Mostra Brasil do 19° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo

“Brasil” Díspare.

Díspare. Esta é, indubitavelmente, a palavra que mais se aproxima na tentativa de conceituação de uma mostra como a Mostra Brasil do 19º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. “Espírito” este, indefinível por excelência, que, aliás, parece rondar fantasmagoricamente o Festival como um todo.

A começar pela digamos assim “regionalidade” das obras participantes. Os 55 filmes que compõe a Mostra Brasil representam nove díspares realidades sócio-econômicas e culturais brasileiras: do promissor e em expansão pólo cinematográfico sulista, representado em sua totalidade pelos três estados que o compõe – com destaque especial ao Rio Grande do Sul – ao tradicionalíssimo cinema Pernambucano, passando pela “novata” região central (Goiás e Distrito Federal) e terminando na sempre destacada e dominante produção do eixo Rio – São Paulo, que juntas somam 2/3 do número total.

Temos filmes em pré-estréia como “Eletrotorpe”, de Yuri Amaral e Nalú Beco, da ECA-USP; “O Dia em Que Não Matei Bertrand” (Luiz Carlos Oliveira Júnior e Ives Rosenfeld); “Menino-Aranha” (Mariana Lacerda) e de Ian SBF “15 Minutos de Tolerância”. Temos, também, reconhecidos nomes do cinema nacional como Jorge Furtado, que volta depois de um tempo afastado ao formato curto em “Rummikub”, e Daniel Rezende, montador de “Cidade de Deus”, em sua “badalada” estréia na direção de “Blackout”, dentre tantos outros. Temos anônimos: aqueles que continuaram a sê-lo e outros que certamente começaram a galgar sua árdua caminhada rumo à condição de reconhecimento, senão do grande público ao menos por parte de cineastas, cinéfilos de plantão e dos chamados “ratos de festival”. Temos, ainda, filmes premiados e reconhecidos internacionalmente nos principais Festivais do mundo: Cannes, Clermont-Ferrand, Berlim etc., vide, por exemplos, “Café com Leite” (Daniel Ribeiro), “Areia”, de Caetano Gottardo, “Convite para jantar com o camarada Stálin” (Ricardo Alves Júnior) e “O som e o resto”, de André Lavaquial.

Notamos ainda, a disparidade de gêneros. Aliás, mais exatamente a visível “miscigenação” destes. Em pleno século XXI, em que as formas de produção-distribuição-recepção das obras audiovisuais estão cada vez mais indissociáveis e em constantes transformações devido, principalmente, a interatividade e a convergência midiática advindas da chamada “Era Digital e seus Desdobramentos Estéticos“, é inaceitável uma classificação simplista, para não dizer de fato pobre, e estratificada como: “Os animadores” (Allan Sieber) é animação e “Tibira é gay”, de Emilio Gallo, um documentário indígena; já “Les terra’s di nadie” (César Meneghetti) pertence ao gênero experimental e “Domingo de páscoa”, sob a direção de Pedro Amorim, é uma ficção. E o que fazemos com filmes como o de Cesar Cabral, “Dossiê Rê Bordosa”? Criamos uma categoria mista denominada “animadoc”? Seria “Areia” e “Dez elefantes” (Eva Randolph) uma espécie de “experimentaficção”? E “Emprego temporário”, de Leonardo Esteves, um experimental com elementos “docficcionais”? Felizmente, classificação esta que, segundo anúncio ainda informal, será abolida do Festival a partir do ano que vem. Um verdadeiro grito de liberdade: de expressão, interpretação, recepção, subjetividade…

Entretanto, não há nada que sensivelmente percebamos mais díspare que a linguagem e a temática desses curtas-metragens. E são justamente esses os pontos em que reside meu maior fascínio. Para tal, sendo, a meu ver, desnecessária uma análise específica e mais aprofundada de todos os filmes que assisti dessa Mostra – aviso aos navegantes, como eu, de primeira viagem: algumas obras, fato a minoria, não merecem sequer uma simples citação, tamanha a indiferença ou ojeriza causada seja pela péssima qualidade técnica ou narrativa, quando não as duas juntas, que sentimos ao vê-las – vou me valer de algumas obras para exemplificar minhas principais considerações, levando em conta, inclusive, “Os 10 preferidos do público – Programas Brasileiros” (lembrando que apesar de não competitivo, o Festival realiza um levantamento em todas as sessões para apurar as preferências do público), que em ordem alfabética são: “Animadores”; “Blackout”; “Café com Leite”; “Dia de Visita” (André Luís da Cunha); “Dossiê Rê Bordosa”; “Espalhadas pelo ar” (Vera Egito); “O Som e o Resto”; “Os filmes que não fiz” (Gilberto Scarpa); “Os sapatos de Aristeu” (René Guerra) e “Prîara Jõ. Depois do ovo, a guerra” (Komoi Paraná).

