American Splendor: interlocução de linguagens e a HQ filmada

por Juliana Panini Silveira*

Introdução
O filme American Splendor (EUA, 2003) – que no Brasil leva o nome de Anti-Herói Americano – é baseado na vida e obra de Harvey Pekar, arquivista de um hospital em Cleveland que, vivendo segundo suas próprias palavras uma vida ordinária, conhece o artista de quadrinhos alternativos Robert Crumb e decide narrar sua vida em um gibi. Assim surge a série de HQs American Splendor e posteriormente Our Cancer Year, graphic novel na qual Pekar e sua esposa Joyce Brabner relatam a luta contra o câncer de Harvey.

Além da biografia do mal-humorado e pessimista Pekar – que se tornaria uma figura conhecida em todo o país –, o filme aborda também a própria construção dos quadrinhos, fazendo para isso uma criativa fusão de linguagens, mas também abordando a HQ em seu estado bruto, fazendo do cinema palco para expressão de outra arte que não sua própria.

Assim, elementos narrativos visuais próprios das HQs, como sarjeta e balões, aparecem em meio a narrativa cinematográfica, fazendo com que cinema e quadrinhos se misturem preservando na integridade suas características próprias, mas emprestando um ao outro um pouco do vigor de sua expressão.

O “esplendor ” nos quadrinhos

Temática

Colecionador de discos de vinil e gibis, Harvey Pekar decide transpor sua vida para os quadrinhos não somente como forma de desabafo de sua famigerada existência, mas também como resposta a toda uma filosofia de vida idealizada, romântica e conformista – relacionada ao American Way of Life – presente no comportamento, desejos e aspirações dos americanos e, é claro, em sua produção artística. Na contramão dos heróis dos quadrinhos – fortes, belos e íntegros, senhores de uma vida agitada, cheia de grandes aventuras –, as narrativas de American Splendor apresentam as nada emocionantes picuinhas do cotidiano do próprio Pekar, figura que destoa dos ideais de beleza, força e otimismo do grande cidadão da América.

Partindo da idéia de que as histórias em quadrinhos com bichos e super-heróis são muito limitadas por terem que agradar as crianças e no intuito de criar um trabalho underground e subversivo, que abrisse espaço para reflexões e discussões – políticas, por exemplo –, Pekar passa a escrever histórias com situações banais do seu dia-a-dia, como ajudar o vizinho a procurar as chaves do carro pelo quintal, parar no posto de gasolina e não conseguir abrir a porta do tanque ou enfrentar a fila do supermercador atrás de velhas judias que demoram uma eternidade no caixa, pontuando esses acontecimentos com seus pensamentos e reflexões pessimistas sobre a vida. Para Harvey, a vida comum é uma coisa muito complexa e merecia ser retratada sem idealizações. Com o apoio inicial do quadrinista Robert Crumb – posteriormente, faria parceria com outros artistas como Ed Piskor, Gary Dumm, Frank Stack, Dean Hapsiel, Kevin Brown, Joe Zabel – Pekar consegue lançar a primeira revista de American Splendor, para a surpresa de amigos e conhecidos que se viram como personagens das tramas e dos dramas do dia-a-dia comum.

Trecho de Befuddled (escrito por Harvey Pekar, arte de Ed Piskor, 2004)*


Características visuais e narrativas

Cada cartunista deixou sua marca no design de American Splendor. Apesar de distintas, todas as abordagens seguiram o mesmo padrão visual e lingüístico: tanto o personagem Pekar como os ambientes nos quais esse anti-herói vive suas “aventuras” foram retratados com riqueza de detalhes – em maior ou menor medida, com variações não apenas de cartunista para cartunista, mas dentro do trabalho de cada artista – todavia, sempre distanciados do formato cartum. Os traços – salvo raras exceções – são fortes e densos e os contrastes bastante explorados, características que ajudam a compor um quadro detalhado e por vezes demasiadamente carregado, compatível com o espírito e (mal) humor do personagem, além do seu irreverente pessimismo. A parceria de Robert Crumb com Pekar em American Splendor valida a colocação de Scott McCloud sobre o trabalho desse cartunista: “No mundo de R. Crumb, as curvas da inocência são traídas pelos traços neuróticos da vida adulta moderna e deixadas fora de lugar.**

