Western spaghetti e o Techniscope

Introdução

O western é um dos gêneros mais difundidos da história do Cinema. Para muitos, é quase que eminentemente cinematográfico, “o cinema americano por excelência”[1]. Criou uma legião de fãs e admiradores. E provou ser um gênero versátil ao longo do tempo.

Os western spaghetti não significam apenas filmes de faroeste feitos na Itália. Eles mostram como um gênero pode mudar e acrescentar elementos, sem se descaracterizar. Como diz Rick Altman, “não basta que os filmes de gênero se pareçam para que tenham êxito, também devem ser distintos”[2] (tradução minha).

O que este trabalho pretende é mostrar como o cinema italiano conseguiu, a partir de um gênero específico, acrescentar certo toque especial. E verificar como isso se deu tecnicamente, através do formato Techniscope, que os western spaghetti ajudaram a difundir.

Para isso, é necessário compreender o que é o formato Techniscope, e o que ele representou para a produção de filmes italianos dos anos 60, principalmente através da sua obra-prima: “Era Uma Vez no Oeste” (“C´Era Uma Volta Il West”, 1968), dirigido por Sérgio Leone.

Os formatos

Quando falarmos em formato neste texto, estamos referindo a uma de suas significações no cinema, no caso a relação entre a largura pela altura da tela de projeção ou do negativo. A outra acepção desta palavra é o formato do filme como bitola, que para todos os efeitos aqui se refere ao formato de 35 milímetros padrão.

O Cinema durante boa parte da sua existência, isto é, até meados dos anos 50[3], existiu no formato 1:1,33, que significa que para cada unidade de altura temos 1,33 vezes a largura da tela. Se uma sala tem uma tela de altura hipotética de 2 metros, sua largura seria de 2,66 metros. Quando da introdução do cinema sonoro, e com a solução que foi adotada, que era a de se ter o som óptico numa área que era da imagem, houve uma primeira perda da área de negativo utilizada pela imagem. No cinema mudo se preenchia todo o espaço entre as perfurações, e isso já resultava no 1:1,33 (ver fig. 1). Dado que o som teria que entrar neste espaço, uma parte da lateral foi retirada, alterando a relação ente largura e altura. A solução, então, foi diminuir a altura da área captada, para manter a relação de 1:1,33, que é o que chamamos formato acadêmico, pois proposto pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em 1932[4].

fig. 1
fig. 1
fig. 2
fig. 2

Se por um lado manteve-se o formato[5], por outro, a proporção diminuiu a área de negativo utilizada. E quanto menor a área utilizada, maior a ampliação que ela sofre para preencher a tela na projeção, ou seja, pior a qualidade de imagem.

Nos anos 50, com a concorrência da televisão pelos espectadores, o cinema cria os formatos widescreen, que são os formatos mais largos que hoje vemos no cinema. Estes são dois: o 1:1,66, que foi adotado pelos europeus; e o 1:1,85, adotado pelos Estados Unidos. Como a solução, nas trocas de formato, nunca foi de se aumentar a largura do negativo[6], diminuiu-se ainda mais a altura da área captada, usando ainda menos área de negativo para formar a imagem. Apesar desta adversidade, era necessário que o cinema se afastasse da televisão, dando uma imagem que ela não poderia oferecer, mais grandiosa.

E a solução mais fantástica para tal problemática surgiu na mesma época.

O Cinemascope

O Cinemascope é daquelas idéias que nos assombram pela sua simplicidade e efetividade, uma daquelas que sentimos que poderíamos ter tido. É a maior relação ente a largura e a altura no cinema, perfazendo 1:2,35. E por outro lado, é de todos os formatos sonoros o que mais utiliza área de negativo, ou seja, o que menos amplia a imagem, possuindo a melhor qualidade fotográfica. O trunfo, podemos dizer assim, é “enganar” a imagem, anamorfizá-la[7].  Funciona assim: a câmera capta uma imagem bem larga, de 1:2,35, com uma lente especial. Esta imagem, ao passar por esta lente, é esticada, no sentido vertical, em duas vezes. Fazendo a conta:

