Cidade e Veludo Lynchianos

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O adjetivo lynchiano remete-nos automaticamente a um universo de sonhos e delírios, onde os limites entre real e imaginário se desfazem aos pés de personagens envolvidos em tramas misteriosas, ao redor de figuras caricaturais que oscilam entre o sinistro e o bizarro, transitando por lugares tão obscuros quanto, percebe-se ao longo das histórias, suas próprias mentes.

Pode-se dizer que essa é a peculiar assinatura de David Lynch no cinema, apesar de, no conjunto de sua obra, filmes como O Homem Elefante (EUA, 1980) escaparem às características que fizeram do diretor um cineasta reconhecido.

É com maestria que Lynch concebe obras distintas como Veludo Azul (EUA, 1986) e Cidade dos Sonhos (EUA, 2001), partindo de elementos, senão os mesmos, próximos e relativos a uma mesma concepção de mundo: não há sólidas fronteiras entre sonho/pesadelo e realidade que não seja, digamos, essencialmente imaginária.

Veludo Azul conta a história de Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan), um jovem que encontra uma orelha humana decepada jogada num gramado e, a partir dessa descoberta, envolve-se com Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), uma cantora que teve o filho raptado por Frank Booth (Dennis Hooper, numa ótima atuação), um homem insano envolvido com tráfico de drogas. Cidade dos Sonhos, por sua vez, traz a degradação psicológica de uma mulher abandonada pela amante, que leva sua mágoa às últimas conseqüências.

Duas grandes obras de David Lynch que possuem estruturas narrativas bem diferentes. É possível identificar em Veludo Azul começo, meio e fim da história, ao passo que Cidade dos Sonhos é regido por diversas fragmentações não apenas temporais, mas, atrelado a estas, a história perambula entre o que realmente teria acontecido àquelas duas mulheres e o que seria apenas uma construção fictícia, imaginária, da personagem de Naomi Watts, atormentada por ter sido abandonada. Lynch constrói um grande labirinto, permeado por objetos – alguns bastante simbólicos, como caixas e chaves – que se deslocam dentro da narrativa e auxiliam, mesmo que não muito, o espectador na sua árdua tentativa de compreender o que é passado e o que é presente, mas principalmente o que é real e o que é imaginário.

Estruturalmente menos complexo Veludo Azul, todavia, parece ser em certa medida, um ensaio para Cidade dos Sonhos. Mas que medida seria essa?

Arrisco a colocar que ambos gozam da mesma lei. ´´O mundo é estranho´´, frase que se repete ao menos 4 vezes em Veludo Azul, dita por Jeffrey e Sandy (Laura Dern), filha do detetive para o qual Jeffrey entrega a orelha que encontrou. A câmera entra na orelha que o jovem achou e a partir daí uma mundo obscuro se apresenta aos dois personagens, universo perpassado de insanidade, absurdo e violência. Da orelha decepada aos filmes que passam em dois momentos na TV – imagens de uma mão apontando um revolver e alguém que sobe as escadas, provavelmente filmes de suspense – o mistério invade as vidas das pessoas, mesmo Lumberton – onde se passa a história, mesmo parecendo uma pacata e feliz cidadezinha do interior.  Jeffrey anseia por mistérios e soluções e é assim que se vê entre dois fragmentos de um mesmo local, muito bem representados pela inocência de Sandy e a perturbação e instabilidade de Dorothy e todos que a cercam. Depois de entrar na orelha e toda a história transcorrer, a câmera sai, dessa vez da orelha de Jeffrey. Se tratando de David Lynch, é arriscado fazer certas afirmações, mas o mais ´´provável´´ parece ser que, diferentemente de Cidade dos Sonhos, tudo que vimos aconteceu de fato, naquela ordem cronológica, daquele modo.  Ma o que Lynch traz em Veludo Azul é assustador: aquele mundo estranho e absurdo pode ser o nosso. Basta olhar para além. E não se trata de um além, mas para as frestas da realidade, pra dentro de uma simples orelha. Uma das primeiras cenas de Veludo Azul resume, de certa forma, o caos intrínseco à realidade e ao imaginário – que nos filmes de Lynch se constituem como um coisa só: um plano no qual a câmera entra pela grama e descobre ali insetos – besouros, possivelmente – produzindo tantos movimentos quanto sons violentos. No final do filme, depois de conseguir trazer o filho de volta para Dorothy, Jeffrey observa, ao lado de Sandy, um passarinho à beira da janela com um inseto no bico.  O caos derrotado? Dominado, talvez. Mas presente. E instavelmente latente.

Outro dado curioso que interliga as duas obras é o tema do amor. Sandy conta a Jeffrey o sonho que teve na noite em que o conheceu. Em resumo, tratava-se de um mundo mergulhado em completa escuridão, trazido de volta à luz pelo amor. No final, quando ambos observam o pássaro com o inseto na boca, o assunto é retomado, como se o amor tivesse, de alguma forma, vencido toda aquela violência insana. Já em Cidade dos Sonhos grande parte do delírio caótico que fragmenta e reelabora tanto os fatos quanto as memórias da personagem de Naomi Watts – que no início se chama Betty, mas não é certo que seu verdadeiro nome seja esse – parte justamente do mesmo sentimento: o amor de Betty por Rita e o descontrole de sua mágoa e desejo.

O “mundo estranho” dito por Jeffrey e Sandy, é povoado e governado por pessoas bizarras e parece difícil definir se este mundo faz as pessoas assim ou o inverso. De modo instigante, ora Lynch exacerba isso com personagens como Betty, que aparentemente nada apresentam de anormal, ora como Frank Booth, a personificação da insanidade, do sadismo e da violência, ambos cercados por figuras das mais peculiares. A deformação ditando formas ao mundo, modelando faces e mentes, fatos e ilusões.

Com imagens fortemente orgânicas e térreas – tal como a orelha decepada com fungos e formigas – Lynch traz em Veludo Azul o mesmo universo de violência psíquica e física de Cidade dos Sonhos, de um modo, digamos, menos fragmentado, mas ainda assim altamente neurótico. O diretor, aliás, parece levar cada vez mais a fundo essas concepções oníricas perturbadas e obscuras. Sua mais recente obra lançada no Brasil, Império dos Sonhos (EUA, 2006) deixa claro que Lynch está cada vez mais lynchiano.

cartaz de Cidade dos Sonhos

cartaz de Veludo Azul

Juliana Panini Silveira é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – juhpanini@hotmail.com

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