Composição densa em Befuddled: contraste, traços fortes e minúcia de detalhes***

No que consiste o uso da sarjeta e diagramação, American Splendor não se mostra subversivo. Em sua forma, a HQ não compactua com o ideal pretendido por seu idealizador: a disposição dos quadros segue a norma clássica de três colunas na horizontal e duas na vertical, com algumas variações de quadros maiores que ocupam o espaço de dois ou quatro quadros. As sarjetas não são manipuladas no sentido de alcançar algum efeito dramático, mantendo-se no estilo quadrada ou retangular com todos os elementos – personagens e cenário – embutidos dentro dos limites do quadro. Entre os quadros, os espaços vagos que não se fazem visíveis no cinema nas HQs tomam visibilidade e função narrativa.

“Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada. Se a iconografia visual é o vocabulário das histórias em quadrinhos, a conclusão é a sua gramática*.”

O espaço entre as sarjetas exige participação do leitor em contribuir com sua própria imaginação para captar imagens distintas e transformá-las numa só idéia, auxiliando na condução da narrativa. As histórias de American Splendor também envolvem o leitor nessa tarefa. Tomando emprestado a categorização feita por McCloud – transições de quadro para quadro do tipo momento-para-momento, ação-para-ação, tema-para-tema, cena-para-cena, aspecto-para-aspecto e non-sequitur – podemos definir como técnica narrativa das HQs de Pekar basicamente as transições de ação-ação e de cena-cena. A própria narrativa estabelece a demanda de como gerenciar os quadros, tal como a necessidade ou não de discurso off explicativo de Pekar sobre os fatos narrados visualmente, sempre em preto e branco, sendo coloridas apenas as capas das revistas.


1ª publicação de American Splendor**

Pretendendo-se um retrato o mais fidedigno possível da realidade, a linguagem empregada nos diálogos e na narração do personagem não poderia ser outra que não a coloquial, recheada de gírias, expressões e abreviações das palavras tal como pronunciadas no dia-a-dia.

Note a palavra nothing, escrita tal como comumente pronunciada (nuthin)
e o discurso
off explicativo de Pekar*

Todas essas escolhas estéticas constituem em si ferramentas da linguagem própria das histórias em quadrinhos – própria no modo único com o qual lida e explora a imagem e suas infinitas opções de diagramação. Todos os elementos empregados em American Splendor são, na verdade, parte de uma extensa gama de possibilidades que essa linguagem oferece e, nesse sentido, as escolhas feitas por Pekar e os artistas com os quais trabalhou e trabalha são compatíveis com a proposta geral da HQ: um retrato de como a vida funciona por trás dos cartazes, das telas e dos palcos coloridos espalhados pela América, pregação maciça da suposta força de um povo, o falso esplendor de uma nação que pretende esconder por trás de uma grande máscara de vigor, integridade e heroísmo, figuras como Harvey, americano que nada se ajusta ou compactua aos ícones e símbolos do American Way of Life.

Se American Splendor conquistou os cidadãos americanos, não é porque Pekar lhes apresentou alguém – ele mesmo – de quem se possa rir, julgar e desprezar ou se entregar a uma triste identificação. Harvey Pekar personagem – e, pelo jeito, também a pessoa – pode até configurar o típico estereótipo do cara mal-humorado, pessimista, desmotivado, grosseiro e até mesmo repugnante, que empurra com a barriga uma vida estagnada e medíocre, mas ao contrário do que se possa pensar, Harvey não é somente isso, ou melhor, não se resume nisso. Por trás dessas características, a demonstração justamente do oposto de cada uma delas: é nas brechas que ele mesmo tenta esconder que Pekar se faz herói, para si mesmo e para os que seguem ao seu lado na luta que, segundo suas próprias palavras, nunca acaba. Longe de salvar o mundo das vilanias de homens maus e monstros – como muitos destemidos heróis – Pekar salva todo dia seu próprio mundo, de suas próprias vilanias e de outros, dando novos contornos, acrescentando nuances e tocando pra frente – sim, com um certo esplendor – sua talvez nem tanto famigerada existência.

