Expoente da produção cinematográfica alemã da década de 1920, F.W. Murnau se destacou por fazer um cinema expressionista, como em Nosferatu: Uma sinfonia do horror (1922) e Fantasma (1922), mas extrapolou esse movimento ao explorar o Kammerspielfilm, conceito do qual o filme A Última Gargalhada (Der Letzte Mann, 1924) é um de seus principais representantes. Neste caso, características tipicamente expressionistas como a expressividade do cenário, a importância da luz e da sombra e os temas mórbidos, ainda que de forma mais realista e orgânica, contrastam com as sutilezas do drama psicológico, a tragédia social e o ambiente cotidiano do personagem, atributos que convergem para traduzir visualmente os seus conflitos emocionais.
A expressão Kammerspielfilm é originária do termo kammerspiele (peças de câmara), isto é, do “teatro íntimo”, no qual cada gesto e expressão do personagem e cada detalhe da apresentação possuem grande importância para o espetáculo como um todo. O diretor Lupu Pick o define como um gênero de filme intimista e psicológico, um drama interior com poucos personagens que ocorre em um espaço habitual. A opção pela supressão dos subtítulos e a marcada tendência ao simbolismo apontam justamente para a sugestão de sentimentos e sensações no plano puramente visual. A progressão narrativa, através de imagens, delimita as contradições humanas diante do umwelt, ou seja, do mundo ao redor, composto por elementos recorrentes do cinema clássico alemão como a fumaça, a penumbra, a luz vacilante, os clarões e as sombras, elementos estes também presentes no expressionismo.
Entretanto, o Kammerspielfilm possui tons mais realistas, tanto na utilização desses elementos quanto na composição dos cenários, nas interpretações e nos temas propostos, assim como o filme de Murnau irá nos apresentar. Com roteiro de Carl Mayer, o filme conta a história de um idoso porteiro de hotel, orgulhoso de seu trabalho, que é rebaixado a criado do lavatório. O personagem todo garboso com seu uniforme, como o de um general, é tratado com grande respeito por seus vizinhos e familiares. Ele faz do hall do hotel o seu território onde empunha com imponência seu guarda-chuva, retira a capa de chuva como um rei e estufa o peito para receber e levar os hóspedes até a saída. Mas, quando tem dificuldades para carregar uma pesada mala, seu patrão não hesita em trocá-lo de função, o que resultará em efeitos desastrosos para sua auto-estima e para o seu prestígio social.
A com uma interpretação sutil, característica do Kammerspielfilm, mas intensa, o porteiro, interpretado por Emil Jannings, expressa o incomunicável das sensações e sentimentos de desolação, como no escritório do patrão onde sabe de sua remoção para os lavatórios. Imprimindo uma marcada lentidão a esses momentos, Murnau busca amplificar a compreensão da psicologia do personagem que é de um tempo mais calmo e tranqüilo. Os personagens periféricos sem vida são como “irradiações de sua essência íntima”, por isso agem apenas em relação a ele, que ocupa lugar central da imagem/quadro e é acompanhado pela câmera móvel que observa cada gesto e expressão de seu rosto.
Nesse sentido, as tragédias do cotidiano são exploradas a partir de uma psicologia aprofundada, embora apresentando uma abstração nebulosa menos realista do que simbolista. Para tanto, é fundamental a composição de uma atmosfera (stimmung) que se alie ao jogo de luzes na representação das “vibrações da alma” do personagem. É dessa forma que são criadas as paisagens melancólicas de penumbra que evocam os sentimentos mais desoladores de A Última Gargalhada. Lupu Pick e o roteirista Carl Mayer já haviam se utilizado desses elementos do Kammerspielfilm em Destroços (1921) e em A Noite de São Silvestre (1924) prenunciando, inclusive, a câmera que, alternando profundidade e altura, acompanha o personagem na tentativa de desvelar o seu universo particular.
