O Cânone nos Comics

João Senna Teixeira[1]

Resumo: Os Comics de super-heróis apresentam peculiaridades no modo como lidam com a questão da coerência narrativa. Isso ocorre devido ao grande volume de histórias acumulado em um mesmo universo ficcional, o que leva alguns autores a acreditarem que essas histórias não possuam coerência interna consistente. Nesse trabalho será apresentado um modelo para compreender a coerência dos Comics, o Cânone como gerenciador da validade das estórias.

Palavras-chave: Comics, Narrativa, Historicidade, Cânone

Abstract: The superhero Comics presents peculiarities in the way they deal with the coherency in its stories. This is due the great volume of accumulated narratives in the same fictional universe, what leads some authors to believe that these stories don’t have a consistent internal coherence. In this paper we will present a model to comprehend the coherence of Comics in this view, the Canon as a manager of the validity of these stories.

Keywords: Comics, Narrative, Historicity, Canon

As histórias em quadrinhos são um meio intimamente ligado a serialidade, primeiro, pelo seu próprio princípio de funcionamento, a solidariedade icônica (Groensteen, 2009), que institui que a imagem seguinte funciona por ser similar a anterior em alguns aspectos, mas diferente em outros, gerando um efeito de continuidade. Dessa maneira, não parece estranho que as tiras em quadrinhos crescessem de três quadros para os seis ou oito das tiras dominicais, ou que, posteriormente, as tiras de aventura passassem a ter histórias que duravam semanas, com tiras diárias que depois seriam compiladas em um volume único. Essa propensão a serialidade atingiu um grau acima nos comics norte americanos de super-heróis, nos quais a narrativa não se continha mais na edição única, mas criava mais uma entrada no contínuo de histórias que formavam aquele universo ficcional. Em seguida, se elevou ainda mais a serialidade, com a criação de multiversos narrativos, em que diversos personagens de diversas publicações coabitavam e poderiam aparecer em todas as revistas da mesma editora, sendo que essas aparições seriam levadas em conta nas próximas histórias.

Com o tempo, o peso dessas narrativas decantadas mês após mês começou a forçar o universo ficcional, o trabalho de diversos autores na escritura dessas histórias, e acabou por criar alguns furos na tessitura deste contínuo narrativo. Estes furos acabavam descobertos e “sanados” com a apresentação de novas versões dos fatos incoerentes ou se convencionando que determinadas aventuras nunca haviam ocorrido. No entanto, tais atos, chamados de retcons[2], acabam por aumentar o grau de complexidade destes multiversos narrativos, pois um autor ou editor futuro poderia simplesmente acreditar que a versão anterior de alguma história fosse mais interessante e a citar em uma nova edição, colocando em cheque toda a continuidade desse universo. Com isso, muitas vezes esses universos ficcionais são “resetados”, retornados a um estado inicial, com suas histórias fundadoras recontadas e, posteriormente, uma apresentação de quais fatos anteriores ainda ocorrem nessa versão do universo ficcional.

Partindo desse fenômeno, muitos estudiosos pensaram os comics de super-heróis como desprovidos dessas características de fluidez na validade de suas narrativas. Eco (1989) apresenta, ao comentar o modelo de série em espiral, que essa construção do contínuo narrativo refere-se apenas do retorno ao estágio original da narrativa, citando o Superman como exemplo. Barbieri (1990trata os comics como essencialmente não coerentes, o que impossibilita o seu encaixe completo nas categorias seriadas tradicionais, Saga e Série, pela sua falta de continuidade. No entanto, como esses modelos foram criados para tratar de outros modos narrativos, não levam em conta as especificidades de criação, produção e consumo dos comics.

O objetivo deste trabalho é criar um modelo de organização seriada da narrativa que lide com os problemas e estruturas específicos dos comics, tratando-os como basilares da experiência de leitura e consumo dessas histórias e não como um desvio da norma. Para tal é proposto o abandono do tratamento do conjunto serial das narrativas dos comics como um contínuo absolutamente coerente, pois isso ignora o modo como as histórias são produzidas, com equipes de criadores se revezando nas revistas e nos personagens, cada uma se focando em um aspecto do universo ficcional, além de ignorar também o modo como essas narrativas são apreciadas, com leitores passando anos sem ler um determinado personagem, mas voltando a lê-lo por causa de uma equipe criativa ou por alguma particularidade naquela edição ou arco narrativo[3].