O “esplendor” nas telonas: fusão e inserção dos elementos narrativos

Não é exclusivo do cinema ou das histórias em quadrinhos o extenso e polêmico debate em torno de quais são seus elementos narrativos próprios, de como se configura e se aplica sua linguagem e o grau de maleabilidade da mesma para ceder ou fazer uso de ferramentas de outra linguagem que não a sua. E foi justamente esse o grande desafio de American Splendor (EUA, 2003): lidar, dentro do discurso fílmico, com ferramentas de linguagem de outras expressões artísticas.

Afirmar que a relação entre a HQ e sua adaptação cinematográfica se resume basicamente na narrativa – ambas tratam da vida de Harvey Pekar – é negligenciar o que talvez seja o aspecto mais interessante do trabalho de Berman e Pulcini e seus desdobramentos, o que muito explica o vigor da adaptação: a compatibilidade de atitudes, de identidade entre o filme e os quadrinhos.

American Splendor, já em sua primeira cena, assume a presença da HQ ao fazer uso do comentário off na borda do quadro, que nos créditos iniciais tomarão realmente a forma de quadrinhos impressos. Logo como cartão de chegada, o espectador se depara com o pequeno Harvey Pekar ao lado de outras crianças, pedindo doces em uma casa devido à comemoração de Halloween. Pekar, dentre todos, se destaca justamente por não se destacar: diferentemente dos meninos, não está fantasiado de super-herói e se mostra bastante impaciente e irritado quando questionado porque não se vestia como os outros. Estabelecida a eficaz introdução do nosso anti-herói, surge Harvey já adulto – interpretado por Paul Giamatti – e os créditos iniciais em forma de quadrinhos – com sarjetas e letras típicas das HQs – transitando de um quadro para o outro como se a câmera encarasse um gibi e o estivesse lendo. Nesse esquema, aprisionado nas bordas surgem cenas de Pekar (Giamatti) caminhando pelas ruas de Cleveland e algumas das diferentes representações do personagem Harvey nas HQs. Dentre elas, o verdadeiro Harvey Pekar se apresenta e assume tudo aquilo como um filme.


Uso de narração off na borda do quadro pra comentar transições temporais**


Créditos iniciais do filme com apresentação dos diversos Harvey Pekar: câmera que lê HQ***

O que parecia ser somente um artifício de inserir elementos gráficos da HQ nos créditos iniciais do filme – recurso explorado por quase todas as adaptações cinematográficas de histórias em quadrinhos, sendo que grande parte delas fazem esse tipo de citação visual apenas nos créditos iniciais e finais, trazendo para o universo fílmico somente a história a ser contada* – se mostra, na verdade, apenas uma das construções dramáticas que permeiam o discurso cinematográfico.

O trabalho de levar a HQ para a narrativa fílmica em estado bruto não se detém ao início do filme ou apenas nas transições temporais. Ferramentas de linguagem dos quadrinhos são inseridas em diversos outros momentos da narrativa, desempenhando importante papel dramático nas cenas.

Após uma primeira tentativa frustrada de transpor para o papel acontecimentos da sua vida, Pekar se encontra – mal-humorado, pra variar – no supermercado. Terminando suas compras, encara as duas possibilidades de fila: uma com quatro pessoas e a outra com apenas uma velhinha. Perante os dois caminhos, Harvey começa a refletir qual seria a melhor opção. Seus pensamentos aparecem em forma de balões que são muito bem inseridos com o auxílio da trilha sonora dessa cena, composta por uma melodia instrumental de fundo e um sutil ruído no momento em que brotam os balões com as considerações de Pekar, que, por fim, escolhe a fila mais curta, escolha nada feliz, já que a velhinha judia começa a discutir sistematicamente sobre descontos na compra de copos de vidros, para o estresse de Harvey e da mocinha do caixa.

Novamente surgem os balões de pensamento, dessa vez com o próprio personagem Harvey Pekar desenhado dizendo que atrás daquela mulher Harvey ficaria a vida toda esperando, pois velhas judias passam horas discutindo por qualquer coisa e que, apesar de também judeu e miserável, ele ao menos tinha limites.


Inserção de balões de pensamento na cena, ao invés do uso de narração off para expressar o que se passa pela cabeça do personagem**.

