Um método perigoso: o avesso da psicanálise

Janaina Namba[1]

Resumo: Trata-se de examinar o filme Um método perigoso, de David Cronenbergh, nos termos da psicanálise freudiana, teoria (e prática) a que ele se refere, com destaque para a noção de transferência.
Palavras-Chave: Psicanálise, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transferência, Sabina Spielrein.


A dangerous method: on the reverse of psychoanalysis
.

Abstract: The aim of the article is to examine the movie A dangerous method, by David Cronenbergh, from the point of view of the Freudian notion of transference.
Keywords. Psychoanalysis, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transference, Sabina Spielrein

O filme Um método perigoso, de David Cronenberg, começa com um clichê: Keira Knightley, que no filme faz o papel de Sabina Spielrein, uma histérica, grita e se debate ao ser levada para uma clínica psiquiátrica em Zurique no ano de 1904. Na cena seguinte entra na sala Michael Fassbinder que se apresenta como Dr. Jung, quem a recebeu na internação. Ela logo lhe diz que não é louca e ele a tranquiliza dizendo que o tratamento será baseado apenas em conversas diárias, com ele sentado atrás dela, tendo como única condição ela não se virar para trás para olhá-lo. O clichê da histeria continua, a paciente se contorce como numa conversão histérica, mas ainda assim consegue falar, consegue, a partir de uma única pergunta, numa primeira sessão desenvolver uma série de associações a respeito de uma possível causa de seus sintomas.


Os primórdios da psicanálise e o conceito de transferência


Onze anos antes da internação mostrada no filme, em 1893, Freud, juntamente com Breuer, já havia publicado alguns casos clínicos e estudos teóricos sobre os fenômenos histéricos. As investigações desses autores os levaram a crer que os sintomas histéricos eram produzidos por vivências, as quais os enfermos não conseguiam se recordar: “o histérico padece principalmente de reminiscências”[2]. Algumas recordações de vivências são suprimidas da consciência, nessa época chamada de normal, em contraposição a uma outra patológica em função de um trauma psíquico. Nesse período, os métodos de tratamento utilizados baseavam-se na hipnose e na ab-reação, que consiste na catarse do paciente (o segundo é denominado método catártico). A hipnose é logo abandonada por Freud, pois ele nem sempre conseguia hipnotizar suas pacientes, já a ab-reação seria uma reação obtida pela palavra, tão eficiente quanto uma reação adequada, obtida por uma ação, na qual há uma descarga de afetos (catarse), e, que o leva à constatação de que os sintomas histéricos podiam desaparecer por completo caso houvesse uma lembrança do processo e do afeto desencadeantes dos sintomas.[3]

Tanto o método quanto a teoria da histeria e da neurose sofreram importantes modificações com o desenvolvimento da psicanálise. O psiquismo, antes dividido e classificado como normal ou como patológico, passa a ser pensado de maneira estratificada. Ainda que contenha um núcleo patológico, inacessível à consciência, as camadas correspondem a zonas de alteração da consciência. Ou seja, essas camadas corresponderiam a zonas de transição caracterizadas por uma crescente resistência à lembrança à medida que se aproxima do núcleo. Esse núcleo patológico abrigaria então representações que o enfermo não pode se lembrar, seriam seus motivos escondidos, inconscientes e causadores de sua enfermidade.

Essa mudança teórica implicaria numa mudança também de método, pois a terapia não consistia mais em extirpar algo, senão “dissolver a resistência e facilitar a circulação, o caminho, por um âmbito antes bloqueado”[4]. Freud utilizou junto com a livre associação, o recurso da pressão sobre a testa que consistia na seguinte prática: o paciente deveria dizer a ele livremente o que lhe ocorresse à mente, no entanto, na ausência de uma lembranças, ou de pensamentos, a mão era colocada sobre sua testa e este deveria lhe dizer qualquer coisa que viesse à mente, uma imagem, uma palavra, um sentimento, etc, assim que a mão fosse retirada. A tarefa do psicanalista seria então a de seguir fios associativos das lembranças, bem como dos esquecimentos, isto é daquilo que está escondido, inconsciente.

Diz Freud em Sobre a psicoterapia (1905): “à raiz de minha participação na criação desta terapia, me sinto pessoalmente obrigado a consagrá-la, a explorá-la e a edificar sua técnica.”[5] Isso porque considerava a psicanálise, do ponto de vista da técnica, como uma psicoterapia de efeitos penetrantes e altamente modificadores do enfermo. E do ponto de vista teórico como a mais interessante por levar em consideração a gênese da trama dos fenômenos patológicos.

Ainda nos primórdios da psicanálise, Freud aponta como um obstáculo importante à análise, de origem externa, uma possível perturbação do vínculo entre o analista e o paciente. O enfermo transfere à figura do médico, representações penosas que florescem do conteúdo de sua análise, a transferência se daria assim por um enlace falso.[6] É interessante notar que Freud se refere à transferência como um enlace que não é verdadeiro, isto é, sentimentos de amor, de ódio, de indiferença, etc. que não são verdadeiramente destinados ao analista. Muitas vezes ele atua como um substituto do personagem principal da trama contada durante a análise.

O tema da transferência é abordado principalmente ao descrever o caso Dora, com o título de Fragmento de uma análise de um caso de histeria, em 1905 (ano de publicação). Neste artigo Freud se pergunta “o que seriam as transferências?” e responde que são “reedições, recriações de moções e fantasias que, na medida em que a análise avança, não podem senão serem despertadas e tornarem-se conscientes.”[7] Ou seja, o que é dito em análise, não é lembrado como algo que se viveu no passado, mas como algo que é reatualizado no vínculo com a figura do analista. Diz ele numa correspondência a Jung, em 1906:

A transferência fornece o estímulo necessário à compreensão e tradução da linguagem do Inconsciente; na ausência dela o paciente deixa de fazer esforço ou de ouvir quando o submetemos à nossa tradução. Poder-se-ia dizer que a cura é essencialmente efetuada pelo amor.[8]

A transferência seria ela mesma uma prova de que as neuroses são determinadas pela história de amor do indivíduo, ou seja, na figura do analista seriam depositadas e revividas as tramas amorosas passadas. Por volta de 1912, Freud escreve uma série de textos relativos à transferência, mas já havia constatado há bastante tempo, com o avanço da técnica psicanalítica, que a transferência não era uma “perturbação do vínculo”, mas ao contrário, algo absolutamente necessário, uma expressão psíquica de como são estabelecidos os vínculos amorosos. Esclarece em Sobre a dinâmica da transferência (1912) que todo ser humano, de maneira regular, adquire uma “especificidade” para o exercício da vida amorosa. Tal especificidade se deve tanto a uma disposição inata quanto às influências pelas quais passa na infância. Isto diz respeito às pulsões, ou ainda, às representações afetivas que irá satisfazer. Parte dessas representações torna-se inconsciente e é satisfeita pela via da fantasia, parte é satisfeita pela realidade objetiva e a parte que não é conscientemente satisfeita tenta de algum modo se satisfazer com outras “representações-expectativa libidinosas” a cada nova pessoa envolvida. A figura do analista seria justamente o alvo dos investimentos dessas representações afetivas insatisfeitas, ou mesmo satisfeitas de modo fantasioso.[9]

Segundo Mezan, o que interessa saber é “por que a transferência se presta tão bem às finalidades da resistência? ’’ Sua resposta a essa pergunta é direta: “os protótipos infantis exercem uma atração sobre as vivências presentes; o tratamento vai liberar a libido acorrentada a esses protótipos; quem opõe a resistência a ela são os protótipos mesmos, e a transferência obedece às finalidades da resistência porque reproduz uma maneira infantil de amar/odiar, ou seja, de investir em objetos.”[10]

Desde o início, a psicanálise se depara com o fenômeno da resistência, seja esta de aproximação ao núcleo patológico, seja, posteriormente, uma resistência à própria cura. A transferência enquanto substituto, enquanto reedição dos vínculos amorosos, não passa incólume. Como afirma Mezan, há uma reprodução do modo infantil de estabelecer uma relação de amor/ódio no vínculo transferencial, que acaba por deixar livre a libido outrora fixada.

A teorização sobre a libido será o alvo da maior disputa entre Freud e Jung. Em 1922, Freud escreve dois artigos de enciclopédia: “Psicanálise” e “Teoria da libido”. Neste último condensa, recupera e parece finalizar sua antiga querela com Jung a respeito da natureza das pulsões.

Libido é uma expressão tomada da doutrina da afetividade. Chamamos assim a energia considerada como magnitude quantitativa de pulsões que tem a ver com tudo o que pode ser sintetizado como amor.[11]

O amor a que Freud se refere é o amor cuja finalidade é a união sexual, ainda que possa haver outros amores (filiais, de amizade), muito pouco é modificado de sua natureza originária, o que leva a psicanálise a chamar as pulsões de amor como pulsões sexuais; e, sobre pulsões elementares como estas, estariam edificados os eventos psíquicos. Ou ainda, para Freud, esses últimos se edificam sobre um jogo de forças pulsionais. Daí um dos motivos do conflito estabelecido com Jung.

A teoria junguiana da libido pressupõe uma libido primordial, única, tanto “sexualizada [quanto] dessexualizada e, portanto, coincide essencialmente com a energia anímica”[12] O monismo de Jung se contrapõe a  um dualismo pulsional sustentado por Freud ao longo da teoria. Para Freud haveria pulsões sexuais e pulsões relativas ao ego, denominadas pulsões de autoconservação.  Essa posição dual das pulsões e oposta à posição de Jung é defendida numa carta a propósito da tradução francesa de suas conferências de 1910:

Eu havia declarado e repetido com a máxima clareza que estabeleço uma distinção entre as pulsões egóicas e as pulsões sexuais, e, a libido designa apenas a energia das primeiras, isto é, das pulsões sexuais. É Jung e não eu quem faz uma equivalência entre a libido como força pulsional de todas as operações psíquicas e quem combate a natureza sexual da libido.[13]

Esse esclarecimento vem a propósito de uma confusão feita pela introdução da edição francesa, que supunha uma unidade pulsional exclusivamente sexual. O que poderia dar vazão “na imaginação dos críticos”, à idéia de um pansexualismo que não existe em nenhuma das concepções pulsionais.[14]

No entanto, a ameaça ao dualismo pulsional existe e, nas palavras de Monzani, tal dualismo “está evidentemente se esfumaçando”, na medida em que ao formular o conceito de narcisismo, o “ego é também investido libidinalmente” […]  torna-se o “grande reservatório da libido”.[15] Isso nos levaria a pensar ou “imaginar”, como nos disse Freud, em uma natureza libidinal das pulsões de autoconservação e, portanto, a ter uma idéia pansexualista da psicanálise como temia, mas a resolução desse impasse se deu ainda no âmbito da dualidade:

Nossa concepção foi desde o início dualista e o é de maneira ainda mais clara hoje, quando deixamos de chamar os opostos pulsões egóicas e sexuais para dar-lhes o nome de pulsão de vida e de morte.[16]

O contexto, melhor dizendo, o texto em que anuncia essa nova dualidade é justamente o Para além do princípio do prazer (1920), onde irá mencionar uma insuficiência na oposição entre pulsões do ego e pulsões sexuais. As pulsões de vida abarcariam então a primeira oposição, isto é, seriam elas tanto as do ego quanto as sexuais, em contraposição à de morte.


A correspondência entre Freud e Jung


Em 1904, Jung não era alheio ao método psicanalítico, nem às teorias que Freud desenvolvia. No início de 1906, quando começou a se corresponder com Freud, anuncia que está tratando de um caso difícil, uma paciente histérica, proveniente da Rússia, de vinte anos, com o método de seu interlocutor.

Em termos teóricos, já nessa época contesta uma causa exclusivamente sexual na gênese da histeria, bem como supõe que o método analítico não se deva exclusivamente à ab-reação, mas também a relações (rapport) pessoais com o analista. Como vimos Freud já nos falava da transferência desde 1893, mas é interessante notar que para Jung, a terapia dependa de “relações pessoais”.[17] A paciente acima referida é Sabina Spielrein que permaneceu internada no hospital psiquiátrico até junho de 1905, mas seu tratamento com dr. Jung provavelmente se estendeu até 1906.[18]

Numa carta à Freud datada de julho de 1907, Jung escreve sobre uma paciente histérica que lhe conta um poema russo que não lhe sai da cabeça. Nesse poema a única companhia do prisioneiro é um pássaro engaiolado, e, “uma só vontade anima esse prisioneiro: nalgum momento da vida, como feito mais nobre, conceder-lhe a liberdade a uma criatura. Abre então a gaiola e deixa escapar o pássaro a que tanto se apega.”[19] Segundo a paciente, sua maior vontade é libertar alguém por meio do método psicanalítico e que em seus sonhos há uma condensação entre ela e Jung, terminando por admitir que sua maior vontade seria ter um filho dele e que este pudesse realizar todos os seus desejos irrealizáveis. Trata-se de Sabina Spielrein, sua paciente russa com quem, indica a Freud, em março de 1909, ter tido um relacionamento amoroso, mas que agora lhe custava caro, uma vez que a sua antiga paciente lhe armava um escândalo. Diz Jung: “uma paciente que há anos tirei de uma neurose incômoda, sem poupar esforços, traiu minha confiança e amizade da maneira mais mortificante que se possa imaginar.”[20] Supõe que isso tenha acontecido porque lhe negara um filho.

Ainda que numa carta em resposta, Freud mencione que haviam dito que ele tinha uma amante, e, que desconfiara que isso fazia parte da neurose de quem havia se apresentado como tal, Jung lhe responde que aquilo era “chinês” para ele e que nunca teve, na verdade, uma amante e era o mais inocente dos maridos. Além disso, também não supunha que tal boato tivesse sido espalhado pela sua paciente.

Por volta de junho de 1909, a trama entre Jung e Sabina parece se esclarecer quando Sabina escreve a Freud, que por sua vez, acredita se tratar de uma “faladeira e paranóica.” [21] Mas, Jung finalmente lhe conta quem é a autora da carta: uma paciente sua que já havia mencionado a Freud, e com quem prolongara o relacionamento. Dedicou a Sabina uma grande amizade, porém pareceu-lhe oportuno romper com ela no momento em que “as coisas já haviam tomado o rumo desejado”[22]. No entanto, tal rompimento não era exatamente desejado pelos dois, e, somente após uma conversa “muito decente” com ela, faz o pedido a Freud que este escrevesse à senhorita Spielrein dando notícias que havia sido informado de todo o assunto. Diz na sua carta a Freud:

Embora sem me deixar levar a um remorso infundado, deploro os pecados que cometi, pois em grande parte, posso ser incriminado pelas extravagantes esperanças de minha ex-paciente. Com efeito, em obediência a meu princípio fundamental de levar todas as pessoas a sério, até o limite extremo, discuti com ela o problema do filho, imaginando que falava em termos teóricos quando na realidade Eros se agitava sorrateiramente nos bastidores.[23]

O tom dessa carta era de confissão a um pai, revela que a situação havia ficado tão tensa que chegara a estabelecer relações sexuais com a moça, e, que se defendia de um modo que não encontrava justificativa moral. Ainda que estivesse se confessando, parecia estar sendo pressionado por Sabina a contar esse romance a Freud, declaradamente sua “imago paterna”.

Até essa data o relacionamento de Freud e Jung era de devoção e confiança. A resposta de Freud a esse caso foi de inteira compreensão. Contudo, nesse mesmo ano, numa carta a Freud, Jung se compara a Fliess e gratuitamente lhe diz que “nada parecido [entre eles] irá acontecer”[24]. Subentendia-se assim que o fim do romance com Sabina já prenunciava o final da amizade entre Jung e Freud, anunciada entre dezembro de 1912 e janeiro de 1913:

Caro prof. Freud, Posso dizer-lhe algumas palavras a sério? Admito a minha ambivalência dos meus sentimentos com relação ao senhor […] Eu, mostraria, contudo, que sua técnica de tratar discípulos como pacientes é uma asneira. […] Não sou de nenhuma maneira neurótico! Se o senhor se livrasse dos seus complexos e parasse de bancar o pai de seus filhos e, ao invés de visar continuamente seus pontos fracos eu me corrigiria e erradicaria num só golpe o vício de hesitar em relação ao senhor. […] Continuarei apoiando o senhor publicamente, enquanto mantenho minhas própria opiniões, mas, em caráter privado vou começar a dizer o que realmente penso do senhor.

Caro Presidente[25], Caro doutor, Só posso responder com detalhes a um ponto de sua carta anterior. A sua alegação de que trato meus seguidores como pacientes é falsa. Em Viena sou censurado pelo exato oposto […] De outra forma sua carta não pode ser respondida. Ela cria uma situação que será difícil tratar numa conversa pessoal e totalmente impossível por correspondência. É uma convenção entre nós, analistas, a de que nenhum de nós precisa sentir-se envergonhado por sua própria dose de neurose. Mas alguém que, enquanto se comporta anormalmente, fica gritando que é normal, dá ensejo à suspeita de que lhe falta compreensão de sua doença. Portanto, proponho que abandonemos inteiramente nossas relações pessoais.


Um método perigoso


O filme é ambientado entre 1904 e 1913, anos em que Freud e Jung se conheceram, se admiraram e se odiaram até que finalmente a amizade foi rompida. A correspondência entre os dois perdurou até 1923, ainda que em tom estritamente profissional.

Como dissemos no início, o filme começa com um clichê psicanalítico. Uma histérica, Sabina Spielrein, (Keyra Knightley) é conduzida a uma clínica psiquiátrica na Suíça, e, como muitas vezes é mostrado, essa histérica grita, tem acessos de riso, se contorce e tenta se libertar. No entanto, aceita o tratamento proposto por Jung (Michael Fassbinder) e supõe que seus sintomas teriam iniciado a partir de humilhações sofridas na infância, pois seu pai obrigava-a a beijar sua mão depois de lhe bater.

O roteiro do filme, feito por Christopher Hamptom baseia-se num livro de Aldo Carotenuto, um psicanalista junguiano que descobriu em Genebra, no ano de 1977, uma série de cartas trocadas entre Jung e Sabina Spielrein e um diário bastante fragmentado que pertenciam a Sabina. Ou seja, os fatos contados no filme são históricos, mas, como diz Michael Wood, “não é um filme histórico. É uma fantasia sobre autoridade e desejo, com nomes simbólicos forjados para papéis chaves.”[26]

Ainda que não seja um filme biográfico, mas apenas um filme com dados históricos, é mais uma vez a psicanálise que é posta em questão ora como tratamento, ora como teoria que carece ainda de validação.

Jung inicia um relacionamento com Sabina, ao que parece por influência de um outro paciente seu, Otto Gross (Vincent Cassel), um paciente psiquiatra, que se coloca muitas vezes num lugar de conselheiro sexual. Gross escala os muros do hospital psiquiátrico e foge deixando a Jung uma carta dizendo que estava curado e saudável graças a ele, pede, no entanto, que ele diga ao pai que estava morto.

A figura de Jung enquanto analista nos é mostrada como bastante reticente. Envolve-se pessoalmente com seus dois pacientes difíceis, cede aos apelos transferenciais e se coloca de fato no lugar do pai de Sabina, ao satisfazer-lhe com injúrias corporais, bem como à provocação de Gross, que o considerava sexualmente reprimido.

Com relação à Sabina, não só houve um problema contratransferencial, como Freud chega a mencionar em 1915, em Observações sobre o amor de transferência[27], a ser ultrapassado, mas como uma inversão no uso de informações obtidas pelo processo analítico, isto é, Jung não teve conhecimento das fantasias contadas por Sabina tomando o chá da tarde, ao contrário, foi uma descoberta da própria paciente que ela ficava excitada quando apanhava do pai em sua infância. Mesmo nos isentando do julgamento se Jung estava correto ou não em suas relações amorosas, o filme acaba por nos mostrar que a cura e a liberdade proporcionada por esta só são possíveis quando há um envolvimento pessoal com o analista.

Além disso, do ponto de vista teórico, o temor de Freud de acusação da psicanálise ser tomada como uma teoria pansexualista parece mais uma vez se concretizar. Freud defende a idéia da sexualidade como fator etiológico na gênese da histeria, diferentemente de Jung que considera o fator sexual como não sendo o único. Pela sequência de filmagem, nas discussões teóricas, Freud é muito mais razoável e cauteloso com a incipiente ciência, mas confirma-se o fator sexual na apresentação dos casos (de Sabina, do próprio Jung, ou mesmo em seu sonho do cavalo que é inibido por um cavalo menor, mas que só consegue parar na presença do cavaleiro), o que não seria um problema se o romance entre Sabina e Jung não fosse a estrela do filme. Ou seja, sexualidade, fator sexual e relação sexual tornam-se a mesma coisa. Outra possibilidade é de que a cura se deve mais ao envolvimento sexual, do que ao tratamento analítico.

E, para a psicanálise, “a sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em questão na produção dos sintomas das psiconeuroses”.[28] As enfermidades ocorrem em função da repressão, ou dos “diques anímicos”, e, uma vez erigida a barreira da repressão, há uma impossibilidade de satisfação plena da pulsão sexual, que por sua vez, mediante um rodeio, busca uma satisfação substitutiva na formação do sintoma patológico.

Apesar de não ser um filme histórico, conta com dados históricos, alguns deles equivocados, como, por exemplo, uma certa hesitação por parte de Freud com o fato de Jung não ser judeu; ao contrário, essa era justamente uma de suas virtudes, pois era a esperança de que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência e não como uma “ciência judaica”. Outro seria o encontro que Freud teve com Sabina e confiar-lhe alguns pacientes seus durante a estadia dela em Viena.

Desde o término do relacionamento entre Freud e Jung, Jung fica confinado, se retrai em suas atividades e confessa a Sabina, no final do filme que tem tido um sonho catastrófico: uma inundação que aparece como uma avalanche e vai arrastando casas e corpos que de repente se torna sangue, “o sangue da Europa”. Ao ser questionado sobre o significado, não tinha a menor idéia, a não ser o que estava para acontecer. Era esse um sonho premonitório como a queimação gástrica no próprio Jung, que precede o estalo da calefação durante uma conversa com Freud, ou estaria esse sonho dentro do contexto de uma Europa em conflito prestes a entrar na primeira guerra Mundial?

Freud morreu de câncer, no exílio em Londres, em 1939. Sabina Spielrein tornou-se analista, “treinou” muitos analistas, voltou para sua terra natal para exercer a medicina e, em 1941, foi fuzilada juntamente com as filhas, pelos alemães. Otto Gross morreu de fome. E Jung morreu tranquilamente, em 1961, depois de ter se tornado o psicólogo mais importante do mundo. Ironia, sarcasmo, uma retratação com a figura de Jung proposta pelo filme, ou uma crença no próprio modo de contar a história?


[1] Janaina Namba é Doutora em filosofia pelo DFMC da UFSCar e pós-doutoranda pela mesma instituição.

[2] Breuer, J. y Freud, S.  “Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar (Breuer y Freud) (1893)” in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 33.

[3] Breuer, J. y Freud, S.  “Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar (Breuer y Freud) (1893)” in Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 32.

[4] Freud, S. “Sobre la psicoterapia de la histeria” in  Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 296.

[5] Freud, S. “Sobre psicoterapia (1905 [1904])” in Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003. p. 249.

[6] Freud, S. “Sobre la psicoterapia de la histeria” in  Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 306.

[7] Freud, S. “Fragmento de análisis de um caso de histeria (1905 [1901])” in Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003. p. 101.

[8]Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 51.

[9] Freud, S. “Sobre la dinámica de la transferência (1912)” in Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 98.

[10] Mezan, R. “A transferência em Freud: apontamentos para um debate” in Tempo de muda, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 258

[11] Freud, S. “Psicologia de las masas e análisis del yo (1921)” in Más allá del principio del placer Psicología de las massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003,  p. 86.

[12] Freud, S. “Teoria da libido” in Más allá del principio del placer Psicología de las massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922). Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 250.

[13] Freud, S. “La pertubación psicógena de la visión según el psicoanálisis (1910)” in Cinco conferenciassobre psiconálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras (1910).  Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 212.

[14] Idem.

[15] Monzani, L.R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 146.

[16] Freud, S. “Más allá del principio del placer (1920)” in Más allá del principio del placer Psicología de las massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003 p. 51-52.

[17] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 42.

[18] Carotenuto, A. Diário de uma secreta simetria Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Trad. Amélia R. Coutinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 26.

[19] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 105.

[20] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 233.

[21] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 250.

[22] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p 252.

[23] Mc Guire, W. “As cartas de Freud/Jung” in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 259.

[24] Gay, P. Freud: a life for our time. New York, The Anchor books, 1988, p. 206.

[25] Até 1914 Jung foi presidente da Associação internacional de psicanálise.

[26] Wood, M. “At the movies” in London Review of books, v. 34, no 5, 2012.

[27] Para o médico significa um esclarecimento valioso e uma boa prevenção para uma possível contratransferência que se prepara nele in Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 164.

[28] Birman, J. A constituição da clínica psicanalítica in Freud e a interpretação Psicanalítica. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1991,p. 144-5.

Referências Bibliográficas

BREUER, J. y Freud, S. Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). V.2. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003

FREUD, S. Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905). v.7. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.

_______. Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras (1910). v. 11. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.

_______. Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). v.12. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003

________. Más allá del principio de placer, Psicologia de las masas y análisis del yo y otras obras (1920-1922). v.18. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003

BIRMAN, J. Freud e a interpretação Psicanalítica. v. 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991

CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Trad. Amélia R. Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984

GAY, P. Freud: a life for our time. New York: The Anchor books, 1988

MC GUIRE, W. A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung. Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1993

MEZAN, R. Tempo de Muda: ensaios de psicanálise. São Paulo, Companhia das Letras, 1998

Monzani, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Ed. UNICAMP, 1989.

WOOD, M. London Review of books. v. 34, no 5, 8 march 2012. London

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Este post tem 2 comentários

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    Gabrielle

    Olá, já fiz muitas pesquisas com relação a este filme, mas esta referência sobre o filme foi definitivamente a melhor. Só fiquei com uma dúvida, o por que do filme ter este titulo ?

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