O 19º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo começou com pouca pompa e muita vontade de que tudo desse certo. Logo na abertura tivemos a diretora do Festival Zita Carvalhosa, o ator Wagner Moura entre outros nomes importantes do meio Audiovisual falando sobre a importância do Cinema de Curtas. Muitos agradecimentos e muitos elogios, com alguns excessos de politicagem.
Zita Carvalhosa e Wagner Moura na Festa de Abertura
Logo na noite de abertura do Festival, filmes interessantíssimos foram mostrados, deixando o seleto público (para entrar na noite de abertura era necessário participar de alguma forma do festival, sendo um patrocinador da Petrobrás ou um realizador de algum curta selecionado no Festival) surpreso e ansioso pelo que viria pela frente. Todos os filmes foram exibidos em 35mm, menos Mamãe eu fiz um super-8 nas calças. Blackout, de Daniel Rezende abriu a noite. Sobre o filme, pode-se dizer que é uma obra feita pela O2 Filmes. O curta narra o happy hour de dois assessores parlamentares, mas ao invés de um bar eles vão fumar um baseado em uma sala pequena esquecida dentro do Congresso. Conversam sobre um político que um dos dois assessora, com piadas precisas e certeiras. A fotografia se resolve bem, pois a possibilidade de se filmar com pouquíssima luz poderia ser um problema, mas é bem elaborada, dando-nos a sensação de mobilidade dos personagens. Os atores são um show a parte, e Wagner Moura mostra que não é só de Capitão Nascimento que se vive um ator. O filme ficou entre os 10 preferidos do público do Festival, com razão, já que tem narrativa simples, com um ponto final divertido.
Blackout
Próximo andar, do galã Denis Villeneuve também impressionou pela grandeza de seus efeitos. Ganhador da Semana Crítica de Cannes, o filme começa já em tom irônico, quando participantes de uma seita comem muita comida, em uma grande sala de um prédio antigo. A feição de alguns personagens não é de toda felicidade, já que eles comem muito, mas expressam certa preocupação. A trilha sonora é excepcional, ajudada pela presença de personagens músicos, que tocam sinfonias enquanto os esfomeados convidados se empanturram. E de repente, as madeiras do chão começam a fazer barulho, e o solo cede, e todos caem para o próximo andar. O curta-metragem canadense mostra uma direção de arte exemplar, sem nenhum exagero e extremamente divertida. Como já foi dito, o filme impressiona pela qualidade técnica e criativa.
Next Floor/Próximo Andar
Ainda nos filmes da noite de abertura, o sensacional Eu sou Bob, de Donald Rice levou a platéia do Sesc Pinheiros às gargalhadas. O curta narra a aventura do cantor Bob Geldof, que se perde em uma vila inglesa no dia em que todos os habitantes param para participar de um festival de covers. E com seu famoso mau-humor, o músico vê Madonna, Papa João Paulo II, Ghandi, Michael Jackson, Beyonce entre outros personagens conhecidos. O filme tem ótimas sacadas, com piadas visuais e verbais. O cantor inglês descobre, no meio do cenário pop que o cerca, que o sósia mais parecido ganhará uma “grande” valor em dinheiro, que é o suficiente para ele sair do vilarejo. E o ponto alto está quando o próprio Bob duela com outro Bob, o sósia, extremamente afetado e dramático. Os dois cantam a mesma música, e a interpretação dos atores dá o tom ao filme, extremamente cômico. É um dos filmes que depois que você assiste, pensa em como ninguém fez isso antes. Genial!
I am Bob/Eu sou Bob
O Festival propôs a discussão da Política Viva, com programas interessantes sobre essa discussão, como o coletivo Submarino Vermelho e sua bem elaborada Carta Branca. O grupo montou um conjunto de filmes que abordavam temas como Revoluções, artísticas ou não, que sensibilizaram grande parte dos espectadores.
