Programa Mix Brasil no 19º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo

O Programa Mix Brasil foi um dos destaques do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. A seleção de filmes foi divida em três grupos, que talvez não fossem necessários. Acredito que outras divisões seriam mais interessantes das que foram propostas, como as que criei para escrever este ensaio : Universo Infantil, Confusões Adolescentes e Adultos em Conflito. A temática do programa, já conhecida, é o universo GLS, com histórias comuns e que, transportadas para os filmes, tornam-se cômicas, dramáticas e sinceras.

A discussão da necessidade de existir um programa exclusivo para filmes da temática homossexual já está gasta e o real interesse é a exibição desses filmes – não importando onde e como – para uma população que não receberia esses filmes em suas televisões públicas ou nos cinemas comerciais.

A exibição desta mostra foi bem dividida – acredito que, neste programa, os organizadores foram felizes, dispondo de maneira democrática nos cinemas do circuito do Festival. O interessante aqui é mesmo o público. Em algumas sessões, foi possível observar que alguns espectadores saíram no início dos filmes, indignados. Esse é um dos pontos mais interessantes que notei, já que quando estava assistindo alguns filmes no Cine Olido (no centro velho de São Paulo, a uma quadra de onde certa vez Caetano cantou que alguma coisa acontecia com seu coração quando cruzava a Ipiranga e a avenida São João) vi alguns homens reclamando dos filmes. Propus-me a conversar com alguns deles, e no final, criou-se uma pequena roda de discussão, tanto de critica negativa dos filmes quanto positivas – eu os defendia.

Em nenhum momento existiram ofensas (alguns radicalismos talvez), mas para quem conhece o Centro Velho da Capital sabe muito bem os preconceitos que os homossexuais sofrem e que xingamentos contra eles são tão comuns como crianças pedindo dinheiro nas ruas. Eles alegavam que não estava certo mostrar tantas “bichas” (que mais tarde pedi que fosse trocado por “gays”) no cinema em que, tradicionalmente, são exibidos filmes de terror. Eu os indaguei se eles conheciam gays e lésbicas, se tinham pessoas na família que eram e eles ficaram um tanto quietos, sem saber o que me dizer sobre. Até que um dos opositores aos filmes do Mix começou a rir, dizendo que vez ou outra conversava com um vizinho gay e que ele era extremamente divertido. Partindo disso, conversei com eles sobre as igualdades e os velhos discursos que recebi ao longo de anos, sobre essa temática até hoje, polêmica. Depois disso, a conversa fluiu naturalmente, meus novos colegas (e experientes críticos) se comprometeram a não sair mais das sessões xingando os filmes e ,caso não gostassem dos filmes, sairiam da sessão quietos.

Dentro dessa mesma discussão, considero que foi extremamente válido ao Festival e a Suzy Capó, organizadora do Programa Mix Brasil, exibir os filmes na mostra desse ano, notando-se uma clara suavizada nas cenas dos filmes. As obras eram mais família, com temáticas amenas e sem melodramas. Assim como acredito que o próprio Festival Mix Brasil e seu conseqüente programa dentro do Festival Internacional de Curtas amadureceram, os filmes também seguiram essa maturidade. Estão mais maduros, discutindo temáticas cotidianas, sendo que algumas poderiam ser gays ou não.

Os filmes eram todos internacionais, com exceção ao brasileiro La Dolorosa. Foi interessante observar que a maioria dos filmes tinha linguagem universal, mostrando que talvez fossem feitos pensados justamente nessa carreira internacional que um filme pode alcançar. Provavelmente, a platéia brasileira não viu, assim como eu, muitas diferenças nas culturas retratadas nos filmes, já que somos formados por esse mix de nacionalidades. Aquele irmão grosseiro poderia ser o nosso irmão, aquela amiga doida e ciumenta poderia ser a nossa, aqueles amigos que vão morar juntos poderiam ser nossos amigos e aquele menininho que vai para a escola com um vestido da irmã, poderia, por que não, ser um de nós.