Altura =   _1__ X    2     =     _2__ =      __1___

largura     2,35                          2,35             1,17

Assim, a imagem que vai pro negativo é quase quadrada, e distorcida. Se você voltar a olhar as figuras 1 e 2, verá que quando o som foi introduzido, uma parte da área do negativo teve que ser não utilizada, pois como a lateral fora modificada, foi necessário se ajustar à altura para manter a relação próxima de 1:1,33[8]. Pois aí é que o Cinemascope mostra ser extremamente esperto. A imagem distorcida preenche todo o espaço, quase sem deixar sobras (fig. 3). Quando o som tirou espaço da imagem, a relação que ficou era de 1:1,17, e por isto a altura foi alterada, gerando a perda de espaço. Desse modo, o Cinemascope é o formato com grande área de imagem, e mesmo tendo a maior lateral de tela, sofre menor ampliação que os outros formatos widescreen.

fig. 3
fig. 3

A imagem no negativo está agora com um aspecto de 1:1,17 e distorcida na vertical, na razão de 2:1. Ao ser projetada, se coloca uma outra lente anamórfica que estica (desanamorfiza) a imagem na lateral, na mesma razão de 2:1. Voltando a imagem a ter o 1:2,35 da cena original, conforme a conta:

Altura =   _1__ X    1 =    __1__

largura           1,17            2             2,35

Obviamente que idéias simples requerem muitas vezes soluções engenhosas e nem sempre fáceis. As lentes anamórficas apresentam uma série de percalços, e seu projeto é de grande dificuldade, sendo caras por este motivo. Ademais, possuem dimensões e peso maiores que as lentes comuns, de modo geral.

De qualquer forma, o Cinemascope acabou por se tornar um formato admirado, pela qualidade e pujança. E, para boa parte das pessoas, o scope é lembrado pelos faroestes, pois casou muito bem com as paisagens horizontais destes. Como dizia Darryl Zanuck, poderoso da Fox, empresa que criou o Cinemascope: “- Mantenha as pessoas espalhadas”[9]. Apesar disto, o formato tem seus detratores. É conhecida a frase de Fritz Lang no filme de Godard “O Desprezo” (“Lê Mépris”, 1963): “Cinemascope – é bom somente para cobras e funerais!”[10], ao criticar sua característica largura. Bazin[11] via o Cinemascope com desconfiança nos westerns, pois achava que era um formato mais adequado a filmes psicológicos, o que é totalmente contrário ao que se acredita hoje, já que o scope é sempre associado a filmes monumentais e grandes produções; filmes de ação, portanto. Pela sua dificuldade em estabelecer primeiros planos (devido à grande largura, quando se fecha no rosto sobra muito espaço lateral, gerando um primeiro plano com excesso de fundo), é hoje quase um tabu a produções intimistas. A postura de Bazin, com um certo grau de purismo em relação ao faroeste clássico, é em relação aos westerns modernos curiosa. Voltaremos a isto em outra parte do texto.

O Techniscope

O Techniscope foi inventado pela Technicolor, que é um laboratório norte-americano, em sua filial de Roma[12]. Caminha em outra direção: enquanto o Cinemascope aumenta a relação entre largura e altura dobrando a primeira, o Techniscope faz o mesmo diminuindo pela metade a segunda. Volte a olhar a figura 2. Já dissemos que ela tem 1:1,17. Se você diminuir pela metade a altura, matematicamente é a mesma coisa que você dizer que dobra a largura.

Mostrar números vai ajudar a esclarecer. No formato (hipotético) 1:1,17 e no Cinemascope o espaço utilizado no negativo é de 22,05mm por 18,67mm[13] [14]. Se você reduzir esta altura praticamente pela metade, vai ter algo como 22mm por 9,5mm[15], chegando numa relação próxima ao do Cinemascope. E, insistimos, estas pequenas diferenças entre tamanhos dependem da patente e do fabricante, resultando em pequenas discrepâncias do valor padrão.

Para diminuir pela metade esta área captada pelo negativo, você só precisaria usar o espaço necessário por duas perfurações, ao invés das quatro habituais. E assim o fez o Techniscope, permitindo que o custo de negativo fosse reduzido pela metade, daí a sua aplicação em filmes de baixo orçamento. Faz-se necessário, no entanto, uma observação. Apesar de ter a mesma relação entre largura e altura do Cinemascope, o Techniscope é um formato de qualidade inferior, pois com área de negativo menor, ou seja, maior ampliação na hora de projeção. É por este motivo que ficou restrito a filmes baratos e fora dos EUA, de modo geral.

É apenas na finalização que vai ocorrer a anamorfização da imagem, sendo necessário uma truca especial com lente anamórfica para tal. Na cópia, a imagem volta a ter as quatro perfurações padrão de projeção. Seria muita ingenuidade se um formato propusesse mudar o padrão Edison de quatro perfurações por fotograma, visto que isso implicaria em não menos que fazer adaptações em todos os projetores do mundo, custo que seria imediatamente rechaçado pelos exibidores.