Filmes como “Há Lugar” retrataram bem a cara (se é que o coletivo queria ter uma) do grupo de jovens estudantes. O filme de Julio Wainer e Juraci de Souza de 1987 (!) assusta na contemporaneidade, quando vemos que em vinte anos, nosso políticos pouco evoluíram. O documentário sobre a ocupação de terra na Zona Leste da cidade de São Paulo deixa todos falarem, dos ocupantes ao secretário do Estado, e explicita o direito a terra, claramente defendido pelos diretores. É quase uma nova Canudos, quando os ocupantes fazem desde as medidas das calçadas, até a construção efetiva das casas. Todos parecem estar de acordo com a ocupação, menos, claro, o governo do Estado, no caso, o Governo Quércia, que não aceita comprar a terra dos proprietários legais para depois vender, de forma cabível, aos ocupantes. Uma das frases marcantes do documentário é a do Bispo Angélico Bernadino : Um povo sem terra é um povo assaltado.
Outro filme que fez parte da Carta Branca ao Submarino Vermelho foi o sensível 2 meses e 23 minutos, documentário sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem-teto no acampamento João Cândido, com direção de Rogério Pixote e Fabio Ranzani. O filme retrata o ponto de vista das mulheres (mais precisamente as cozinheiras do movimento) e das crianças. Essa opção salva o filme do clichê de outros documentários chatos e cansativos sobre o mesmo universo. A sensibilidade das mulheres, juntamente com a honestidade das crianças proporciona um filme pouco propagandista e mais ficcional, como a frase da menina Eduarda : Aqui só falta casa mesmo. Sensacional. O filme faz parte do projeto Cine Becos e Vielas, e no dia da sessão no Cine Olido, um debate inteligente e democrático foi feito depois de todos os filmes.
O Coletivo foi feliz na escolha da maioria dos filmes, como os lendários Maranhão 66, de Glauber Rocha, e Panteras Negras, de Agnes Varda, além dos contemporâneos simpáticos Nada a declarar, de Gustavo Acioli, Espetáculo Democrático, de Guilherme César e Na real do Real, de Karina Santos. Alguns filmes foram um tanto confusos, como Canil_Ocupação a marretadas, dos jovens Lucas Keese e Eduardo Fernandes, que assisti duas vezes para compreender sobre o que realmente o filme tenta tratar. Na primeira exibição, compreendi que o filme criticava, de certa forma, os estudantes, já que usaram de uma forma um tanto radical para evidenciar sua posição quanto a falta de um espaço para a cultura dentro da Universidade de São Paulo. Talvez essa visão seja apoiada pela trilha sonora, que em certo momento diz : Ao invés de fazer tudo isso, era melhor ter ido trabalhar. Já na segunda exibição, percebi que o documentário era a favor das tais marteladas nos muros do antigo canil, com a ajuda, é claro, dos próprios realizadores, no debate pós-sessão. O filme confunde pela edição, ora irônica, ora séria. Ao mesmo tempo que parece criticar a falta de cultura e discussão dentro do feudo intelectual USP, evidencia-se festinhas de faculdade, clima de badalação e ainda com trechos dos macacos de 2001- Uma odisséia no espaço o filme fica nessa confusão de pontos de vista.
Outros filmes não unânimes foram as pílulas de Graziela Kunsch Abertura de Portas e Entrada no Prédio. O primeiro retrata ativistas do movimento Passe Livre em ação, abrindo as portas de um ônibus para a população entrar sem passar pela catraca. O segundo mostra a invasão de um prédio abandonado do INSS em São Paulo, por membros do Movimento Sem-Teto do Centro. Os filmes não foram unânimes pelo caráter televisivo, um tanto apelativo no tratamento dos retratados, com gritos e situações de baderna. Mas vale a pena pelo experimentalismo do usa da câmera na mão nos dias de hoje!
No entanto, o tolo “Mamãe eu fiz um super 8 nas calças” fez sucesso superficial, mostrando quanta besteira é capaz de se filmar em um minuto, como fazer o chato trocadilho de dentadura e ditadura…
Outra grande seção do Festival foi a “Formação do olhar Kinooikos“, que tem como característica mostrar filmes feitos em diversas comunidades, como os projetos Ateliê Acaia e Vídeo nas Aldeias. A crítica fica justamente para a produção do Festival, que colocou todas as exibições da seção em apenas dois cinemas, Cine Olido e Centro Cultural São Paulo. Não compreendo como elevar o cinema amador se ele não é mostrado claramente para todos. A pessoa que faz a programação poderia explicar os motivos de alguns filmes ficarem à margem do festival, já que o centro, notadamente é a Cinemateca.