Depois de três falas, o balão desaparece e o quadro no qual se encontra Giamatti, a velha judia, a caixa e o gerente encolhe, pois à esquerda dele surge um novo quadro, na verdade um quadrinho, novamente com o personagem Harvey Pekar. Este começa a interagir com Pekar – ainda na fila e cada vez mais bravo – ao passo que não somente reinicia o diálogo, mas tem desta vez a atenção de Pekar. O personagem da HQ questiona que tipo de existência é essa que Pekar leva, deixando-se consumir por aquele tipo de bobagem e, saindo do quadrinho – separado da cena por sarjeta –, surge ao lado de Pekar: o quadrinho some e ambos os Harvey se encontram dentro da cena do supermercado.

Presença da sarjeta separando a cena do quadrinho.
Coexistência e interação na cena do personagem iconográfico com o personagem humano*

O Harvey da HQ continua a questionar e cobrar uma atitude de Pekar, atitude esta que virá em seguida no filme: Pekar começa a escrever suas narrativas que, posteriormente, seriam desenhadas por Crumb. Futuramente, essa incrustação do personagem – que dialoga e transita livremente no quadro – aparecerá novamente na cena em que Joyce, prestes a conhecer Harvey – e sem nunca tê-lo visto pessoalmente antes –, fica imaginando com qual das representações das HQs mais se pareceria o verdadeiro Pekar.

As diferentes representações de Harvey: incrustação.**

E é nesse jogo de universos distintos que o próprio Harvey interpretado por Giamatti se encontrará na dimensão dos quadrinhos – que vai surgindo conforme caminha – na cena em que, após um desmaio, devido sua debilitada saúde perante o câncer que teve, Pekar tem o que poderia se explicar como um sonho ou devaneio, no qual fala sobre outros Harvey Pekar que encontrara na lista telefônica e se questiona de onde vinham essas pessoas e o que um nome significava.

Pekar (Giamatti) no universo dos quadrinhos: mundo de linhas e contornos***

A HQ é utilizada como storyboard para algumas cenas, exemplificando a transição da vida de Pekar – quadro do filme – para o gibi – quadrinho. A transição torna-se interessante justamente por ser explicitada – mais uma vez, têm-se os quadrinhos filmados – e estar condensada em uma seqüência, apesar de quadrinhos da HQ aparecerem em outros momentos no filme. Nesse sentido, American Splendor se esforça para seguir à risca a construção do quadro, principalmente em relação ao enquadramento, com uma ou outra modificação nos elementos gráficos.

Composição de quadro do filme baseada nos quadrinhos.*

Além da HQ filmada ou da interação de alguns de seus elementos na construção das cenas, American Splendor conta com inserções do próprio Pekar, instalado em um fundo branco – no estilo de um palco cenografado –, fazendo as gravações da narração off do filme, comentando a atuação dos atores, detalhes de sua vida, ora sozinho, ora na presença da esposa Joyce Brabner (interpretada por Hope Davis no filme) e do amigo nerd Toby Radloff (interpretado por Judah Friedlander no filme). O final da primeira narração off de Pekar – que apresenta o personagem Harvey (Giamatti) que anda pelas ruas, mostrando um pouco de Cleveland – é transparente quanto às intenções da adaptação e da própria HQ: “por isso, se você é o tipo de pessoa que procura por romance ou algum tipo de fantasia, adivinha? Pegou o filme errado”. É nessa fala que acontece a primeira transição filme-palco. A presença de Harvey instiga o espectador, tanto por sua figura, como por sua curiosa posição: ele é, tal como nós, um espectador do filme que narra sua vida – e também leitor dos acontecimentos de seu dia-a-dia – mas está em um palco, ambiente privilegiado de comunicação, e desfruta da possibilidade de comentar sobre tudo que transcorre no filme, para o filme e para nós. A idéia de cenografar esse ambiente faz dele mais uma vez personagem: de si mesmo, de uma série de HQs, de um filme e de um palco**. E é inserido nessa montagem teatral – que traz elementos da vida de Harvey, como discos de vinil, vitrolas, livros e gibis espalhados, bem ao sabor da bagunça e entulho de sua casa, organizados numa interessante disposição de cores – que ele se apresenta como pessoa e permite ao espectador entrar em contato com o Harvey Pekar que Giamatti, apesar da ótima interpretação, não poderia oferecer ao desejo curioso de olhar e dialogar com o referente, o modelo real que já fora apresentado em diferentes traços e fisionomias.