Apesar de uma duração não muito longa, a idéia do Techniscope provou ser de fôlego. Podemos dizer que o formato Super 35mm, popularizado por James Cameron no filme “Titanic” (1997), é de certa forma herdeiro dele. O Super 35mm é um formato que utiliza o espaço do som para fazer o enquadramento 1:2,35, resultando em maior área, logo maior qualidade que o Techniscope. Tem 24 por 10,01mm, resultando numa área de 240 mm2 contra uma de 209 mm2 do Techniscope e 411mm2 do Cinemascope. O que permitiu Cameron provar aos executivos da 21th Century-Fox e da Paramount que o Super 35mm era viável foi a evolução dos negativos, que nos anos 90 tinham grão mais fino que nos anos 60, agüentando melhor uma ampliação óptica mais severa.

Vez ou outra ainda aparece um filme feito em Techniscope, tendo a empresa australiana Multivision 235 adaptando câmeras para tentar voltar a dinamizar este formato.

O Techniscope e o gênero

Já dissemos que, pelo fato de diminuir os custos do negativo pela metade, o Techniscope fez relativo sucesso entre produções modestas.

O western não é necessariamente um gênero barato. Pelo fato de requerer grandes espaços, cavalos, cidades antigas em cenários. Porém, foi através dele que cineastas italianos conseguiram penetrar no mercado norte-americano. O western é um gênero, de certa forma, luxuriante, devido ao uso das paisagens.

Os spaghetti foram adaptando estas características, e acrescentando outras. Os grandes espaços do oeste dos Estados Unidos foram trocados pelos desertos da Almeria, na Espanha, e os cenários eram em muito mais simples, as casas de madeira viraram as casas da Espanha brancas, como podemos ver em “Por um Punhado de Dólares” (“Per un Pugno di Dollari“, 1964), o primeiro filme do spaghetti a fazer sucesso nos EUA[16].  E acrescentou outras: a figura do anti-herói, sujo, barbudo e de caráter dúbio; um uso da música mais operístico, mais conectado à narrativa; a guitarra elétrica na trilha sonora, em conexão com o rock’n’roll ; uma violência mais exacerbada e menos psicologismo. E, por fim, acrescentou o Techniscope.

Todas as mudanças foram muito espertas, e adaptadas às condições em que estes westerns eram feitos.  O mesmo se deu com o Techniscope. Em nossas memórias afetivas, o western e suas paisagens sempre se relacionam ao Cinemascope e sua tela larga. O scope, em sua capacidade de melhor mostrar os largos horizontes, casou muito bem com este gênero. E os spaghettis sabiam disso. Porém, o scope é um formato de certa forma difícil. As lentes são grandes, pesadas e caras. A profundidade de campo muito baixa, exigindo um assistente de câmera muito bom, e um tipo de produção idem. Na época, a disponibilidade de zooms anamórficas era limitada, e o range dessas zooms era curto, indo no máximo em 3:1, de 50 a 150 mm[17]. Somadas, estas características acabam por pedir uma liberdade de mise en scène mais limitada, pelo deslocamento e dificuldade. E o uso da zoom sempre foi muito presente no cinema italiano, como os do próprio Leone e Luchino Visconti (principalmente em “Morte Em Veneza” / “Morte A Venezia“, 1971). Desse modo, o Technniscope resolvia uma série de problemas. Em primeiro lugar, usava as lentes comuns, o que chamamos de esféricas. Pelo fato da diagonal do quadro ser menor, havia um aumento da profundidade de campo em relação ao 35 mm widescreen e ao Cinemascope[18]. Havia uma boa disponibilidade de zooms (como imaginar “Era uma Vez no Oeste” sem as zooms nos olhos de Charle Bronson?). Se poderia ter o quadro largo, permitindo o trabalho com a paisagem, liberando a mise en scène.  E, de quebra, fazia o negativo render o dobro, diminuindo os custos.

Num gênero de filmes baratos, o Techniscope acabava por dar um certo charme, advindo do scope, porém sem seus custos e complicações.

O western spaghetti era um formato que visava diretamente ao mercado. E, filmes que se pagavam, deveriam ter custos reduzidos, a fim de diminuir os riscos. Para justificar os figurantes que falavam espanhol, em geral as tramas eram passadas na fronteira dos Estados Unidos com o México[19]. Os atores norte-americanos trazidos para facilitar uma eventual venda externa não eram os mais proeminentes, porém pessoas da TV (caso de Clint Eastwood) ou ex-astros.