Voltando aos filmes Kinooikos, alguns receberam grande simpatia do público, como o Se Vira, Malandro, de realização coletiva do Ateliê Acaia e o sugestivo O que se passa na cabeça das mulheres, de Allan Carvalho, Marcos Coelho e Ludio Vilaia. A maioria dos filmes carrega o peso da falta de verba para se fazer cinema, tema tão discutido no meio Audiovisual por pessoas que talvez nem conheçam esses projetos. E a questão aqui não é esta, e sim a generosa idéia de oferecer meios para que pessoas fora do mundo do cinema possam expressar suas idéias. Vanessa Reis e Moira Toledo estão de parabéns, e sua vontade de fazer as coisas acontecerem deram certo.
Uma parceria entre o Kinoforum e a Organização Francesa OMJA (Office Municipal de Jeunesse d’Aubervilliers – Escritório Municipal da Juventude de Aubervilliers, cidade na periferia de Paris) rendeu uma clara comparação entre nossos filmes dos Kinooikos e os filmes franceses. Ambos, tecnicamente, sofrem com a falta de verba para a realização de um filme, como já foi dito sobre o Kinooikos e a temática dos dois programas são muito semelhantes. A OMJA também tratou de temas como jovens da periferia e suas escolhas, como Mon Hall de Hassan Strauss e relacionamentos conflituososo, como Entre Príncipes et Amitiés, de Abdoulaye Cisse.
Outro programa especial que o 19º Festival Internacional de Curtas preparou foi o Convivendo com o Alzheimer, uma seleção de belíssimos curta-metragens que abordavam, cada um com sua especificidade, o cotidiano de pessoas que tem Alzheimer.
Esta sessão especial, inspirada no Festival Internacional de Clermont-Ferrand que se passou na França, neste ano, contou com uma seleção formada por cinco ficções e um documentário. Das ficções, todas eram internacionais e variavam: Tailândia, Espanha, Canadá, Nova Zelândia e Austrália. O documentário era brasileiro. E, embora, variassem no gênero, estilo ou nacionalidade, os filmes tratavam de forma sensível a lenta perda da memória, da consciência da individualidade, de reconhecimento de filhos e família e como a mente humana é frágil ou como o ser humano é naturalmente frágil. Trouxe à tona a noção da dificuldade de lidar com algo quase inexplicável pela ciência e quase incompreensível, pois a contagem temporal inexata pode perder alguém em si mesmo num processo irreversível.
O programa especial Cachaça Cinema Clube também abordou o tema de controle e ordem que o Estado tanto se preocupa. O grupo do Rio de Janeiro selecionou filmes das décadas de 1960 e 1970, como Rio, capital mundial do cinema, de Arnaldo Jabor, documentário que explicita a pompa do primeiro Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, com participação de Fritz Lang como ele mesmo. O filme (a única película do programa!) ironiza, contrapondo as festas da elite do cinema com as revoluções e movimentação política conturbada da geração de 1960. Tudo claro, no estilo áspero de Arnaldo Jabor filmar.
O programa carioca contou ainda com os filmes Xarabovalha! De Heloísa Buarque de Holanda, A miss e o dinossauro de Helena Ignez e Raimundo Fagner de Sergio Santos. Acredito que Cachaça Cinema Clube poderia ter explicitado mais essa vontade do “desbunde”, como eles mesmos falaram durante a apresentação da sessão, e mostrar aos jovens de hoje que ainda existe essa alternativa, a de não se levar tão a sério, quando as coisas ficam complicadas demais.
A Mostra Latino-Americana do Festival desse ano é um recorte de um cinema completo, que abrange temas intimistas e temas político-sociais e culturais. Cada uma dessas abordagens, em sua grande maioria ficções, nos dá um panorama geral da vida na América do Sul e Central, tal como cabe a arte em sua capacidade de representação.
Dentre os que analisam o indivíduo, destacam-se “De Cero a Cien” (Uruguai), que narra a paixão por uma vizinha; “Uma Tarde Qualquiera” (Costa Rica), o encontro com o pai após quinze anos; “Fuera de Control” (México), a solidão e a vontade contínua de completar-se em alguém e “Matrioshka” (Uruguai), a curiosidade de um pacote casualmente endereçado a um departamento de escritório.
