerosas ou necessárias tais como narrativas seriadas, shows de cantores, noticiários etc. Desse modo, poderíamos afirmar que se enganam os que crêem no inverso: existir tanto no Rádio quanto na Televisão uma programação de entretenimentos em que avisos comerciais são mostrados em intervalos periódicos. Ambos os meios de comunicação recebem, com justiça, o adjetivo – comercial – que os irmana.  O século XXI começa assustadoramente com a acelerada evolução tecnológica da comunicação entre computadores individuais – os Personal Computers – que em menos das duas décadas anteriores à virada do século transformaria, de maneira radical, o universo da Publicidade e Propaganda.

Já em 1999, o publicitário Júlio Ribeiro, em longa entrevista concedida a uma revista semanal de grande circulação, chamava a atenção para as grandes mudanças que fatalmente se seguiriam no universo de Produção, Publicidade e Vendas de produtos, com a disseminação das redes de computadores interligados.   Em suas palavras alertava para o desconhecimento da maneira como reagiriam muitos setores da produção (veja-se o caso da Indústria Fonográfica, por exemplo), com a inevitável fragmentação do mercado, ante a disponibilização para o consumidor de um leque de canais de televisão – abertos ou fechados – a impedir doravante o que se vira até então: alguém enviar uma única mensagem e ela ser recebida, sincronicamente, por toda uma nação.  Pode levar tempo, porém é sabido que um sistema, após uma perturbação, acaba por encontrar um novo estado de equilíbrio depois de absorver ou eliminar o elemento intruso em seus domínios.

Aos poucos, uma nova palavra de ordem surge para aquietar os espíritos desassossegados e, veio então a palavra mágica… Convergência!  Se o inimigo é mais forte, ao invés de combatê-lo, unamo-nos a ele.

De 2000 para cá, aos nossos dias, debates, mesas dos mais variados formatos: redonda, quadrada, hexagonal etc. Foram organizadas para se produzir a convergência dos diferentes meios de comunicação tradicionais e, reinventar caminhos para a junção de técnicas e processos que assegurassem a tranqüilidade da cadeia produtiva e comercial. A Imprensa, com seus centenários jornais diários, busca na Internet uma nova forma de dialogar com seus leitores e assinantes.  Grandes debates têm sido realizados enfocando o futuro dos produtos da Imprensa frente à migração de parte de seus leitores para a Internet. Também a Televisão busca acoplar-se à Internet no sentido de revitalizar-se e continuar o seu trabalho de venda de publicização dos avisos ao consumidor. Também as empresas que exploram a telefonia e os seus centenários telefones invadem o espaço audiovisual da Televisão, um fato que ainda precisa ser vivido para somente depois virar história. O Rádio, às vésperas também de tornar-se centenário, cai no buraco negro e insondável, ao menos por enquanto, desse monstro devorador que, entre outras benesses, traz em seu bojo a suposta democratização do papel do Emissor a transformar todos os usuários da rede em emissores. Os dois clássicos atores das teorias da comunicação – Emissor e Receptor – finalmente encontram a possibilidade da alternância dos papéis tornando realidade o que os outros meios tentaram e somente a Telefonia havia conseguido: o Diálogo – a palavra como uma bola dividida entre dois jogadores de futebol a quicar de uma cabeça para outra. E, é no Diálogo, quase tão antigo como o mundo, que se verifica a interação entre dois humanos, que fascina a Televisão no momento. A magia da palavra-chave “Interatividade” enche os ouvidos e as bocas de todos os que buscam a promessa que ela encerra: através da junção do televisor com o computador a concretização da possibilidade do consumidor, após ver publicizado na TV o seu objeto de desejo, clicar em um ato contínuo, no ícone “carrinho de compras”, dando a ordem de com o seu cartão, crédito ou débito, efetuar a transação comercial de compra e venda de modo irreversível.

Já foi dito algures: o que somos capazes de sonhar também somos capazes de realizar. Trata-se apenas de uma questão de tempo.

Sem dúvida, um dos gêneros mais fascinante das Literaturas é constituído pela Ficção Científica, melhor chamada de Literatura de Antecipação. Isto devido ao fato de baseando-nos em conhecimentos científicos disponibilizados no momento pela grande mãe – as Ciências – sermos capazes de, em uma verdadeira antevisão, enveredarmos pelo mundo dos sonhos e verbalizar as imagens que criamos do devir. Por favor, não confundir com a mera futurologia! E, sim, com o exercício analítico de enxergar probabilidades passíveis de ocorrência, em virtude da posse de sólidos conhecimentos. Tal qual o aviso dado por Aristóteles, em sua “Arte Poética”, aos escritores de Ficção quando permite a eles inventar a representação da realidade, desde que não se perca de vista a verossimilhança. É bom que fique aqui bem claro que consideramos o pequeno grande livro do mestre grego como o mais perfeito manual de criação e produção de texto de ficção para roteirização de espetáculos do audiovisual, seja ele Teatro, Cinema ou Televisão.  Apesar do título, ocasionalmente, poder induzir ao erro de fechar-se na Poesia, na realidade poetar, segundo Aristóteles, é conseguir com palavras construir imagens extraídas do mundo concreto e da natureza, sem, contudo, enveredar pelo discurso estéril da fidelidade, podendo estar ou não presente a poesia, dependendo da maestria do autor em construir figuras/metáforas.

Essa liberdade de criação foi, por muitos, explorada. Assim, deu-se com os “loucos” Júlio Verne, Herbert George Wells e George Orwell. E, mais recentemente, com Ray Bradbury. Suas figuras, pura viagem no pensamento abstrato em seu momento de criação, totalmente desvinculadas do mundo material, materializam-se em um futuro, mais ou menos próximo.

E é novamente a Física, já questionando a camisa de força newtoniana a partir dos últimos anos do século XIX, que irá fornecer o conhecimento científico do universo “infinitamente pequeno” que, colocado à disposição do homem, permitirá a criação de tecnologias capazes de produzir a materialização dos sonhos dos sonhadores.

E, assim foi, então, que se tornou possível o homem voar, navegar sob os mares, e, principalmente, comunicar, mesmo quando o outro está distante.

O Telediálogo, ou o diálogo possível quando os interlocutores não dividem o mesmo espaço, teria em última análise o objetivo de possibilitar a comunicação sem a necessidade de haver deslocamento espacial dos participantes. Há um misto de gradação e junção na passagem do indivíduo da condição de interlocutor viabilizada pela Telefonia e de espectador, pela Televisão, para a sua transformação agora em receptor interativo.

A Telecomunicação

Chegará um tempo no qual voará a voz.

E os homens conversarão entre si por além de mares e montanhas.

Chegará ainda um tempo no qual voarão as imagens.

E os homens poderão ver-se por além de mares e montanhas.

Aquele será um tempo de grandes dores e de grandes tormentos.

Voarão as imagens como os anjos, mas não levarão a luz dos anjos.

(Profecia da monja de Dresda,1680-1706)

Primeiro foram as palavras que o homem conseguiu que viajassem pelo espaço totalmente libertas de suporte material. Depois… As imagens!   Aos poucos já estamos nos acostumando com as teleconferências, conversações telefônicas acompanhadas de imagens, audiovisuais, portanto, obtidas com duas câmeras a enquadrar cada qual um dos interlocutores. Se para alguns de nós isto já está virando coisa rotineira, para a grande maioria ainda pertence à área da Ficção Científica.

Com uma ressalva: estes podem ainda não ter experimentado, porém certamente viram no Cinema. Durante os anos 20 e 30, enquanto O Rádio, o Cinema e a Literatura em Quadrinhos reinavam absolutos nos Estados Unidos como meios de comunicação de massa, a pesquisa para a tecnologia de envio de imagens à distância estava em pleno vapor. Porém, o que resultaria na Televisão já estava no imaginário dos norte-americanos a partir das tiras ilustradas das histórias em quadrinhos publicadas nos jornais. Dos quadrinhos para o Cinema, em 1936, é produzido no formato seriado o filme das aventuras do herói Flash Gordon. Há filmes, na História do Cinema, que mereceram a adjetivação de seminais, devido ao fato de após lançados inaugurarem um filão ocupado por outros filmes que em seu rastro passaram a explorar o mesmo tema ou ambiência. Em alguns casos, produzem um outro fenômeno denominado serialização, que consiste na realização de novos filmes com novas aventuras criadas para o herói, como aconteceria com James Bond ou Rambo, entre outros. Foi o caso de Flash Gordon no Planeta Mongo, o primeiro de uma série de três filmes: mesmo herói, mesmo ator, mesma temática – as viagens interplanetárias e a Telecomunicação, presentes nos outros dois subseqüentes. São as primeiras imagens fascinantes do Telediálogo, disseminadas para o grande público do mundo inteiro.

No mesmo ano, a Disney coloca a vilã – a madrasta má da protagonista Branca de Neve – dialogando com o espírito adivinhatório do espelho.

Concomitantemente, Charles Chaplin, em seu Tempos Modernos, também apresenta a sua versão do telediálogo.

Importante ressaltar que todas estas obras fílmicas reproduzem a semiosfera do momento histórico formada pela imaginação criadora dos escritores emanada da pesquisa para a gênese da Televisão. Enquanto os cientistas, trancados em seus laboratórios, perseguiam o seu intento, os fabricantes de ilusão e sonhos, os ficcionistas, viajavam em suas criações imagéticas apontando, e porque não? Possíveis soluções.

Também o Cinema Brasileiro, dez anos depois, registra o telediálogo do protagonista da comédia Uma Aventura aos 40, de Silveira Sampaio, contestando e “batendo boca” com o apresentador do programa televisivo do tipo “Esta é sua vida”, enfocando justo o protagonista que se encontra sentado de fronte à televisão, em sua sala de visita. Este, não resistindo às distorções dos fatos apresentadas no programa “interage” de uma forma precursora. O filme foi realizado no espaço de tempo em que por aqui circulavam notícias sobre o novo meio de comunicação, novidade nos Estudos Unidos, porém anterior à sua chegada ao Brasil.

Em 1966, o cineasta francês François Truffaut trabalha na adaptação fílmica da novela literária homônima de autoria de Ray Bradbury, escritor de Ficção Científica, e realiza o filme Fahrenheit 451, importantíssimo por vários aspectos. Tanto no livro quanto no filme é possível ver a hoje tão sonhada interatividade com personagens “reais”, de maneira assustadora, serem guiadas e conduzidas pelas personagens fictícias da Televisão. Também o romance 1984 de George Orwell foi adaptado duas vezes pelo Cinema, prenunciando a série Matrix. A segunda versão da obra orwelliana, escrita em 1948, foi realizada justo no ano de 1984 com a intenção clara de suscitar comparações entre o sonhado pelo escritor e a vida das pessoas reais no ano pré-datado pelo romance. Neste caso, é de se notar a grande ironia da própria Televisão ao transformar em um programa de entretenimento, quase beirando o “besteirol”, a terrificante vigilância exercida pelo Poder, personificado no Grande Irmão, sobre as pessoas à custa da perda total de sua privacidade. Esta, um bem individual ciosamente resguardado até  tão pouco tempo, tem sua perda banalizada ao ser transformada em espetáculo para satisfação do voyeurismo coletivo. Mais, além: produzir um formato televisivo transformado em fenômeno de aceitação globalizada, característico do que constitui a Neo-TV – a televisão para além de 2001, sincronizadora da sociedade agora em nível mundial.

Revisitar a obra da dupla Stanley Kubrick  e Arthur Clarke, realizadores em 1968 do grande clássico da ficção científica justo intitulado 2001: Uma Odisséia no Espaço, é instigante por diversos motivos. Aqui, uma outra data – 2001 – é assinalada, em uma antevisão de aproximadamente 30 anos. Flash Gordon é retomado trinta anos depois com as roupagens épicas de Homero a empreender novas viagens interplanetárias. Seria importante pesquisar quais seriam as antecipações dentre as inúmeras propostas pela obra, aquelas que se concretizaram. Também no filme é com naturalidade, por ser usual no contexto temporal em que vivem as personagens tal como nos filmes de Flash Gordon, que o internauta e sua filha teledialoguem.

E, o homem de 2001, no filme, mantém um relacionamento conflituoso com a máquina criada pelo próprio homem, uma inteligência artificial que pensa e chega a pensar ser gente a ponto de igualar-se ao homem. Onde começa e termina a relação que se pode estabelecer entre a ficção de 30 e 60 anos atrás e a realidade vivida pelo homem nos dias de hoje? O diretor russo Andrej Tarkovsky ao realizar SOLARIS, que a crítica contrapõe ao filme norte-americano da dupla Kubrick/Clarke considerando-o a resposta soviética na guerra fria entre os dois impérios, dá como certa a materialização dos sonhos e do pensamento, em total concretude.

Muitos de nós viram a Televisão ser implantada no Brasil em 1950 e ganhar definição e recorte de imagem, paulatinamente, enquanto novos procedimentos foram sendo incorporados pelos fabricantes dos aparelhos. A geração nascida em 1970 jamais questionou uma vida possível sem a Televisão. Já, os que nasceram após o ano emblemático de 2000 não sentirão estranhamento como nós, que somos todos do século passado e crescemos sem termos em nosso entorno toda essa parafernália que a tecnologia lança no mercado.

Como dissemos, na atualidade, graças às tecnologias de digitalização de som e imagem, já se pode contar com a possibilidade de escolhermos na tela da Televisão o nosso objeto de desejo, e comprá-lo via computador com operação bancária através do uso de cartão. Para atingirmos a completa virtualização, basta apenas resolver o problema da recepção do objeto adquirido. Ainda hoje necessita de transporte material.  Ainda!

Mas, depois das palavras e das imagens, virão os objetos. Há muito o homem vem sonhando e esquadrinhando esta possibilidade, e é na Literatura e no Cinema que vem rascunhando, criando modelos, tateando, ora avançando ora recuando, estrategicamente, para retornar à busca de solução para o problema que o incomoda. Já possui até nome: Teletransporte. A primeira versão do clássico A Mosca da Cabeça Branca, de 1958, expunha as dificuldades da questão. Porém, em famoso seriado televisivo, o Capitão Kirk desaparecia do chão e reaparecia dentro da nave espacial. Tanto o Cinema quanto a Televisão já anteviam a probabilidade das Ciências resolverem a operação aparentemente simples: desconstrução do corpo material seguida de reconstrução.

Seria mera questão de tempo, pois, a matemática já aponta para uma possível solução: uma derivação seguida de uma integralização da equação e… Cqd!

Da tela do vídeo o objeto material vai saindo aos poucos, se desloca pelo espaço e se autodeposita, suavemente, no colo do feliz comprador que mal pode conter a expectativa de desatar os cordões que prendem o colorido invólucro da embalagem. O homem se encontra plácido e apenas a cupidez do olhar denuncia sinais de movimento, confortavelmente muito bem sentado no sofá de sua sala de visita, de onde, é bom que se diga, NUNCA SAI. Não há necessidade …

ILUSTRAÇÃO: Fotogramas de Filmes

Flash Gordon

Branca de Neve e os 7 anões

Tempos Modernos

FONTES:

Bibliografia:

ARISTÓTELES. A Arte Poética. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.

BABIN, Pierre e KOULOUMDJIAN, Marie-France. Os Novos Modos de Compreender: A Geração do Audiovisual e do Computador. São Paulo, Paulinas, 1989.

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CIMENT, Michel. Hollywood: entrevistas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

GONÇALO JÚNIOR. A Guerra dos Gibis – A formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GOTTLIEB, Sidney (org.).  Hitchcock por Hitchcock: coletânea de textos e entrevistas. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1998.

KANIN, Garson.  Hollywood – memorie indiscrete. Parma/Itália:  Nuova Pratiche Editrice, 1995.

KARAZEK, Hellmuth. Billy Wilder e o resto é loucura. São Paulo, DBA-DÓREA Books and Art, 1998.

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RAPAHEL, Frederic.  Kubrick: de olhos bem abertos. São Paulo, Geração Editorial, 1999.

SCHATZ, Thomas.  O gênio do sistema: a era dos estúdios em Hollywood. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

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TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut – Entrevistas. São Paulo, Brasiliense, 1988.

REVISTA “A CENA MUDA”. Nº 25, 23-6-1954. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1954.

FILMOGRAFIA:

Flash Gordon no Planeta Mongo/ Flash Gordon vs The Emperor of Mongo(1936)

Flash Gordon no Planeta Marte/Flash Gordon’s Trip to Mars (1938)

Flash Gordon Conquista o Universo/ Flash Gordon Conquers the Universe (1940)

Branca de Neve e os Sete Anões/Snow White and the Seven Dwarfs, Walt Disney (USA, 1937)

Tempos Modernos/Modern Times, Charles Chaplin (USA 1937).

Metropolis/idem, Fritz Lang (Ale, 1926)

Uma aventura aos 40/ idem, Silveira Sampaio (Br, 1947)

A Mosca da Cabeça Branca/The Fly, Kurt Neumannn (USA, 1958)

Fahrenheit 451/idem, François Truffaut (Fr, 1966)

2001 – Uma Odisséia no Espaço / 2001: A Space Odyssey, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke (USA,1968)

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