O Western por Bazin e os spaghetti

Se pegarmos a lista dos melhores filmes através dos tempos, perceberemos que muitos filmes acabam circunscritos a uma determinada época[20]. “Aurora” (“Sunrise“, 1927), figurou por muitos anos nestas listas, e hoje quase ninguém mais o menciona nelas.

Quando lemos um texto de Bazin como “Evolução do Western”[21], este primeiro parágrafo que escrevemos sempre nos vêm à mente. Para Bazin, a evolução pela qual o faroeste passava era acessória, não acrescentava muito aos grandes filmes que já haviam sido feitos. Para ele, psicologismos e modernidades acabavam por tirar a essência do gênero. Claro, as coisas devem ser circunscritas ao seu tempo, mas de certa forma causa surpresa ao leitor certas posturas. Se você perguntar para as pessoas quais os maiores westerns de todos os tempos, é muito provável que a maioria delas cite filmes produzidos depois do que o texto considera como o western clássico, puro, casos como “Rastros de Ódio” (“The Searchers“, 1956), que Bazin menciona, e gosta; o próprio “”Era Uma Vez no Oeste”; “O Homem que Matou o Facínora”(“The Man Who Shot Liberty Valence“, 1962); “Meu Ódio Será Tua Herança” (“The Wild Bunch“, 1969), e “Os Brutos Também Amam”(“Shane“, 1953), sendo que este o crítico francês comenta, dizendo que é um “western pelo western[22]. Assim, boa parte do que é considerado hoje bons faroestes são aquilo que Bazin via como uma certa decadência do gênero. O que acaba por provar que gêneros são mais fortes do que as crenças sobre eles. Os gêneros, e dentro deles o faroeste mostra isso com clareza, são maleáveis e ao mesmo tempo cheios de códigos, perfazendo uma combinação que logra manter o interesse do espectador por longos anos.

Mas isto não quer dizer que, ainda que por um outro viés, Bazin não tivesse  certa razão. Uma de suas premissas, a de que o psicologismo era de uma determinada maneira prejudicial ao gênero, acabou por se revelar de certa forma verdadeira. Uma das razões que o western norte-americano não tinha mais apelo em seu próprio país era que as platéias não se acostumavam, e chegavam a rir, de um certo maneirismo das personagens. Muitos acreditam que uma das forças do western spaghetti era voltar a investir em mais ação e em menos psicologismos.

Teria então André Bazin gostado dos filmes italianos? É uma questão difícil de responder, e tem seus prós e contras. A favor teria esta face de que os italianos voltaram a investir na ação, que Bazin tanto apreciava. Por outro lado, os anti-heróis com seu caráter estranho, a paisagem totalmente diversa e certo ar de deboche o fizessem  declinar.

Estes filmes acabam por mostrar como definições de gênero são complexas. A princípio, os filmes de faroeste seguem um modelo descrito por Bazin, com muita ação e virulência, com personagens decididas. Nos anos cinquenta movem-se em direção a filmes de caráter mais psicológico, ousando até mesmo um filme com fundo homossexual, caso do filme de Edward Dmytryck “Minha Vontade é Lei” (“Warlock“,1959). Mas isto não quer dizer que todo o gênero muda, e de uma vez.  Bazin cita “Sete Homens Sem Destino” (“Seven Men From Now“, 1956) como um exemplo de filme clássico. Mas de qualquer maneira, a tendência que ele identifica era uma realidade entre os filmes de maior orçamento. E, claro, isto não provinha da cabeça dos diretores apenas. De certa forma, o público ia se transformando e queria mudanças, e os filmes acabavam por responder a isso. O curioso é que, passada a novidade, este mesmo público acaba por sentir falta de certa visceralidade, e se cansa do caráter de certa forma ingênuo. E abraça os faroestes feitos pelos italianos, que retoma a ação abandonada uma década atrás.

É este caráter, de certa forma mutante, que faz com que muitos críticos cometam injustiças com os filmes comerciais. Para muitos destes, os filmes são uma sucessão de chavões e fórmulas, e acabam por serem previsíveis. Mas isto é um pensamento reducionista. Na verdade, os filmes, assim como os gêneros, vivem em constante mutação. Se você assiste a um faroeste mais recente, como os “Imperdoáveis” (“The Unforgiven“, 1992), perceberá que é muito diferente de um “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach“,1939). Não se trata de uma questão de melhor ou pior, mas para as platéias modernas o filme antigo pode parecer maçante. Se tal afirmação pode assustar a um cinéfilo, não podemos nos esquecer que somos uma pequena parte do público, e com preocupações muito específicas. Para o público, o filme tem que compartilhar de certa moral, de uma forma, atores e temas que lhe soem um pouco familiares, que ressoem dentro de sua sensibilidade.