Nesta linha, os sentimentos das personagens alcançam alto nível de representação na tela, ganhando intensidade e importância. Na esfera político-cultural, os sentimentos mais provocados estão no espectador, que reflete após cada curta-metragem. “Um Vaso de Soda” (Argentina), por exemplo, nos coloca uma velhinha que vive só e um garoto que invade sua casa em busca de dinheiro. Ela o ajuda? Por que ela faria isso? Qual ponto em comum entre ela e esse garoto? A solidão imersa no contexto da diferença social explica este curta. E o espectador questiona-se.
O tema político, a Política Viva, toma conta destas sessões do Festival. Das personagens, devido à provocação contextual, são exigidas decisões e autocontrole. “Carretera Del Norte” (México), por exemplo, lembra o quadro de Portinari “Os Retirantes” ao mostrar uma família andante na seca, na miséria e solidão de uma estrada vazia. “Siberia” (Cuba, Equador) narra o fim de aulas de russo numa escola devido ao fim da Guerra Fria e o desemprego do professor. “La Outra Cara de La Moneda” (Chile), um dos poucos documentários da Mostra Latino-Americana, aponta os resquícios da ditadura de Pinochet numa sociedade que pouco se importa com uma imagem cunhada na Moeda. “Café Paraíso” (México), que também participou da abertura do Festival, nos mostra o preconceito contra os latinos na sociedade norte-americana dentro do universo irreal (ideal?) de uma lanchonete fast-food. E “Limpiando Sapos” (Equador, EUA), sobre a situação de guerrilha no Equador e o recrutamento de crianças para lutar.
Temas políticos e provocantes. A Mostra ainda separou dois filmes sobre a situação da mulher e a exclusão cultural. Em “Cunaro” (Venezuela) uma menina tem o desejo de ir pescar com o avô e em “Maria y Osmey“ (Cuba) uma menina fica emburrada ao não poder jogar beisebol por ser mulher.
“A sessão mais livre do Festival!“. Esse foi o slogan para a programação dos curtas considerados experimentais do KinoLounge. Com uma linguagem mista de ilusões ópticas, músicas entorpecentes e verdadeiros “brain-storms” narrativos, os filmes desta sessão não se bastavam. Os filmes, classificados como animação, experimental ou ficção, extrapolaram a conceitos estéticos inovadores, buscando, talvez, que o lado sensorial, se aguçado, provocasse emoções rápidas. O curta brasileiro “Tema 8″, de Laborg, por exemplo, certamente foi pensado a ser projetado em baladas eletrônicas, já que a imagem de bolhas incertas dançam na tela e o público dançaria tal como elas. Já o suíço “Tokyo Rock ‘n Roll” parece ter sido filmado sem cortes e por acaso; por acaso seja um vídeo-clipe sem efeitos especiais que também convida o espectador a dançar.
Mas verdade seja dita, o programa KinoLounge sofreu muito com a ineficiência da organização, que, em uma das exibições, atrasou mais de meia hora para o início da sessão, e ainda por cima, tivemos que ver uma organizadora, a senhora Thalita dando um verdadeiro show no saguão do Cine Olido, gritando com as pessoas no seu telefone e maltratando os monitores do Festival. Como espectador do Festival, desejo que a organização do Festival repense o tratamento dos cabeça-chave com outras pessoas, e fica aqui a nota que todos pediram (monitores, funcionários do Cine Olido e alguns espectadores), expressando a insatisfação com a organizadora do programa KinoLounge, que realmente acreditou ser superior a todos os outros presentes naquela ensolarada tarde de agosto.
O balanço que pode ser feito sobre o Festival é que ele amadureceu e mesmo com problemas de relações públicas, atrasos, e tudo mais, a mostra se consolidou como necessária, e deu o espaço necessário que o cinema de curta-metragem merece. Como ouvi alguém dizer no meio do turbilhão de confusões das retiradas de senhas e falta de lugares para os espectadores ávidos por cinema : “O Festival não é uma ciência exata”, e assim foi feito. Acredito que algumas modificações nas programações precisam ser feitas, não escolhendo filmes só para se ter quantidade. Claro que entendo que muitos filmes não podem concorrer com outros, já que você não pode comparar um filme feito pela O2 e um feito por uma comunidade local no interior do Brasil, mas existem momentos em que uma seleção resultaria em mostras mais identificadas e sólidas.
Festa de Encerramento
Por Jun Yassuda Junior com colaboração de Catita Alves, graduandos em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
muito interressante esse festival