Porém, é em A Última Gargalhada de Murnau que, segundo Lotte Eisner, os movimentos de câmera serão fundamentais para a significação da imagem, pois, com a ausência dos subtítulos, a narrativa progride apenas a partir dos planos visuais que conseguem compor a tragédia social e psicológica do personagem com nuances realistas e alguns elementos expressionistas. Assim, desde o começo, os movimentos e os ângulos de câmera determinam as imagens: descendo de elevador e mostrando todo o saguão do hotel, como se prenunciasse a descida ao inferno do personagem, até a utilização de planos baixos para dar a importância do porteiro e, depois, a passagem para planos em plongé para mostrar sua decadência. Desta foram, a fotografia elaborada por Karl Freund se torna elemento diferencial também entre o belo hall iluminado e a escuridão do novo ambiente de trabalho. O apuro técnico é um dos destaques do filme como nessa alternância de luz e sombra, na câmera móvel que busca revelar toda a psicologia do personagem através de seus gestos e sua interpretação sutil, na importância dada aos detalhes dos objetos simbólicos e, ainda, na composição de uma arquitetura que representasse o contraste da hierarquia social.
Os detalhes em A Última Gargalhada ganham importância na medida em que remetem a um significado psicológico ou a uma lembrança. Portanto, para o porteiro o uniforme é extremamente significativo, sem o qual ele não é ninguém, pois ele acredita numa falsa posição social. (https://cityoflightpublishing.com/) Psicologicamente arrasado não vê outra saída a não ser reavê-lo para continuar mantendo a mesma imagem para seus conhecidos. Contudo, ele não foge de sentir a humilhação ao retornar para casa já na nova função quando todos já sabem e riem de sua situação. O seu rebaixamento é destacado pela perda do botão de seu uniforme, esse botão simbolizará a lembrança e o sofrimento infligido pela perda da função. As portas envidraçadas, por sua vez, remetem a separação entre dois mundos distintos: como quando o hotel e o mundo exterior são revelados pela porta giratória ou quando as portas do lavatório enclausuram o porteiro no andar inferior do hotel.
Os elementos expressionistas são colocados no filme de forma inteiramente orgânica, começando pela visão que o porteiro tem do hotel desabando em cima dele no momento em que ele furta e foge com seu antigo uniforme, passando em seguida para o sonho que o personagem tem após beber demais numa festa. Neste sonho, que é quase um pesadelo, a porta giratória do saguão ganha grande dimensão e entorta, seus colegas de trabalho se tornam carecas, inexpressivos e mórbidos, o porteiro, enfim, renova sua imponência e força para carregar uma enorme e pesada mala. Outro importante elemento expressionista são visões do protagonista representadas pelos risos gargantuescos fundidos de todos os seus conhecidos quando da sua volta para casa. A partir desse momento sua postura corporal se altera lembrando a postura oblíqua clássica do expressionismo alemão, além disso, suas reações apresentarem sinais de exagero e o ambiente parece imiscuí-lo nas sombras.
A alteração do espaço tem papel importante na representação psicológica quando o porteiro passa a auxiliar de toalete e as portas persistem a fechá-lo num mundo a parte como o último homem de outra geração. Nos lavatórios, estrategicamente colocados no andar inferior, o idoso, protagonista, expressa intensamente sua decadência física e psicológica por meio da lentidão de seus movimentos e de suas reações vacilantes. Enquanto isso, como contraste, Murnau nos apresenta imagens da rapidez dos acontecimentos da cidade, dos carros, das pessoas e até do vento, para mostrar o desenvolvimento veloz dessa nova geração. A solidão e a escuridão daquele espaço vazio, onde se destacam apenas o espelho e a penumbra, se tornarão o epitáfio deste homem que, como última ação, resolve devolver o uniforme ao escritório e aceitar seu destino, assim como a luz da lanterna, ele se apaga nas sombras. Somente o improvável final dessa tragédia, imposto ao diretor, pode alterar esse destino, uma reviravolta que nada tem de intrínseca à história e contradiz a grandeza desse filme. Não por acaso, diferentemente do título americano – The Last Laugh -, o título original em alemão se traduz, de forma coerente e iluminada, por “O último homem”.
Bibliografia
CÁNEPA, Laura Loguercio. Expressionismo Alemão. In: MASCARELLO, Fernando. (Org.). História do Cinema Mundial. 5ª ed. Campinas: Papirus, 2009.
EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca: As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Trad. Lucia Nagib. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985.
Sites
http://www.revistacinetica.com.br/murnaujulio.htm
http://www.contracampo.com.br/66/focomurnau.htm
Marcelo Félix Moraes é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e graduando em Imagem e Som pela Universidade de São Carlos (UFSCar).