O modelo aqui proposto parte do conceito de cânone. Primeiro vamos definir o conceito de cânone ao comparar suas duas outras definições, a do cânone bíblico e a do cânone literário, tentando encontrar uma definição própria para os comics. Em seguida vamos operacionalizar este conceito para transformá-lo em uma ferramenta analítica, partindo de outras categorias analíticas de estudos de narrativa e de recepção. Neste artigo em específico, serão tratadas as noções de leitor-modelo – o modo como o texto possui instruções de leitura para o apreciador empírico e como essas instruções guiam a sua leitura – e de horizonte de expectativa – como o acúmulo de leituras anteriores modifica o modo de recepção de uma obra.

O que é cânone?

Cânone vem do grego Kanon, que significa régua, mas também lista, norma ou ideal. O termo possuiu diversos usos na sociedade grega, como proporção ideal na escultura, base de como considerar algo verdadeiro ou falso na filosofia, e o que nos une no direito. Mesmo assim, seu principal sentido referia-se às escrituras sagradas da bíblia, especificamente ao conjunto de textos considerados válidos numa determinada versão. Ulrich (2002) apresenta duas definições de cânone: “1… a regra da fé articulada pelas escrituras (= norma normans), … os princípios definitivos e o espirito guia que governam a fé e a prática.”[4], e “2… a lista de livros aceitos como escrituras [divinamente] inspiradas (= norma normata), a lista que foi determinada, a lista autorizada de livros que foram aceitos como a escritura.”[5] (Ulrich, 2002, p. 28) Mesmo considerando as duas definições como válidas, ele coloca que a segunda é a mais comumente utilizada e a mais importante, sendo que muitos usam a sua definição como argumento para a primeira.

Ulrich também apresenta três características principais do cânone bíblico, “Primeiro, o cânone envolve livros, não a forma textual dos livros; segundo, ele requer um julgamento reflexivo; e, terceiro, ele denota uma lista fechada”[6] (Ulrich, 2002 p. 31). A primeira e a terceira característica são auto evidentes, os textos bíblicos evoluíram e tiveram diversas versões antes da atual e que a lista completa de livros que compõe a bíblia não pode ser discutida, ela é final. A segunda característica é mais interessante, ela admite que “O fato do cânone representa um julgamento oficial, consciente e retrospectivo; ele confirma o que gradualmente se tornou é agora e será para sempre… Ele olha para trás em um processo e o afirma conscientemente agora como uma situação estática e duradoura”[7] (Ulrich, 2002, p. 32). Isso mostra que há uma pressuposição de que a discussão se encerrou, de que há uma autoridade que delimitou e implantou esse cânone que agora é aceito. Tomando essas três características em conjunto com a definição anterior é possível ver que o conteúdo de um cânone, nesse sentido, não passa por um estudo de suas características formais, como princípio básico, sua autoridade advém, ontologicamente, da sua inspiração divina que é reconhecida por alguma instituição que o mantém. Assim, o cânone na acepção bíblica, ou teológica, possui um caráter validativo, admite apenas o que é considerado válido por uma autoridade externa, levando pouco em consideração o texto em si.

Outro uso comum do termo cânone é o empregado nas discussões sobre literatura e pedagogia, assemelhado ao de lista em dois sentidos, o primeiro, o de obras válidas é similar ao uso bíblico, o segundo, de livros, autores e estilos considerados “maiores” ou mais importantes. Este último passa por duas ideias essenciais, 1: é possível classificar obras pela sua qualidade intrínseca, que algumas obras são melhores do que outras; 2: é possível adquirir um conhecimento adequado sobre determinadas eras, autores e artes tendo contato apenas com suas obras mais iluminadas. Partindo desses pressupostos haveria um cânone literário de cada país, um cânone de estilos literários, um cânone de épocas, entre outros, sendo que nesses cânones haveria o que há de melhor nessas áreas específicas.

Tomando esses pontos, diversos críticos literários, professores, filósofos e pensadores tentaram criar cânones gerais sobre o que deveria ser lido para uma educação completa sobre o melhor do pensamento na tradição ocidental. Esses esforços deram origem a diversos compêndios, almanaques, coleções e enciclopédias, cada um com suas particularidades, mas todos com o intuito de apresentar uma base sólida sobre a origem e a evolução do pensamento filosófico, da literatura e das artes na história. Mas quais são os critérios utilizados para construir essas listas canônicas? John Searle apresenta um argumento convincente ao mencionar os motivos para a existência de um cânone: “muitas dessas obras são historicamente importantes por causa de sua influência; e que a maioria delas, diversas obras de Platão e Shakespeare, por exemplo, são de uma qualidade intelectual e artística muito elevada, ao ponto de serem de universal interesse humano”[8] (Searle, 1990).

Com base nesses argumentos é possível perceber que o autor toma como elementos mais importantes características internas às obras, partindo de um juízo de valor sobre suas qualidades. Nota-se aqui que quando fala da influência de uma obra, Searle se refere à influência de suas ideias sobre as obras futuras, sobre o pensamento dos futuros autores, e não à influência social ou política do livro, peça ou tratado. Essa influência é vista como traço residual nos textos dos pensadores seguintes que, se bons o suficiente, influenciarão outros e assim por diante, podendo gerar uma linha de pensamento que vai até a antiguidade. Essa linha é o que embasa Searle para afirmar a existência de um cânone ocidental de “Sócrates a Wittgenstein na filosofia, e de Homero a Joice na literatura”[9] (Searle, 1990).

Sumarizando essa discussão, é possível afirmar que o cânone literário é baseado em noções internas ás obras, mesmo quando se discute estilos ou eras artísticas se procura noções e categorias que existam no interior das obras. Por essas razões, esse tipo de cânone pode ser considerado valorativo, no sentido que se embasa em um juízo de valor para com a obra, juízo muitas vezes histórico e regressivo, que permite a uma obra antiga reganhar valor, ou mesmo “descobrir” um trabalho antigo que vá ter muita influência. É preciso atentar também para a questão do fio de influências, a linha que vem de uma tradição, capaz de moldar estilos muito depois de sua criação.

O cânone nos comics

O uso do termo cânone nos quadrinhos de super-heróis é variável, mas muito similar aos dois modos já apresentados. Como quando os leitores dos quadrinhos se questionam se uma história é canônica, se ela é válida pela editora e se faz parte da continuidade da série narrativa. Ou no modo como os leitores julgam se uma história é boa o suficiente para ser considerada canônica, ou que não consideram canônica apesar da editora. Isso mostra que a utilização do termo é mais ambígua em relação aos comics, não há um modo predominante, validativo ou valorativo do cânone, mas sim uma interseção entre eles.

Nesse contexto a qualidade do material não é o único nem o maior guia do que é validado, seja porque há certa discordância sobre o que é melhor, mesmo entre fãs e especialistas, seja porque a editora ainda controla a maior parte desse processo, e ela está mais preocupada com as vendas. Não que um seja o contrário do outro, mas muitas vezes autores que são ojerizados pela crítica especializada, como Robb Liefeld, continuam vendendo, o que não dá margem para as editoras desautorizarem as histórias em que trabalharam. Por outro lado, mesmo excelentes histórias podem atrapalhar os planos da editora, que pode preferir retirá-las do cânone para abrir espaço para uma reformulação ou para uma nova ideia. Não é possível estabelecer critérios puramente internos e valorativos para o cânone dos comics, é preciso levar em consideração o seu meio produtivo.

Mesmo assim, a editora precisa prestar contas ao seu público e acomodar as ideias e vontades de seus artistas e roteiristas. Se uma direção narrativa não traz retorno financeiro, a editora pode recuar para agradar aos fãs, revalidando narrativas antigas e ignorando as recentes, ou pode simplesmente tentar recomeçar do zero, com novas histórias fundadoras, uma nova continuidade e por consequência um novo cânone. Uma outra possibilidade é que um autor de renome, com prestigio entre os fãs e boa relação com a editora seja capaz de fazê-la reconsiderar, seja pela qualidade da proposta ou porque a editora tem interesse em manter esse criador contente. Com isso, fica claro que não há uma ditadura da editora, ela precisa pesar suas opções, e nem sempre a continuidade do cânone é necessária para o seu sucesso, o que já a diferencia do contexto do cânone bíblico.

Apesar de esses dois pontos ilustrarem bem o porquê do cânone nos comics não poder ser perfeitamente igualado aos dois modelos apresentados anteriormente, eles não mostram a maior característica desse modo narrativo, a sua contínua propagação. Diferentemente dos outros modelos, não há um corpus finito do qual se fala no passado, não há um processo acabado que se possa classificar facilmente, as narrativas dos comics de super-heróis são constantes e sempre inacabadas, é de sua natureza a sua não finitude. Com isso, não é possível ter o julgamento reflexivo do cânone bíblico, nem o assentamento de categorias e de critérios do cânone literário. O que há de interessante é que há sempre uma busca do passado para se explicar e construir o futuro, mas este passado é mutável e mutante, se adaptando às histórias escritas no presente. Os comics “apócrifos”, invalidados, não somem, apenas submergem, podendo ser redescobertos futuramente e revalidados. Cria-se um sistema em que o passado constrói um futuro, mas não se está preso a esse passado narrativo, os sedimentos de todas as histórias se acumulam e são terra fértil para a criação do novo.

Esse estado é bem interessante e frutífero, mas gera problemas, sobretudo para organizar esse manancial de histórias, e é aqui que o conceito de cânone nos comics pode se tornar útil. A primeira característica útil é a validade das narrativas, enquanto num modelo de continuidade todas as histórias precisam estar, necessariamente, ligadas por uma relação causal, num modelo canônico, elas precisam estar ligadas apenas a algumas histórias válidas, aquelas que possuem importância para a compreensão e fruição daquela narrativa. Assim, uma história pode ser considerada canônica entre um determinado número de histórias e arcos narrativos que ela afeta diretamente, mas não precisar ser canônica para todas as outras. Com isso há uma ideia de continuidade limitada, as relações de causa e efeito não são mais perenes, mas são relações limitadas pelo uso, não se espera que uma mesma história se contradiga, mas ela pode contradizer uma anterior, uma prática comum nos comics.

Outra questão relacionada à utilização do modelo canônico nos comics é o fato de que nem toda narrativa válida precisa estar na continuidade, sua ligação pode ser simplesmente temática. Por exemplo, uma história em uma cronologia paralela (A DC Comics as chama de Elseworlds e a Marvel possui a What If) pode ter ideias adaptadas a uma história válida na cronologia normal, mesmo que todos os fatos da história não sejam incorporadas à narrativa, o tema e a direção geral podem. Exemplos ainda mais extravagantes ocorrem quando personagens e ideias são adaptados de outras mídias. Jimmy Olsen, melhor amigo do Superman, surgiu em uma novela de rádio antes de ser colocado na revista. Copiando o filme de 2002 (Spider-Man, dir. Sam Raimi, 2002), o Spider-man passou a ter teias orgânicas ao invés de um composto sintético desenvolvido por ele.

Com essas posições é possível começar a definir o conceito de cânone dos comics: uma relação de necessidade narrativa entre duas ou mais histórias em que a mais antiga precisa ser conhecida para a fruição da mais recente. Aqui cabem duas ressalvas, primeiro que nem toda relação canônica prevê o conhecimento total, mas um conhecimento mínimo da narrativa anterior. Um exemplo disso é o fato de que toda narrativa de super-heróis pressupõe um conhecimento básico de suas histórias de origem, não é preciso saber de detalhes nem de versões específicas, não é necessário conhecer Batman: Year One, nem as diferenças entre essa origem e as outras, mas é preciso saber que o Batman era uma criança muito rica que teve seus pais mortos em sua frente. O que leva a segunda ressalva, o conhecimento mínimo pode ser provido pela própria narrativa na forma de exposição ou de diálogos. Isso ocorre bastante quando a narrativa canonisa uma história bem antiga e não pode presumir que o leitor possua conhecimento sobre ela.

Essa definição funciona para explicar o modo como uma das estruturas narrativas dos comics funciona, o arco narrativo. Nele, um número determinado de edições formam uma história única e coerente, algumas vezes ele continua uma história diretamente do arco ou edição anterior, em outras inicia uma história que não se liga a esses, e, em alguns casos, serve como uma história separada do resto do contínuo narrativo. Sob o modelo da continuidade, mesmo quando um arco não explicita a continuação dos eventos do anterior, essa continuidade é presumida, o que pode não ser verdade, partindo de um leitor que não tenha lido o arco anterior. O que ocorre é que, quando o leitor inicia um arco, ele precisa ser informado sobre o que é esperado que ele saiba para compreender essa narrativa, se é necessário um conhecimento do arco prévio, isto, de alguma forma, deve estar transparente na narrativa. Da mesma maneira, se há a intensão de se iniciar uma narrativa com elos mais fracos com a anterior, é preciso que haja instruções para que ela seja fruída. Assim, a própria narrativa instrui o leitor sobre o cânone vigente.

Essa série de instruções são muito similares ao conceito de leitor-modelo que Eco (2008) desenvolve. Para ele “…o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo. Gerar um texto significa executar uma estratégia de que fazem parte as previsões de movimento dos outros…” (Eco, 2008 p. 39), assim, ao escrever um texto, o autor pensa em como ele vai ser interpretado, pressupõe quem vai lê-lo e cria um alvo, um leitor-modelo, que seria capaz de interpretar o texto de forma correta. Tal leitor possui algumas competências essenciais para a compreensão correta do texto, podem ser conhecimentos básicos inferenciais, como conhecimentos de gêneros narrativos, ou conhecimentos complexos sobre filosofia e autores antigos, mas o texto sempre os antecipa de algum modo.

Acontece que o autor não pode pressupor que todo e qualquer leitor possua todas as competências necessárias para a interpretação correta do texto, assim apenas um seleto grupo seria capaz de ler o texto de modo correto, ou todo texto precisaria ser genérico demais para que qualquer um o compreendesse. O texto precisa, pelo menos, comunicar quais as competências que ele espera, apresentando-as ao leitor e permitindo que ele as busque ou fique ciente delas, possibilitando que o leitor a construa e se capacite a ler o texto na sua completude. Como Eco coloca: “Portanto, prever o próprio leitor-modelo não significa somente ‘esperar’ que exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi-la.” (Eco, 2008 p.40). Partindo desse princípio, o autor coloca no texto instruções que permitem ao leitor reconhecer não apenas o que é necessário para se ler o texto, mas para se instruir sobre essas competências e o sentido pretendido pelo autor. Assim “O leitor-modelo constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial” (Eco, 2008 p. 45).

Nessa linha de pensamento, um autor, ao determinar o cânone ao qual uma história remete, precisa não apenas compreender que tipo de leitor pretende que a leia, mas também imbuir a narrativa com instruções capazes de levá-lo a possuir os conhecimentos necessários para fruí-la como concebida. Isto pode tomar diversas formas, desde citações no texto remetendo a encontros anteriores entre personagens, pequenas recapitulações de acontecimentos passados ou simplesmente, nos comics, uma passagem em que o estilo gráfico seja diferente, uma citação visual. Todos esses elementos se aglomeram na intuição de que o leitor perceba algo de diferente e tente reconstruir com seu repertório as intensões do autor, chegando ao ponto em que possa interpretar com acuidade aquilo que imagina ser um estilo daquele, algo como um autor-modelo. Em um nível mais avançado de análise, seria possível identificar instruções de leituras programadas no texto prevendo diversos graus de competência do leitor, gerando níveis de leitura. Alguns leitores entenderiam apenas a narrativa, outros perceberiam algumas das citações e uma estrutura geral do cânone utilizado, enquanto os mais expertos iriam poder reconstruir toda a linha de referências e dizer em quais histórias anteriores esse cânone está embasado.

No caso específico do cânone nos comics, grande parte dessas competências presumidas diz respeito ao conhecimento prévio do leitor sobre o universo narrativo no qual a história está inserida. Assim, o autor lida não apenas com o conjunto de histórias que mantém um semi-contínuo narrativo, como apresentado anteriormente, mas também com as presunções e expectativas que esse leitor possui sobre os personagens e o funcionamento do universo narrativo. Essas expectativas são fundadas nas leituras das histórias anteriores, no modo como o leitor apreciou a construção desse “contínuo” narrativo e do acúmulo de experiências de leituras, em suma do acompanhamento da construção do cânone. Embora parte dessas expectativas sejam individuais, há uma atividade compartilhada no ato de ler e discutir essas histórias.

Jauss (1994) chama esse acúmulo de experiências de leitura compartilhadas e situadas historicamente de horizonte de expectativa. Ao descrever o processo histórico da literatura e fundar uma estética da recepção, ele coloca que: “A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete.” (Jauss, 1994 p.25). Embora trate da literatura, não há porque supor que seja diferente com outras formas expressivas que se deem historicamente. Assim, poderíamos aproximar a construção do cânone através do acúmulo de histórias com a decantação de apreciações que formam esse horizonte, já que na sua formulação é levada em conta a reação do público e da crítica, e que os novos criadores começam a ter contato com os comics nesse processo, sendo influenciados por ele.

O conceito de horizonte de expectativa também auxilia na compreensão das mudanças no cânone como parte de um processo, e não de atos isolados. É necessário conhecer os momentos históricos e as repercussões de cada mudança, além de sua influência nas histórias futuras e suas bases nas passadas. Como diz Jauss:

“A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no passado possibilita, por outro lado, que se apresentem questões para as quais o texto constituiu uma resposta e que se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a obra… Além disso, traz à luz a diferença hermenêutica entre a compreensão passada e a presente de uma obra, dá a conhecer a história de sua recepção…” (Jauss, 1994 p.35)

Gerando esse modelo histórico, se pode captar o emaranhando de relações entre os muitos agentes que influenciam a produção dos comics. Quais dos agentes envolvidos (editores, desenhistas, roteiristas) decidiu que revista seria publicada daquela maneira? Como os leitores reagiram àquela alteração no cânone? Como esse processo veio a modificar as histórias anteriores? Como as leituras das histórias anteriores ainda afetam a leitura das atuais? Todas essas perguntas são essenciais para a compreensão da construção do cânone. Em especial a última, que institui o que Jauss chama de classicidade, a mudança de uma obra transgressora para uma óbvia, fundando um novo horizonte de expectativa que precisará ser ultrapassado para a evolução da arte.

Retomando a definição de cânone nos comics apresentada anteriormente e vinculando-a aos avanços dados pelos dois conceitos apresentados, é possível formar uma definição operacional do termo que seja capaz de auxiliar a análise de um objeto empírico. Partindo do princípio que a relação de necessidade narrativa entre duas histórias é a base do conceito de cânone nos comics, como já foi apresentado anteriormente,  é necessário adicionar que a história deve apresentar os elementos mínimos para uma fruição mínima do leitor, além de o auxiliar na construção do repertório necessário para uma leitura completa da narrativa. Em segundo plano, a relação entre a história anterior e a atual possibilita uma mudança no horizonte de expectativa do leitor através do modo como a narrativa se utiliza das anteriores para gerar novas experiências, além da utilização da classicidade das narrativas precedentes para expandir novas leituras e significados da atual.

Considerações finais

Uma utilização frutífera do conceito de cânone nos comics, na perspectiva apresentada neste trabalho, não deve se focar na identificação e na nomeação das referências a narrativas passadas na atual, mas sim na compreensão de como as referências influenciam na fruição da obra que está sendo analisada. Alguns dos pontos a serem analisados, incluem: se as referências são constitutivas e necessárias na narrativa atual, ou são simplesmente curiosidades para os leitores mais antigos ou expertos que a identificarem; se a narrativa mais recente dá base para o leitor compreender de onde vieram as referências utilizadas; se a narrativa modifica de alguma forma a leitura mais comum das referências, apresentando uma nova característica a um personagem ou um novo ponto de vista sobre um acontecimento.