Uma questão relevante foi a exibição do premiado Café com Leite, que ficou fora da seleção dos filmes do programa e dentro da Mostra Brasil. O filme ficou entre os 10 curtas preferidos dos espectadores com grande aceitação diante o público e a sua independência diante um tema o eleva a um patamar de poucos curtas do Festival: o de não ser rotulado como certo tipo de filme ou destinado para um público específico.

Sobre a minha divisão particular, a do Universo Infantil, temos : Vestido Novo, Sem Biquini e 13 anos.

Um dos filmes mais sensacionais que o programa apresentou foi, sem dúvida, o espanhol Vestido Nuevo, de Sergi Pérez. O filme narra o dia de um garotinho de oito anos, que vai para a escola com um vestido de sua irmã. Inicialmente, as crianças teriam de ir fantasiadas com o que quisessem se travestir, mas a professora teve a brilhante idéia que todos fossem de dálmatas. Mario preferiu ir vestido de menina. O filme é extremamente sensível, pois o menino não entende o motivo de ter virado a escola de cabeça para baixo com seu ato inocente. A professora se mostra extremamente despreparada, levando o menino para a sala da diretora, como se o que ele estivesse fazendo fosse algo errado. O pai da criança é chamado e o ponto alto é o encontro do pai com seu filho vestido de menina. Brilhante.

Do filme, podemos considerar muitas coisas, dentre elas o despreparo de nossos pedagogos (sim, já que como explicitei antes, acredito que todos os filmes possam ser entendidos claramente como brasileiros) com questões delicadas como esta. A professora chama a atenção do menino na frente dos outros alunos, como se o que ele estivesse fazendo fosse pior do que o outro menino que o xinga de maricon, agredindo-o. A hipocrisia também é notada quando vemos, no banco de espera da tão temida sala da diretora, os dois extremos de comportamento: o menino sensível vestido de menina e o outro menino, mal-educado. O garoto grosseiro não nos desperta raiva já que é claramente estereotipado, como uma metáfora de muitos que conhecemos e sabemos que não tiveram a chance de entender (ou faltou-lhes alguém para ensinar) as diferenças.

Os olhares dos personagens são primazes. Do mesmo modo que nos irritamos com a professora despreparada, comovemo-nos com a tesoureira olhando para o garoto com um olhar um tanto maternal, talvez o único no curta. O ator que interpreta Mario também mostra grande desenvoltura, com seu olhar tímido e interpretação segura. E o pai, que protege (escondendo) o filho do mundo com seu paletó é tocante, já que com sua possível experiência de mundo, ele sabe que as pessoas não estão preparadas para aceitar um menino travestido de menina, e o fariam, talvez, sofrer. Mas uma análise mais profunda pode nos levar a pensar que o próprio menino, depois, sofrerá, já que com o ato do pai, pensará talvez, que o que fez é errado.Acredito que o filme tocou a grande maioria dos espectadores e só não foi um dos 10 preferidos do público pela distribuição das salas.
(veja aqui parte 1 e parte 2 do vídeo)

Vestido Nuevo

O canadense No Bikini também explora essa confusão da sexualidade infantil. A pequena Robin, de sete anos, vai para uma colônia de férias, mas não encontra de maneira alguma um biquíni que lhe caia bem, já que a parte de cima sempre fica larga. A mãe, então, escolhe um modelo que traz uma parte de cima estranha, e a parte de baixo parece um short. Quando a menina chega à colônia de férias, opta por não usar a parte de cima do biquíni e ,logo, é confundida com um menino.

A direção de Claudia Morgado é precisa e tocante, com cenas lindíssimas dentro da água. O filme faz uma metáfora sensacional com as mulheres que sempre reclamam de não poder tirar a camisa nos dias de calor. Robin se mostra livre, quando se joga na piscina como um menino, sem se preocupar com os “bons modos” esperados por meninas. O filme é divertido, sem estereotipar nada, mostrando, mais uma vez, a inocência das crianças. Não existe o mesmo sentimentalismo de Vestido Nuevo, mas a temática de se travestir, tão comum no meio GLS, está forte e,também como nele, novas personalidades surgem de simples trocas de roupas.