O verdadeiro Harvey Pekar: confissões “esplendorosas”***

Mas o que talvez seja mais estimulante é que o diálogo que Harvey trava com a pessoa que o “entrevista”, com sua esposa ou com o amigo revela possíveis incongruências na passagem da realidade para a ficção. Joyce, sentada ao lado do marido, critica o pessimismo de Pekar e sua opção de não levar os acontecimentos alegres que ambos vivem ou presenciam para as histórias de American Splendor. Harvey se defende: “sou apenas um cara melancólico. É a minha perspectiva: melancolia e ruína”, além de afirmar que, apesar de considerar justo o retrato que faz de Joyce em suas narrativas, deixa de abordar muita coisa que a esposa faz por razões óbvias: “não quero ser decapitado”.


Harvey e Joyce *


O mel e o fel do dia-a-dia do casal **

A montagem é eficiente no sentido de garantir a interlocução entre as construções de forma harmoniosa e criativa – como na cena em que Pekar (Giammatti) está na sessão de arquivos onde trabalha, conversando com o amigo Tobey (Firedlander) que lhe oferece um saco com gomas coloridas, quando uma voz grita “corta” e Giamatti aparece no palco ao lado de refletores e da câmera, como se gravasse a cena ali mesmo. Próximo a ele, o ator Judah Friedlander, o verdadeiro Pekar com o verdadeiro Tobey conversando sobre os sabores das gomas e sobre solidão – além de apostar no potencial dramático das intersecções, deixando a mostra seu constructo.

A partir da tentativa de reproduzir uma HQ de Herman Vogel publicada em 1887 na revista Quantin através das lentes do cinematógrafo foi estabelecida uma transposição de temática ou um esforço de adaptação, que teria sido o primeiro caso de adaptação dos quadrinhos da história do cinema. (…) Assim, na primeira adaptação das histórias em quadrinhos para o cinema, os irmãos Lumière conceberem um de seus maiores sucessos: o filme cômico L’arrouseur arrosé (FRA, 1895).**


O encontro de linguagens distintas configura sempre um desafio, independentemente do grau do amálgama. É curioso notar que os elementos utilizados pelo cinema e pelas histórias em quadrinhos para a construção de seus discursos são basicamente os mesmos. Em contrapartida, as diferenças do suporte e do emprego dessas ferramentas acarretam linguagens distintas, particularidades que, na transição de um meio para o outro, deixam evidentes seus potenciais e fraquezas relacionados ao espaço do qual provêm e no qual pretende-se inserir. Cinema e quadrinhos:

Ambos lidam com palavras e imagens. O cinema reforça isso com som e a ilusão do movimento real. Os quadrinhos precisam fazer uma alusão a tudo isso a partir de uma plataforma estática impressa. O cinema usa a fotografia e uma tecnologia sofisticada a fim de transmitir imagens realistas. Mais uma vez, os quadrinhos estão limitados à impressão. O cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram. Essas singularidades, claro, afetam as tentativas de aproximação do cineasta e do cartunista.***

Harvey Pekar, Paul Giamatti, Tobey Radloff e Judah Firedlander: encontro entre a ficção e a realidade*.

Conclusão
A transposição dos quadrinhos para o cinema não é um fenômeno recente. Muito pelo contrário, foi logo no início dos empregos feitos com o cinematógrafo que se deu o que seria o primeiro cruzamento dessas duas formas de expressão artística, ambas ainda não consolidadas como tal.

 
American Splendor soube, acima de tudo, inserir os elementos próprios das histórias em quadrinhos na narrativa fílmica de modo a conseguir explorar seu potencial dramático e deixar que a HQ de Harvey Pekar falasse um pouco por si dentro do filme. Necessário enfatizar o papel da montagem, pois o encadeamento das aparições da HQ no filme – tal como inserções dos discursos no palco – permite ao espectador ir se adaptando, aos poucos, aos universos distintos que o filme toma como sua própria matéria.
 