É preciso deixar claro que a identificação e nomeação das referências é um primeiro estágio da pesquisa, mas não o seu fim, servindo para dar subsídios à análise das relações históricas, mas não pode ser um fim em si mesmo. Um estudo baseado na estética da recepção não pode se fechar no encontro das recorrências e das mudanças, mas começar neles para se perguntar das relações históricas que unem esses elementos. Porque determinado personagem ou história foi esquecido por tantos anos, porque tal personagem conseguiu se manter similar por tanto tempo, porque modificar aquele elemento da história de um personagem nos anos 2000 e não na década de 1990?

Em suma, um estudo do cânone nos quadrinhos precisa colocar em relação histórica as referências passadas e compreender como essa historicidade influencia a construção e a fruição das narrativas atuais. Servindo como elemento de análise do modo como os realizadores (aqui compreendidos em sentido lato, incluindo roteiristas, desenhistas, arte-finalistas, letristas e editores) constroem histórias praticamente em um campo minado, cheio de reentrâncias e detalhes, também dos modos de relacionamento dos leitores com esse material no qual eles se dedicam e muitas vezes se especializam e, por fim, do modo de funcionamento interno das narrativas nesse jogo entre passado e futuro, colocando em relação as instâncias da criação e da fruição.

Bibliografia

BARBIERI, D. Tempo e serialità I confini della narratività nel comic book americano di supereroi. XVIII Consegno dell’Associazione Italiana di Studi Semiotici. Anais… Montecatini: [s.n.]. out 1990

CALABRESE, O. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999.

ECO, U. A inovação no seriado. Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 120-139.

ECO, U. Lector In Fabula. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 219

GROENSTEEN, T. The System of Comics. [S.l.]: University Press of Mississippi, 2009.

JAUSS, H. R. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Editóra Ática, 1994. p. 78

SEARLE, J. The Storm over the University. Disponível em: <http://www.ditext.com/searle/searle1.html>. Acesso em: 29 jun. 2012.

ULRICH, E. The Notion and Definition of Canon. In: MCDONALD, L. M.; SANDERS, J. A. (Eds.). The Canon Debate. Peabody: Hendrickson Publishers, 2002. p. 21-35.


[1] João Senna Teixeira é estudante de mestrado no Programa de Pós-Graduação em comunicação e Culturas Contemporâneas (PósCom) da Faculdade de Comunicação da UFBA. Contato: sennateixeira@gmail.com

[2] Chamados assim pela junção de duas palavras em inglês, retroactive continuity, continuidade retroativa, a idéia de que se criou um contínuo novo a partir da alteração de algo no passado com uma história nova.

[3] Arco narrativo é um conceito comum em histórias em quadrinhos, dizendo respeito a uma história dividida em diversas edições. Nos estudos sobre serialidade foi apresentado pela primeira vez por CALABRESE (1999), no livro “A Idade Neobarroca” em que ele estuda seriados norte-americanos.

[4] Tradução livre de: “1… the rule of faith articulated by the scriptures (= norma normans) ,…the authoritative principles  and guiding spirits which governs belief and practices.”

[5] Tradução livre de: “2… the list of books accepted as inspired scripture (norma normata), the list that has been determined, the authoritative list of books which has been accepted as scripture.”

[6] Tradução livre de: “First, the canon involves books, not the textual form of the books; secondly, it requires reflective judgment; and thirdly, it denotes a closed list.”

[7] Tradução livre de: “The fact of canon represents a conscious, retrospective, official judgment; it confirms that what has gradually come to be, will be now, and must forever be… It looks back over a process and consciously affirms it as now a static, enduring situation.”

[8] Tradução livre de: many of these works are historically important because of their influence; and that most of them, for example several works by Plato and Shakespeare, are of very high intellectual and artistic quality, to the point of being of universal human interest.

[9] Tradução livre de: from, say, Socrates to Wittgenstein in philosophy, and from Homer to James Joyce in literature

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 2 comentários

Deixe uma resposta