No Bikini

O que você faria se estivesse apaixonado pela irmã do seu melhor amigo? E roubasse o diário dela? E visse que ela escreveu várias declarações de amor para você em seu diário? E depois descobrisse que roubou o diário errado, e o diário que você roubou na verdade é do seu melhor amigo? Essa é a história de 13 anos, dirigido por Bohdana Smyrnova. O filme tem sacadas espertas e os atores mirins conseguem resolver bem situações cômicas, como quando o jovem Jonathan se vê no quarto do seu amigo, com pôsteres de Beyonce e Britney Spears, divas dos adolescentes gays de hoje. Ele olha tudo de uma forma cômica, sem ser preconceituoso, mostrando surpresa diante a descoberta do seu amigo ser gay e apaixonado por ele.

O curta ucraniano se resolve bem quando Jonathan não cria grandes conflitos com seu amigo, aceitando-o e muito melhor: respeitando-o. O curta fornece, de certa forma, um ótimo exemplo a ser seguido, quando o adolescente faz o que justamente se espera das pessoas: respeito. Não se espera que as pessoas aceitem os homossexuais, espera-se sim que elas os respeitem. E o filme foi claro e direto na questão.

13 ans

O ciclo “Confusões Adolescentes” mostrou a já conhecida crise adolescente, mergulhada ainda na temática homossexual. O alemão Herzhaft (Amor Proibido) nos mostra a paixão de um adolescente por seu treinador. O adolescente chega a seduzir o técnico, mas a mãe do jovem descobre (não aceitando, claro, que o filho seja gay e  acusando o treinador de influenciar o jovem), e têm-se a velha discussão Lolita, de Vladimir Nabokov. O filme não inova já que mostra algo que já foi feito em outras obras, como o famoso seriado de televisão Queer as folk, onde o jovem Justin seduzia o cafajeste Brian e sua mãe, ao descobrir, fazia de tudo para acabar com o relacionamento.

O filme mantém ritmo calmo, sem grandes descobertas e interpretações pouco brilhantes, mas sintetiza obras que talvez o público dos cinemas em que foi exibido não conhecesse, despertando uma discussão por vezes necessária.


HerzHaft

O norueguês Kompisar define bem a amizade entre um jovem heterossexual e um jovem homossexual. Os dois se mudam para um apartamento, dividindo quartos. Hampus parece não ter preconceito com o amigo gay, já que faz brincadeiras sobre sexualidade, vai a boates gays com o amigo e não se importa em andar nu pela casa. Já Bjorn mostra-se sempre tímido e quieto, prefere ficar arrumando os móveis em casa do que ir para clubes GLS. O conflito acontece quando, em certo momento, o baladeiro Hampus chega bêbado (ou estaria sóbrio?) em casa e vai direto ao quarto do amigo, que ficou até tarde arrumando o quarto. O jovem hétero deita na cama, junto com o amigo, e Bjorn, confuso no início, deixa-se levar pelo momento até que começa a masturbar o amigo. Hampus aceita os toques do amigo, até que ejacula e sai do quarto.

Kompisar

O clima fica extremamente pesado entre os dois, já que Bjorn acaba descobrindo sua paixão pelo amigo e Hampus se nega a aceitar o acontecido na noite anterior. Ficção? Obviamente não, já que muitos conhecem casos parecidos. O filme retrata uma situação constrangedora de maneira sutil, sem explicitar corpos nus ou palavrões, criando assim uma obra de fácil absorção e difícil conclusão. Tecnicamente, o filme apresenta fotografia opaca, com momentos de sombra exagerada e outros de luz estourada. Provavelmente não existe uma fórmula para se resolver esse tipo de fato, e como o próprio Hampus faz – deixando Bjorn sozinho no apartamento, abandonando o amigo e o conflito – ficamos pensando qual seria a melhor maneira de resolver uma situação dessas, se é que existe uma resolução.