Sob uma mesma “classificação”, “dentro” do mesmo gênero documentário, duas obras díspares: o premiado “Dia de visita” e “Hiato:”, de Vladimir Seixas. O primeiro, que recebeu ainda o prêmio “Espaço Unibanco de Cinema”, peca em diversos pontos, tanto narrativos quanto estéticos, em especial por sua opção pela cansativa voz off ao longo de seus longos 25 minutos – aí a meu ver o pecado imperdoável da obra: a infeliz extensão máxima de uma história, sem dúvida, bela e comovente, de temática ímpar como a realidade carcerária brasileira sob o olhar único de uma mãe em um dia de visita no presídio, mas que se esgota completamente em sua repetição, parecendo até mesmo forçada ao final. Realmente um desperdício. Um daqueles filmes que entristece a nós (futuros) realizadores por percebermos o quão realmente poderia ter ido além de mais um documentário “correto” – a meu ver a pior adjetivação possível a esse gênero em especial -, tornando-se um potencial elemento de discussão e reflexão cinematográfico-social. Já em “Hiato:”, temos uma construção claramente mais rica e interessante, seja pela opção do “mosaico constitutivo; a temátíca em si original, e inusitada diga-se de passagem; o escancaramento da existência de uma evidente barreira separatista entre a classe média alta e os mais humildes, e, principalmente, a total adequação – sintonia aliás – entre a estética e a narrativa”.

Dia de Visita, de André Luís da Cunha
"Dia de Visita", de André Luís da Cunha

Outras duas obras contempladas pelo júri popular foram “Animadores” e “Dossiê Rê Bordosa”, estas inseridas no campo da animação – embora sem qualquer indício de exclusividade, fato facilmente observável na nítida estrutura documental do segundo filme, que não poupa nem mesmo os tão característicos cortes rápidos durante a fala dos depoentes nesse gênero – mas novamente nos deparamos com linguagens, inclusive técnicas e opções estéticas, visivelmente díspares. No curta de Sieber, nos deparamos de cara com o elemento essencial do gênero: o traço, e neste caso em especial, aquele capaz de transmitir a mensagem – cômica para ser bem modesto – ainda que inanimado. Do início ao fim gargalhamos – e me incluo na afoita platéia da sessão das 22hs que lotava o CINESESC na terça-feira dia 26 – com o dia infernal daquele animador de festas infantis, naqueles dias em que todos os indícios de falta de sorte se concretizam e tudo se consuma de forma errônea. E é assim, com impressionante rapidez e alegria – na maioria das vezes tão rara em meio a tantos “filmes cabeça”‘, de temática mais séria, pesada, ou que ao menos se julgam assim – que nos deliciamos ao decorrer de um filme sagaz e muito bem realizado, em que a construção gráfica dos personagens é extremamente expressiva (vide os “estressadinhos” chefes).

Já na obra que explora o universo lúdico do cartunista Angeli nosso deleite é acompanhado de total espanto: a cada corte – sim, a cada corte! – pessoas boquiabertas com o grau de criatividade temática (a idéia surreal de uma investigação via depoentes sobre os motivos que poderiam ter levado o renomado cartunista a assassinar uma de suas personagens mais populares, Rê Bordosa), a excelência técnica (documentário todo em stop motion, com a animação dos bonecos feita minuciosamente pelo próprio diretor, aliado as técnicas avançadas de rotoscopia, sendo, a semelhança dos bonecos com os personagens “reais” e a sincronicidade das falas com os movimentos da boca e expressões faciais assustadoras por tamanha perfeição; a hibridização – onde um acaba e o outro termina – lindíssima de dois gêneros, animação e documentário, aparentemente tão díspares. Trata-se, desse modo, o ganhador dos prêmios “Espaço Unibanco de Cinema” e “Ctav”, de verdadeira lágrima emocionada nos olhos de qualquer amante da sétima arte. Uma inspiração a qualquer realizador, até mesmo aos já mais “esclerosados”.

No âmbito da ficção, uma vez mais, destacaram-se obras das mais diversas propostas estético-narrativas. Nesse contexto, seria inimaginável, a bem da verdade totalmente injusto, não citar filmes como “Café com leite”, “O som e o Resto” e o grande consagrado – merecido – na noite de premiação: “Os filmes que não fiz”, que levou os prêmios “Aquisição Canal Brasil de Incentivo ao Curta-Metragem”, “Espaço Unibanco de Cinema” e a Menção Honrosa da ABD. Sensacionais sem sombra de dúvida. Além destes premiados, primorosos – no sentido mais amplo da palavra – os curtas “Dez Elefantes”, “Convite para jantar com o camarada Stálin”, “Booker Pittman” (Rodrigo Grota), e o incrível – desculpe certa tietagem, mas de fato faz jus – “Décimo Segundo”, de Leonardo Lacca. Entretanto, não serão nenhum desses os alvos de minhas considerações mais delongadas. Estas, pois, recairão totalmente sobre dois Trabalhos de Conclusão de Curso, daqueles capazes de inspirar e, diria mais, instigar a nós estudantes de Cinema/Audiovisual de todo o país, cada qual de um modo muito particular e subjetivo: “Espalhadas pelo Ar”, de Vera Egito da ECA-USP (2007) e “Os Sapatos de Aristeu”, de René Guerra da FAAP (2008).