Sérgio Leone e o apogeu dos spaghetti

O grande nome do cinema de faroeste italiano foi Sérgio Leone. Começou sua carreira fazendo segundas unidades nos filmes de Hollywood rodados na Itália, na Cinecittá e sendo assistente de direção.  Dirige seu primeiro filme dentro de um gênero popular do cinema italiano de então, os filmes com temática da Roma antiga e de gladiadores, “O Colosso de Rhodes” (“Il Colosso di Rodi“, 1961). Acostumado aos gêneros e ao cinema comercial, parte para a filmagem de “Por um Punhado de Dólares” (“Per un Pugno di Dollari“, 1964), tentando fugir do pastiche do outros spaghetti, e, crendo que ainda havia espaço pros westerns, buscou um estilo mais operístico e enigmático, e com uma moral mais moderna[23].

Mas a filmagem não seria tão fácil. De início, os atores que Leone queria eram de alguma maneira inviáveis, como Henry Fonda (pelo custo), Charles Bronson (achou o roteiro uma porcaria), James Coburn e Richard Harrison, que recusou o papel mas sugeriu o nome de Clint Eastwood[24]. Segundo Harrison, sua grande contribuição pro cinema foi sugerir o nome de Eastwood para este filme.

Mas as dificuldades não paravam por aí. Leone tentava colocar seu estilo, criando um modo de vestir os atores com capas, um maneira de filmar diferente, um ritmo mais lento. Porém, nem sempre era compreendido, e a filmagem era uma bagunça. Uma parte da equipe, os cabeças, era formada pelos italianos. Mas era uma co-produção italiana, alemã e espanhola. As externas eram rodadas na Almeria, com grande parte da equipe de espanhóis. E o ator principal falava somente inglês, sendo que Leone não dominava este idioma. Em dado momento, ninguém acreditava mais no filme. Achavam caso perdido.

Quando estréia, o filme é um sucesso, para a surpresa de todos. Rapidamente Leone faz mais dois faroestes, “Por uns Dólares a Mais”(“Per Qualche Dollare in Piú“,1965) e “Três Homens em Conflito”(“Il Buono, Il Brutto, Il Cativo“, 1966). Estes filmes catapultam Leone como um diretor comercial de sucesso. A tão sonhada produção com Hollywood aparece. Leone não quer mais fazer westerns, mas os estúdios norte-americanos impõem um primeiro faroeste como condição de futuros filmes. Leone capitula e faz “Era Uma Vez no Oeste”[25], uma de suas obras-primas. E continua fiel ao Techniscope, mesmo com mais dinheiro. Agora, conta com os astros que desejava em seu primeiro faroeste. A direção é primorosa. Duas sequências são inesquecíveis. O início, onde os pistoleiros esperam Charles Bronson chegar, com seu tédio, suas capas e barbas, um incrível uso dos ruídos gerando tensão; e uma das maiores cenas da história do cinema: quando descobrimos as motivações da personagem de Charles Bronson, em seu esperado duelo com Henry Fonda. Os movimentos de câmera; os tempos alargados; o uso do leitmotiv, ora como música, ora como ruído; a música como ópera; o zoom nos olhos de Bronson; a incrível estruturação dramática, onde o menino é obrigado a segurar o peso do irmão até ceder, tudo é de uma beleza e tragédia poucas vezes alcançadas nas telas. Quem a viu não consegue esquecer a primeira impressão de impacto causada por tal seqüência.

E o Techniscope ajuda. Em primeiro lugar, possibilita a Leone fazer belíssimas composições, e trabalhar dentro de enquadramentos amplos, e cortando para planos fechadíssimos de repente, uma das marcas de seu estilo. Cortando diretamente de um para outro, sem passagens. Aqui, a inerente dificuldade de primeiro planos do 1:2,35 é brilhantemente resolvida: como os planos são muito fechados, e as bocas e olhos possuem um formato horizontal, que acabam por se adaptar bem ao formato.  O ganho na profundidade de campo permite trabalhar a figura e o fundo conjugados, numa mise en scène em profundidade, incomum. E o baixo peso do equipamento, aliado aos zooms, permite os mais variados movimentos de câmera.