Kompisar

O conflitante Um après-midi d’été, narra em 2 longos planos-seqüência a paixão da sonhadora e submissa Jane por sua amiga Tracy, que namora Vincent. O único road movie do programa é todo em preto e branco, com frases de humor negro e atuações irônicas. Tracy e Vincent se divertem no banco da frente do carro, rindo, bebendo, fazendo coisas que dois namorados costumam fazer enquanto Jane, no banco de trás, mostra-se chata e implicante com os dois. Até que Jane pede para que Vincent pare o carro, pois ela quer ir ao banheiro. Num misto de alucinação e realidade, Jane volta para o carro e mata Vincent. Ela se declara à amiga, que, comicamente, sai correndo pela estrada, mas Jane também a mata.

O filme é engraçado e tenso, bem fotografado e com movimentos de câmera difíceis de encontrar em curtas metragens. A temática de amigo que se apaixona por outro é mais uma vez mostrada no programa, mas no filme de Wi Ding Ho as conseqüências são mórbidas. Ou não, já que no final temos uma ação cômica que dá um tom mais leve ao road de Taiwan.

Un  après-midi d’éte

E o terceiro programa, Adultos em Conflito, é sem dúvidas, o mais cômico de todos. O finlandês Kaveri (Amigão) conta a história de Pera, homem de uns 50 anos, casado, que sente a curiosidade de ser penetrado por um homem. Seu amigo aceita e Pera ajoelha-se, na cozinha de sua casa, para ser penetrado. Mas, a mulher de Pera chega bem no momento, e os dois precisam disfarçar rapidamente o ato. O filme gira em torno dessa curiosidade do cinquentão, que, em cenas divertidíssimas, precisa disfarçar para a mulher seu suor e nervosismo.

O curta-metragem de Teemu Nikki tem pitadas do besteirol American Pie, mas as interpretações, novamente, salvam o filme de uma possível bobagem. As cenas são explícitas – se não fosse a direção leve, pareceria constrangedora.

Kaveri

Outro excelente curta é o sueco Jag ar Bog (Eu sou gay), que nos diverte com o inseguro Alex, que em um almoço de família, tipicamente grego, decide contar a família que é gay. O curta-metragem de Nicolas Kolovos lembra muito o engraçado Casamento Grego, e Alex nos diverte com as possíveis reações que espera que sua família tenha ao dizer sua orientação sexual.

Os atores também estão sensacionais, com destaque para o pai grego, que por vezes nos lembra Pera, de Kaveri. Mas, fica claro que esta associação só é feita pela influência dos filmes próximos no programa. Mais uma vez é um filme que carrega poucos elementos para se discutir posteriormente (além do já complicado e comum “momento de se assumir”), mas que, durante a exibição, é impossível deixar de prestar atenção nas ações dos personagens.

Jag ar bog

E, para encerrar o ciclo, temos o brasileiro La Dolorosa, de Odilon Rocha. O filme é estrelado pela global Débora Falabella, fazendo o papel de uma noiva chata, que recebe em seu quarto o padrinho do seu casamento. Mostra-se então, através de diálogos chochos, que ela teve um caso com o padrinho, mas agora o rejeita. O padrinho sai do quarto da noiva e vai até o gramado, onde encontra o noivo. Temos aí a descoberta de que o noivo também é apaixonado pelo padrinho. E é só.

O filme poderia ter explorado muitas coisas, como a bissexualidade do padrinho, a homossexualidade no armário do noivo, mas fica ameno, superficial. Injustamente é o único filme brasileiro no programa. A fotografia é pobre e estranha, a direção de arte é clássica e quadrada e os atores estão péssimos. Nem a própria Débora surpreende. Triste notar que fomos mal representados no programa Mix Brasil.

La Dolorosa

O Programa Mix Brasil, mais uma vez, mostrou que a diversidade está aí, nas ruas e que a convivência respeitosa é o melhor caminho para que todos se relacionem da melhor maneira possível. Acredito que todos os filmes foram válidos, até os não comentados aqui, e espero que a temática de se divertir (com consciência) que o Festival Mix Brasil defende se mantenha ao longo dos anos, sem que a programação fique clichê ou ultrapassada.

Jun Yassuda Júnior é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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