De um lado, a alma feminina nua e crua em toda a sua complexidade. Do outro, o universo – leia-se destacadamente o preconceito – da transgeneridade, no caso em específico homossexual, em luto, vestido e tomado funebremente de preto e branco, e mais toda a paleta de cinzas imagináveis. Em ambos, só “estranheza”. Em ambos, “estranheza” narrativa. “Estranheza” aliada à estética em “Os Sapatos de Aristeu”.

Espalhadas pelo Ar, de Vera Egito
"Espalhadas pelo Ar", de Vera Egito

Vencedor do prêmio “Brazucah”, “Espalhadas pelo ar” trata de uma história simples, sem ser simplista. Aparentemente, duas mulheres separadas por suas díspares gerações. Em uma a descoberta do cigarro e a tentativa de afirmação de um grupo de garotas adolescentes. Na outra, o cigarro como vício não superado, ainda não vencido, e mais profundamente como sinônimo de liberdade pessoal da personagem ao final da trama – de modo algum se trata de uma apologia ao tabaco, apenas vejam e entenderão minha, talvez, polêmica consideração. Uma garota e uma castrada mulher na casa dos 30, em plena crise no casamento, sem liberdade de sentir e de agir por si mesma. Um cigarro compartilhado na escada do prédio: despidas, só de lingerie. Um poético encontro entre duas mulheres que mesmo em fases tão distintas da vida se aproximam enquanto seres humanos, ao menos naquele exato momento. Sem distinção de idade, sem preconceitos e preocupações. E se a fotografia e a montagem não “ousam”, e de fato não o fazem, é pela simples – será mesmo tão simples assim? – opção pela beleza e sensibilidade da obra através de sua simplicidade. Simplicidade esta, a meu ver, tão estranha ao universo feminino.

Verdadeira exceção ao dito popular “a primeira impressão é a que fica”, o filme de René Guerra quebra de maneira visceral o tratamento temático e, principalmente, imagético, presente em nosso – me incluo sem nenhuma restrição – imaginário e dispensado em tantas outras obras acerca do universo dos “travestis”. O mote da obra é Aristeu, um transexual de uma cidade pequena que não “aceito” decide ir embora. Entretanto, após sua morte seu corpo retorna a sua cidade natal para ser velado por seus familiares. Eis o aparente impasse: com que roupa enterrá-lo? Como Aristeu, de acordo com a vontade da família, ou como a pessoa que descobriu ser. Sob esse pano de fundo, vemos o tema intocado – ou pior, quando tocado feito de maneira errônea – do preconceito contra homossexuais ser abordado de maneira díspare da tradicional: não apelativa e/ou forçada, profunda, poética e, acima de tudo, inteligente – não no sentido racional, mas sensorialmente. E é desse modo, com extrema sensibilidade na escrita do roteiro e na condução minuciosa da direção – atuações de Berta Zemel e Denise Weinberg dignas de aplausos – que o filme se constrói como uma linda revelação durante o Festival, opinião essa compartilhada pelos críticos César Zamberlan, Rafael Barion e Eduardo Ribeiro, que concederam à obra o almejado prêmio Revelação. Como se não bastasse a invejável fotografia, com enquadramentos reveladores e iluminação impecável, vemos o filme “Vestido” como a ocasião pede: todo em preto e branco, opção estética adotada na tentativa de evitar um maniqueísmo que fugiria completamente à proposta, segundo palavras do próprio diretor após a sessão na Sala BNDES da Cinemateca na tarde do dia 25. Decisão mais que acertada, capaz de fazer do cortejo fúnebre dos travestis uma das mais impactantes seqüências de todo o Festival para mim. Bravo!

Por fim, os denominados experimentais. Filmes como “Les terra’s di nadie”, “A Cauda do Dinossauro”, de Francisco Garcia, e o imperdível “Emprego temporário” – mais uma daquelas obras dignas de saudação. Quanto a esses, sem considerações. O caráter exacerbado subjetivo, essa espécie de mergulho sensorial tão particular e único a cada um, me impede de fazê-las. Certo a disparidade, só que agora principalmente quanto à recepção. Ao menos algo de positivo no rótulo “experimental”: a idéia de uma experimentação, tanto do emissor (realizador) quanto do receptor (público pensante).

Iuri Leonardo dos Santos é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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