Apesar de tudo isto, o filme foi um fracasso nas bilheterias, assim como os filmes subseqüentes, o que explica o fato de Leone ter dirigido tão poucos filmes na fase final de sua carreira.

Conclusão

Este trabalho pretendeu-se uma pequena discussão tecnológica, com respingos no estudo do gênero de um modo diferente, a partir de um ponto de vista dos equipamentos, no caso a invenção do Techniscope.  E mostrar que, além da temática e mise en scène, os equipamentos podem ter um papel no estudo dos gêneros através de suas mutações através dos anos.

Talvez seja um caminho pouco inexplorado e que, se não é o mais importante, ao menos pode fazer suas contribuições.

A figura de Leone surge por dois motivos: além de cineasta brilhante, de certa forma foi um dos maiores incentivadores do formato, que poderia ter morrido no limbo se não fosse os western spaghettis.

Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Bibliografia

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Sitegrafia

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WIKIPEDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Fistful_of_dollars>Acesso em: 22 dez. 2008.


[1] BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

[2] ALTMAN, Rick Los gêneros cinematográficos. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 2000.

[3] É óbvio que durante sua existência o cinema viu uma miríade de formatos, principalmente em seu início, mas o que se fixou comercialmente foi o formato 1:1,33 ,que foi estabelecido por Edison/Dickson com seu kinetógrafo.

[4] IMDB. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Aspect_ratio_(image)>. Acesso em: 22 dez. 2008.

[5] Na verdade o formato acadêmico é 1:1,37, mas a diferença é tão pouca que muitos usam o termo 1:1,33 para se referir a ele, por aproximação.

[6] O que implicaria em dificuldades enormes, pois, ao se trocar a bitola do filme, todos os cinemas teriam que trocar seus projetores, o que seria custoso, e inviável.

[7] Anamorfizar é mudar a forma de um objeto, “esticando-o” na lateral ou vertical, como aqueles espelhos de parque de diversões, que ora nos torna mais gordos, quando a anamorfização é lateral, ora mais magros, quando na horizontal.

[8] Lembrando sempre que, na verdade, no sonoro houve uma pequena alteração: 1:1,37

[9] no original “Keep the people spreads out”, in WARD, Peter. Picture Composition for Film and Television. Oxford: Focal Press, 1996.

[10] ver citação in CLASSICAL FILM PREVIEW. Disponível em: <http://www.classicfilmpreview.com/fritz-lang-on-cinemascope/>. Acesso em 22 dez. 2008.

[11] BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

[12] SALT, Barry. Film Style  & Technology: History and Analysis. London: Starword, 1992.

[13] HART, Douglas C. El Ayudante de Câmara. Madri: Instituto Oficial de Radio Y Television, 1999.

[14] Se o leitor dividiu estes números e percebeu chegar a 1,18, tal se deve a variações nos arredondamentos matemáticos, que ora arredondam para cima, ora para baixo. Ademais, cada padrão de anamorfização, como os da Panavision, Arri e etc, utilizam tamanhos de janela de negativo ligeiramente diferentes, resultando nestas pequenas discrepâncias. Por fim, a partir dos anos 70 o padrão foi estabelecido em 1:2,39.

[15] FOSTER, Frederick. Techniscope – what it is and how it works . American Cinematographer, Los Angeles, v. 45, n. 7, jul. 1964.

[16] IMDB. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0058461/trivia >Acesso em: 22 dez. 2008.

[17] SALT, Barry. Film Style  & Technology: History and Analysis. London: Starword, 1992.

[18] Uma lente normal é definida, no cinema, como o dobro da diagonal do quadro. Como a diagonal do Techniscope é menor que um quadro 1:1,85 ou 1:1,66, para obter o mesmo enquadramento se utiliza de distâncias focais menores, o que aumenta a profundidade de campo.

[19] WIKIPEDIA. . Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Spaghetti_Western>. Acesso em: 22 dez. 2008.

[20] um exemplo pode ser visto in BFI. Disponível em <http://www.bfi.org.uk/sightandso.und/topten/history/>. Acesso em: 24 dez. 2008.

[21] in BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

[22] Idem, pg, 212.

[23] WIKIPEDIA. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Fistful_of_dollars>Acesso em: 22 dez. 2008.

[24] Idem.

[25] AGUILAR, Carlos. Sergio Leone. Madri: Cátedra, 1990.

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