Referências Eletrônicas
http://www.edpiskor.com/
http://www.harveypekar.com
http://www.milehighcomics.com
http://www.contracampo.com.br/59/americansplendor.htm

Referências Filmográficas
American Splendor (EUA, 2003) Direção: Shari Springer Berman e Robert Pulcini
Sin City (EUA, 2005) Direção: Roberto Rodriguez e Frank Miller.
300 (EUA, 2007) Direção: Zack Snyder


*
Disponível no site http://www.edpiskor.com/splendor/befuddled.html
**McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro (Trad.), São Paulo: Makron Books, 1995, pg. 126.
***http://www.edpiskor.com/splendor/befuddled.html
*McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro (Trad.), São Paulo: Makron Books, 1995, pg. 67.
**Foto do filme American Splendor (EUA, 2003).
*Quadro de Looking for Keys (escrito por Harvey Pekar, arte de Ed Piskor, 2006). Disponível no site http://www.edpiskor.com/dark.html
**Foto do filme American Splendor (EUA, 2003).
***Idem.
*Sin City (EUA, 2005) dirigido por Robert Rodriguez e Frank Miller e 300 (EUA, 2007) dirigido por Zack Snyder são exceções dentre as adaptações cinematográficas de HQs, pois transportam para o universo fílmico não somente a narrativa, mas também concepção estética e construção espaço-temporal das histórias em quadrinhos em que se inspiram, respectivamente 300 (Frank Miller, 1999) e Sin City (Frank Miller, 1991).
**Fotos do filme American Splendor (EUA, 2003).
*Idem.
**Idem.
***Idem.
*Idem.
**Fora o espaço cenografado utilizado no filme – o qual classifiquei como “palco” – a HQ American Splendor foi verdadeiramente para os palcos, encenada por uma companhia de teatro. Há no filme uma cena na qual Harvey e Joyce assistem a tal peça.
***Fotos do filme American Splendor (EUA, 2003).
*Idem.
**A primeira figura (da direita pra esquerda): foto do filme American Splendor (EUA, 2003) Quadros de Around the world and back to earth (escrito por Harvey Pekar, arte de Ed Piskor, 2004) Disponível no site http://www.edpiskor.com/splendor/around1.html

O filme de Shari Springer Berman e Robert Pulcini é um exemplo eficaz da capacidade do cinema de constituir-se como palco de expressão de outras formas artísticas, que não se apresentam como únicas e dissociadas, mas cuidadosamente suturadas na narrativa fílmica que, de algum modo, as modifica – por exemplo, na maneira de comunicá-las.

Dentro da biografia de Harvey, uma das batalhas que o filme traz é a desse anti-herói com um nódulo na garganta que o faz constantemente perder a voz. As HQs American Splendor parecem ser um remédio não receitado, mas profundamente testado e que apresentou ótimos resultados: o mundo dos quadrinhos deixa de ser apenas mera diversão para Pekar pra transformar-se em sua voz, fazendo para isso uso de nada mais que papel e lápis na mão, além do desejo de gritar contra o olhar idealizado da vida.

E se para fazer cinema é necessário, digamos, um pouco mais que lápis e papel, fiquemos então com a opinião do próprio Pekar sobre o resultado final da adaptação que, é claro, como tudo – ou quase tudo – em sua vida, virou quadrinhos.

Around the world and back to earth (escrito por Harvey Pekar, arte de Ed Piskor, 2004)*

 

*Juliana Panini Silveira é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) (juhpanini@hotmail.com)


*Foto do filme American Splendor (EUA, 2003).
**ANDRADE, Wiliam Machado de e TOLEDO, Glauco Madeira de. A Influência dos Quadrinhos no Cinema: A Incrível Saga da Linguagem Invisível e seu Legado Cinematográfico. Trabalho apresentado ao GT Audiovisual (Foto, Cine, Rádio e TV), do XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste.
***EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2005, pg. 75.
*Disponível no site http://www.edpiskor.com/splendor/around1.html



Referências Bibliográficas
ANDRADE, Wiliam Machado de e TOLEDO, Glauco Madeira de. A Influência dos Quadrinhos no Cinema: A Incrível Saga da Linguagem Invisível e seu Legado Cinematográfico. Trabalho apresentado ao GT Audiovisual (Foto, Cine, Rádio e TV), do XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
____________. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Paulo Neves (Trad.) São Paulo: Brasiliense, 2003. 279 p.
McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro (Trad.), São Paulo: Makron Books, 1995.
_______________ Reinventando os Quadrinhos. Roger Maioli (Trad.), São Paulo: Makron Books, 2006.
Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta