Jônatas Kerr de Oliveira é professor substituto no Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar e aluno do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, onde pesquisa a narrativa nos Games. Graduado pela USP (2005) como Bacharel em Ciências da Computação, além dos jogos eletrônicos pesquisa sobre mídias digitais, efeitos visuais, pós-produção cinematográfica e animação 3D, focando, principalmente, no uso de Softwares Livres.www.jonataskerr.cjb.net
1. Introdução
A menos que tenha passado os últimos 10 ou 15 anos em uma ilha deserta, você deve saber da importância que a Internet e as mídias digitais têm assumido na sociedade contemporânea. Nossas vidas têm mudado de forma drástica e a forma como nos comunicamos também, com e-mails, mensagens instantâneas, celulares, torpedos, revistas on-line e uma revolução da escrita casual que incorpora a velocidade alucinante das novas mídias de forma abreviada e despojada, acessível aos leigos sem aborrecer os iniciados.
Temos novas formas de nos comunicar, novas manias, novas formas de pensar[1]. Uma conseqüência óbvia da presença destas mídias digitais é a reestruturação das outras que ocupavam espaços similares na sociedade, que passam a disputar o mesmo espaço ou a incorporar características destas. Como exemplo recente temos o curioso comentário feito por um representante da Rede Globo na quinta edição do Fórum Internacional de TV Digital, que “lamenta a mudança de comportamento do mercado de comunicação com a disseminação da internet e da telefonia celular“. Isto só mostra que quem não está preparado para esta nova geração de mídias digitais só tem a perder e, no cinema, a situação não é diferente.
Comentando sobre como a acessibilidade às ferramentas de produção tem aumentado significativamente e como a distribuição do conteúdo e a recepção por parte do público tem mudado ao longo dos últimos anos, este artigo pretende dar um panorama geral sobre como a internet e as mídias digitais têm influenciado e abalado as estruturas tradicionais do cinema em todo o mundo.
2. A produção
Software livre, banda larga e pirataria… Aparentemente estes são três termos desconexos com o cinema. Porém, eles estão profundamente relacionados com a revolução que está ocorrendo na produção audiovisual graças à crescente acessibilidade dos softwares de produção ao usuário comum. Hoje em dia, muitos adolescentes têm passado boa parte dos seus dias sentados nos computadores navegando na internet… “provavelmente eles devem passar o dia todo no Orkut!“, pensou você, caro leitor… E provavelmente acertou! Entretanto, existe um pequeno grupo de crianças e adolescentes que já gastam seu tempo produzindo material audiovisual, utilizando softwares de modelagem e animação 3D, editando áudio etc. Trata-se de uma revolução, pois com o acesso à internet o conteúdo de qualquer área se torna acessível a quem interessar, não só nas escolas e faculdades, mas no quarto de um adolescente entediado ou na sala de um idoso, disputando a atenção que este destinava à Palmirinha Onofre (Rede Gazeta) e aos programas de televisão mais voltados para a terceira idade.
2.1. Livres para produzir
“O conhecimento deve ser livre“. Esta é uma das maiores defesas do grupo que segue a filosofia do software livre. Talvez falar em software livre não traga nada à memória de alguns leitores, porém nomes como Linux, Blender, ou Firefox talvez signifiquem algo. Se não significam nada para os leitores, devem passar a significar a partir de hoje, e, com certeza, significam muito para as grandes produtoras de conteúdo digital de Hollywood, como Disney/Pixar, DreamWorks Animation, Sony, ILM e outras, que utilizam Linux como sistema operacional. Não só o Linux, como também os outros softwares anteriormente citados, são exemplos de softwares livres, conceito que de forma simplificada se refere à liberdade dos usuários executarem, copiarem, distribuírem, estudarem, modificarem e aperfeiçoarem o software (pois estes têm seu código aberto, são Open-Source). Como parte da filosofia deste grupo podemos ver exemplos de conhecimento colaborativo, que já é uma realidade na internet, com wikis e fóruns nos quais qualquer um pode contribuir para a criação de conteúdo que estará disponível a todos de forma gratuita e aberta. Porém, mesmo sendo a filosofia do conhecimento aberta, algo importante para a formação de muitíssimos autodidatas espalhados por todo o globo terrestre, o ponto no qual pretendo focar é o fato de os softwares livres serem distribuídos gratuitamente. O fator custo sempre limitou o uso de ferramentas e uma ferramenta profissional de custo zero evoluciona o segmento de produção. Para exemplificar como o fato de um software gratuito pode modificar a produção, veja o exemplo a seguir: Um usuário que queira aprender um software de modelagem e animação 3D em sua casa poderia comprar o software “Autodesk 3DS Max 2009”, que custa na época da redação deste artigo aproximados 6 mil reais fora o sistema operacional, no caso o Windows Vista (entre R$200 e R$500,00), além de um computador que suporte trabalhar com estes softwares (a partir de R$1500,00). Obviamente uma cifra de aproximados 8 mil reais está fora do padrão de investimento de boa parte da população brasileira e, se dependesse da compra de software, teríamos poucos ou nenhum produto animado tridimensionalmente na televisão brasileira ou no cinema nacional. Por outro lado, um software como o Blender pode ser baixado na internet gratuitamente com um tamanho aproximado de 10Mb, o que permite que o download seja feito até mesmo com uma conexão dial-up, ainda uma porção significativa do acesso à internet em nosso país. Atualmente no Brasil temos uma comunidade de milhares de usuários de Blender, quase todos autodidatas, que se comunicam pela internet. Com a filosofia do software livre, muitos programas alternativos podem ser encontrados gratuitamente na internet, compartilhados com amigos e até mesmo modificados se preciso, permitindo que cada vez mais aumente o número de usuários caseiros de produtos que antes eram exclusivamente voltados para o mercado profissional. Sem sombra de dúvida, o movimento do software livre democratizou o acesso aos softwares profissionais, porém antes mesmo de existirem softwares livres específicos para o setor audiovisual, outro fenômeno também permitiu que os softwares profissionais chegassem ao público amador: a pirataria.
2.2. Piratas que surfam, mas que não são do caribe.
Embora seja um termo controverso (e muitas vezes questionado dentro da comunidade Open-Source) a pirataria é uma das formas de democratização dos meios de produção de conteúdo digital, pois permite que um software caríssimo (como os citados anteriormente) possa chegar de forma gratuita ou a baixo custo ao usuário final, que não paga à empresa criadora do software nenhum dinheiro pela sua utilização e mesmo assim usufrui deste, independente de suas implicações legais, morais ou éticas. A pirataria sempre foi um fenômeno cultural existente nas comunidades de usuários de computador, porém esta ganhou novas dimensões com o advento da internet e, principalmente, com o surgimento dos softwares peer-to-peer (P2P), que permitem que os usuários se conectem diretamente às máquinas dos outros para baixar arquivos. Desta forma, seja pelo oferecimento de softwares gratuitos ou pela pirataria, muitos usuários conseguem ter acesso a ferramentas poderosíssimas de produção, em vários casos as mesmas que estão sendo utilizadas no caríssimo cinema hollywoodiano.
Com as ferramentas corretas e bom senso artístico pode-se produzir um filme épico clássico, com batalhas de gigantescas multidões diretamente do seu quarto. O exemplo a seguir mostra como uma pessoa sozinha com alguns softwares facilmente encontrados consegue produzir material de altíssima qualidade em pouquíssimo tempo.
2.3. Sozinho contra um exército
Gareth Edwards, o diretor do longa-metragem Attila the Hun, conseguiu um feito inédito[2]. Além de dirigir o filme, decidiu realizar sozinho e diretamente de seu quarto todas as 250 cenas de efeitos visuais em alta definição existentes na obra. Usando basicamente After Effectsä e Photoshopä, Edwards conseguiu produzir uma média de duas cenas de efeito por dia, completando a tarefa de produzir sozinho todos os efeitos visuais de um filme no prazo de 4 meses. O filme foi ao ar na BBC, Discovery Channel e History Channel, se misturando facilmente a diversos outros filmes da programação que tiveram na equipe de produção de efeitos visuais centenas ou até mesmo milhares de pessoas, contando com orçamentos gigantescos. O que antes era um sonho, hoje se tornou realidade. Estamos presenciando uma revolução. A democratização dos meios de produção audiovisual está acontecendo. Com câmeras de alta definição se tornando acessíveis (temos hoje boas filmadoras de alta definição na faixa dos US$700,00) e as ferramentas de pós-produção e efeitos disponíveis, qualquer um com talento pode produzir um material de altíssima qualidade, se tornando difícil de distinguir estas obras das grandiosas produções. Existem diversos exemplos semelhantes ao de Gareth Edwards, como no caso do vídeo “Bloody Omaha“, uma produção de três amigos que recriaram uma cena de batalha de uma guerra, vídeo que pode ser encontrado no YouTube. Obviamente, para a produção de um material de qualidade, o dinheiro ainda é necessário, mas em escalas cada vez menores.
Por conta desta democratização das ferramentas de produção audiovisual, é crescente o número de produtores ingressando no mercado Indie (neste contexto é o mercado de filmes produzidos independentemente dos estúdios). Cada vez mais temos pessoas ingressando nesse mercado buscando realizar produções de qualidade. O problema é que boa parte delas acabam não conseguindo produzir algo com qualidade, e mesmo os filmes que de fato conseguem acabam não conseguindo resposta financeira, pois geralmente os temas abordados não interessam a um público muito grande. Como conseqüência, temos a seguinte estatística apresentada por Mark Gill, no LA Film Financing Conference: “Dos 5 mil filmes enviados ao Sundance a cada ano – no geral com orçamento abaixo dos US$10 milhões – talvez 100 destes tenham conseguido um lançamento em cinemas nos EUA e destes 100 apenas 10 ou 5 conseguem fazer dinheiro, o que é um décimo de 1%. Colocando de outra forma, se você pretende fazer um filme orçado abaixo dos US$10 milhões, você tem uma chance de 99,9% de falhar“. Qual seria o motivo de tamanha decepção no mercado independente nos EUA e de certa forma em todo o mundo? Seria a qualidade da produção?
Fazer cinema é tanto arte como negócio. Com esta remodelagem dos sistemas de produção torna-se obrigatório a definição de um público alvo numeroso para que um filme seja produzido almejando lucro. Em outras palavras, não existe mais como um cineasta se sustentar tentando “se expressar”. A tecnologia permitiu a entrada de diversas pessoas que jamais pensaram em fazer parte deste mercado. Existem muito mais pessoas competindo para produzir filme e o tamanho da audiência que tem comprado estes filmes tem permanecido estável ou até mesmo diminuído. “Diminuindo? Você ficou louco?” Pergunta você… Boa parte da resposta a esta questão é dada ao entender como as mídias digitais têm revolucionado a forma com que o público consome um conteúdo audiovisual.
3. A recepção em uma sociedade submersa em bits.
Talvez por estar envolvido com o ambiente do cinema você ainda não tenha notado, mas as pessoas não têm ido mais ao cinema como costumavam, e pelo contrário, têm dedicado mais tempo à internet (em casa, nas lan-houses, nos pontos de acesso público etc.), videogames, jogos de computador e outras atividades que vêm a competir indiretamente com o cinema. Em 2007, pela primeira vez na história do Brasil, foram vendidos mais computadores do que televisores. O cenário audiovisual tem mudado, e, mesmo que as pessoas dediquem algum tempo para assistir a filmes, o cinema tem ocupado cada vez menos espaço em suas vidas. Porém, dizer que o cinema tem tido cada vez menos espaço no mercado não quer dizer que os filmes estão em baixa. As pessoas têm assistido mais filmes, porém o mercado não tem crescido e pode estar diminuindo. Se a população não tem ido ao cinema, como então tem aumentado o consumo de filmes? Segundo pesquisa da Nielsen EDI[3], 52% da população brasileira sequer cogita ir ao cinema, porém o consumo caseiro de material cinematográfico tem aumentado, seja de forma oficial ou não-oficial. Oficial, quando tratamos da compra e aluguel de DVDs e, mais recentemente, de Blu-Ray Discs (substituto já eleito e empossado dos DVDs) e aluguel ou compra de filmes on-line. Por outro lado, não oficial quando falamos de filmes comprados nos “camelôs”, copiados dos amigos e baixados na internet.
Atualmente o usuário mantém uma videoteca completa com seus filmes prediletos e muitos outros que ele sequer assistiu e nem pretende assistir. O ato de baixar filmes na internet se tornou tão fácil que não se baixa mais somente o que se deseja assistir. O usuário com banda larga baixa diversos filmes, às vezes várias versões do mesmo filme para escolher qual quer assistir, com qual qualidade e na língua preferida. Graças ao compartilhamento de filmes pela internet, os usuários podem usufruir dos grandes lançamentos em alta definição diretamente nos seus computadores, mesmo que o material não tenha sido lançado nacionalmente. É a total acessibilidade aos materiais produzidos em todo o mundo, sem que os produtores recebam qualquer retorno pelo material produzido.
4. O que fazer então?
Do ponto de vista dos cineastas tradicionais, o grande desafio do cinema atual é conseguir retirar o público das suas casas para que estes gastem dinheiro com um entretenimento de qualidade, porém esta não é a questão. O usuário vai sair cada vez menos de casa para assistir a filmes e isso não vai mudar em um curto prazo. O cinema norte-americano está apostando todas as suas fichas no cinema estereoscópico como última isca para trazer o consumidor da pequena para a grande sala, porém os primeiros resultados não são nada animadores. Toda a estrutura tradicional do cinema precisa ser revista. Não apenas a estrutura de produção precisa migrar para o ambiente digital, mas principalmente a estrutura de distribuição, utilizando as novas tecnologias e encontrando nichos de mercado que os usuários possam trocar o entretenimento gratuito, que possui na maioria dos casos qualidade suficiente para o cliente, por um entretenimento pago com maior qualidade e outras vantagens que o entretenimento gratuito não ofereça (os jogos eletrônicos, por exemplo, encontraram uma solução para este problema: os games on-line que só dão serviço completo aos usuários que são assinantes, restringindo o acesso dos não-pagantes). As locadoras já têm começado a desaparecer, porém os sistemas de distribuição on-line ainda não estão totalmente prontos. A transição está acontecendo e a solução não está na instalação de cinemas digitais ou da troca dos DVDs por mídias com filmes em alta definição – até porque muitos já apontam para a diminuição do uso de mídias físicas. O cinema continuará existindo, porém o grande desafio é alcançar o público dentro de sua própria casa, levando a ele o material que ele deseja e não o material que o produtor deseja que seja consumido.
5. Conclusão
A internet e as mídias digitais têm mudado drasticamente todo o cenário do mercado audiovisual, desde a produção democratizada e acessível a todos em qualquer lugar e a qualquer custo, até a recepção diferenciada e personalizada de cada usuário diretamente na sua casa. Para acompanhar esta revolução, devemos compreender o que está acontecendo e aprofundar os conhecimentos nas mídias digitais para que estas não nos superem, mas sim que nós nos superemos utilizando-as. A revolução já começou. Você está preparado?
[1] O livro “Surpreendente!: a televisão e os videogames nos tornam mais inteligentes” de Steven Johnson aborda essa questão, mostrando como televisão, videogames e internet têm nos obrigado a pensar de forma diferenciada e cada vez mais intensa.
[2] No artigo “One Man Against Attila the Hun” de 2008, podemos acompanhar a matéria completa sobre a produção de Attila the Hun, com direito a fotos e vídeos do making-of. Disponível em: <http://www.fxguide.com/article463.html>. Acessado em 10 set. 2008.
[3] Divulgado em nota do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Disponível em : <http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=278868>. Acesso em 10 set. 2008.