Laugh to not cry: the journey in The Clown (2011), by Selton Mello
José Duarte[1]
Resumo: O presente ensaio tenta explorar o sentido da viagem no filme O Palhaço (2011), de Selton Mello, procurando observar o percurso efetuado por Pangaré na busca pela sua identidade. Assim, o objetivo deste breve estudo é compreender quais as transformações que o protagonista sofre ao longo da sua jornada, ao mesmo tempo que é feita uma análise deste filme enquanto um road movie contemporâneo.
Palavras-chave: Identidade, Família, Road Movie, Nostalgia, O Palhaço.
Abstract: This essay addresses the theme of the journey in the film The Clown (2011) from the director Selton Mello, by analyzing Paganré’s search for his identity. Thus, the purpose of this brief study is to understand the changing that occurs in the protagonist while travelling and, at the same time, to explore this film as a contemporary road movie.
Key words: Identity, Family, Road Movie, Nostalgia, The Clown.
“Think you’re escaping and run into yourself. Longest way round is the shortest way home.”
James Joyce, Ulysses, 1922
1. O road movie: algumas notas
Na coleção de ensaios sobre o road movie intitulada The Road Movie Book (1997), os editores Steve Cohan e Ina Rae Hark escrevem na introdução ao livro que o género[2] road movie proporciona um espaço para a exploração das tensões e crises do momento histórico em que é produzido (1997: 2). Como notam ainda os autores, os períodos marcados por ideologias dominantes são particularmente propícios para o aparecimento do road movie, como atestam, aliás, épocas como os anos 60, período de confirmação do género que aqui adquire um cunho contracultural. Assim, o road movie parece ter criado um espaço para dizer a nação, no sentido em que se oferece como o lugar de reflexão que captura os sonhos, tensões ou ansiedades de um país. Esta realidade não se confirma unicamente nos Estados Unidos da América – um dos países onde o género se afirmou com mais intensidade – e estende-se igualmente a outros países. A estrada é, na verdade, não só um espaço alternativo de crítica da nação como também território potenciador de transformações, uma vez que o protagonista da narrativa on the road surge, após a sua viagem e na maior parte das vezes, marcado pela mudança.
De difícil definição como comprovam as várias teorias e estudos (CORRIGAN, 1991; COHAN e HARK, 1997; LADERMAN, 2002; CORREA, 2006; MILLS, 2006; ORGERON, 2008 ou FORD e SLETHAUG, 2012) a gramática do género assenta na combinação entre estrada, homem e carro (numa simbiose perfeita), espaço (no sentido da relação que o protagonista estabelece com o espaço – a natureza) e viagem que é efetuada. É talvez uma das formas mais simples de definir o género, mas este é, no fundo, o núcleo central que permite a viagem e no qual se centra a imagética do road movie. Uma definição bastante interessante é a de Jaime Correa em “El Road Movie: Elementos para la Definición de un Género Cinematográfico”:
Por lo general, un road movie tiene como eje central un relato de búsqueda que es también un relato de carretera. Se caracteriza entonces por la presencia de héroes viajeros o nómadas – usualmente una pareja y a veces un grupo de héroes –, personajes jóvenes y marginales cuyo malestar social los convierte a menudo en verdaderos parias. Dado que para desplazarse por los inmensos espacios del continente los protagonistas deben recurrir a los medios de transporte modernos, el género confiere una gran importancia a la tecnología: los personajes se identifican con los vehículos que conducen, llegando incluso a “humanizarlos.” Asimismo, debido a la presencia constante de referencias concretas tanto a la geografía como a las particularidades históricas del continente norteamericano, el contexto socio–histórico de los relatos tiene un papel fundamental en el género. Por otro lado, el roadmoviemuestra una preferencia marcada por el género masculino y, en consecuencia, por las tensiones existentes entre la vida doméstica de la ciudad y la libertad que promete la carretera. (2006: 272)
Esta definição, apesar de incompleta, concentra vários elementos importantes para a compreensão do género. Contudo, e não sendo este o propósito deste estudo, será importante destacar dois pontos que o autor aponta: a ideia de que existe um sentido de procura e a ideia de movimento. Estas ideias são centrais à grande maioria dos road movies[3]. No entanto, como já anteriormente havia sido notado, o road movie, enquanto género que espelha o seu tempo, não é estanque e, como tal, é passível de sofrer transformações a vários níveis. Por isso, ao longo das décadas, o género foi refletindo sobre as diferentes épocas, colocando as mais variadas figuras na estrada em busca de si mesmas. Ao mesmo tempo, esta evolução levou o road movie a sofrer contaminações e a contaminar outros géneros, pelo que é difícil avaliar um filme apenas e só como um road movie. Na sua raiz ele pode ser um road movie, mas também uma comédia ou um drama.
Esta flexibilidade e autorreflexividade faz do road movie um dos géneros por excelência no território e imaginário da cultura americana, pela longa tradição e relação que essa mesma cultura tem com a estrada e a viagem. A liberdade que o road movie permite ao cineasta faz com que a maioria dos realizadores opte por trabalhar com a narrativa de estrada, facto constatado logo a seguir à saída de Easy Rider (1969, Dennis Hopper) – considerado por muitos críticos e académicos como um dos filmes fundadores do género[4] – e continua a verificar-se na imensa produção e na contínua proliferação de road movies quer no espaço americano, quer noutros países, uns mais do que os outros. O Brasil parece ser um desses casos, porque parece estabelecer uma relação especial com o género que tem vindo a utilizar com frequência, especialmente nas últimas décadas, na qual Central do Brasil (1998), de Walter Salles foi marcante. É de notar que, nos últimos anos, o género tem vindo a ganhar força no universo latino-americano, desenvolvendo-se com uma estrutura própria e sendo utilizado, como aponta Alessandra Brandão (2012: 75)
[na tentativa de] responder, ainda que com base em singularidades e aspetos culturais específicos dos espaços latino-americanos, a uma certa (des)ordem mundial atual em que bens e pessoas, fluxos de ordem material e imaterial circulam – e muitas vezes são levados a circular – com a força dinâmica do capital transnacional.
É, como acrescenta ainda a autora (idem), um cinema que atenta nos fluxos e movimentações de uma sociedade globalizada, caracterizada por uma intensa mobilidade. Essa reflexão sobre a circulação e viagem não se fica apenas pela exploração dos movimentos das personagens. Aliás, viagem e movimento são pretextos para questões maiores: transitoriedade, identidade e transformação.
Não sendo, de todo, minha intenção fazer um levantamento exaustivo destas e outras questões afigura-se necessário notar que a última década tem sido especialmente produtiva no que diz respeito ao road movie brasileiro com obras que, longe do cunho contracultural dos anos 60 americanos, refletem sobre a nação brasileira e o mundo. Alguns exemplos, entre vários outros, incluem os filmes Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, Marcelo Gomes); Viajo porque preciso, volto porque te amo (2005, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes); Olhe para mim de novo (2010, Kiko Goifman); À Beira do Caminho (2012, Breno Silveira) ou A Busca (2013, Luciano Moura). Estes são fruto da produção nacional e do forte investimento que tem sido feito no cinema brasileiro nos últimos tempos. Para além desta produção nacional também é de notar produções cointernacionais como o caso do filme Por El Camino (2010, Charly Braun) ou Open Road (2012, Márcio Garcia), colaborações entre o Brasil e Uruguai e Brasil e Estados Unidos, respetivamente. Não só estes dois filmes reforçam a importância do género para a cultura brasileira como demonstram a transversalidade – no sentido em que atravessa fronteiras literalmente – do road movie. Ao mesmo tempo, tanto os filmes de produção nacional como os de coprodução internacional são modelos exemplificativos da complexidade e flexibilidade deste género: algumas destas narrativas evidenciam características que reportam a outros géneros cinematográficos. São dramas, comédias ou documentários que, centrando a sua atenção na viagem, trabalham a paisagem interior e exterior de um país num percurso que é e se quer lento, profundo e reflexivo, uma característica comum a muitos dos road movies contemporâneos que já não centram a sua atenção na velocidade e mobilidade no espaço da estrada.
Esta breve lista exemplifica também, de outro modo, que há material de trabalho a ser explorado pela crítica e que, como aponta Samuel Paiva (2011: 45-49) num artigo sobre a génese do género, está longe de se esgotar necessitando, por isso, de contribuições várias para formar um todo coeso. Porém, e como atenta ainda o autor (2011: 47-49), o road movie brasileiro não está destituído de análise e sublinha algumas publicações de artigos, teses e livros. Das que atentam sobre a produção e realizadores nacionais devem destacar-se o livro de Marcos Strecker (2010) Na Estrada: O Cinema de Walter Salles; a tese de doutoramento de Alessandra Brandão (2009) intitulada Lands in Transit: imag(in)ing (im)mobility in Contemporary Latin American Cinema; a tese de mestrado de Ana Karla Rodrigues (2007) A Viagem no Cinema Brasileiro: panorama dos filmes de estrada dos anos 60, 70, 90 e 2000 no Brasil; alguns artigos dos quais podemos destacar os supracitados (PAIVA, 2011; BRANDÃO, 2012) e dois outros publicados também por Samuel Paiva em 2007 e 2009, respetivamente, ou Romanielo (2013). A estes acrescente-se ainda uma publicação bastante recente editada por Sara Brandellero (2013), intitulada The Brazilian Road Movie: Journeys of (self) Discovery ou ainda uma secção dedicada aos road movies no livro Directory of World Cinema: Brazil, editado por Natália Pinazza e Louis Bayman, também publicado em 2013. Estes não formam uma lista extensa ou exaustiva, mas demonstram que, não havendo uma historiografia do road movie brasileiro, estamos caminhando nesse sentido.
Deste modo, este breve ensaio pretende, de alguma forma, ser mais uma contribuição para o estudo do género ao tentar analisar a viagem no mais recente filme do realizador e ator Selton Mello, O Palhaço (2011), um road movie que explora temas como a identidade, o passado ou a nostalgia e que se revela como uma importante contribuição para o corpus de filmes já aqui citados anteriormente. Assim, este estudo pretende analisar o filme do realizador brasileiro como um road movie que foca a sua atenção na importância do ritual de passagem e na transformação que o protagonista sofre em viagem.
2. O circo chegou à cidade
O filme O Palhaço (2011) é, desde o seu início, uma narrativa marcada pela mobilidade, uma vez que a primeira cena filma uma estrada e a chegada do circo à cidade. A história centra-se na figura de Pangaré (Benjamin – Selton Mello) e seu pai, Puro-Sangue (Valdemar – Paulo José), bem como a restante trupe que compõe o circo. A escolha do circo como espaço familiar evidencia a impermanência, itinerância e sentido de errância dos protagonistas. O circo consegue apenas sobreviver estando em movimento constante, visitando as várias povoações para ganhar algum dinheiro. Entretanto, ao longo do seu percurso, Pangaré questiona a sua própria identidade, naquele que é um filme que reflete sobre a busca interior, o país, a família, o passado e o presente.
Para fazer este multipremiado[5] filme Selton Mello recorreu àquilo que ele chama o “projeto Clint Eastwood” (GOMES, 2011), dominando grande parte do processo de produção. Naquele que é o seu segundo projeto cinematográfico, depois da realização de Feliz Natal (2008), Selton Mello realizou, coescreveu o argumento com Marcelo Vindicatto e produziu o filme. Esta forma de trabalho não só o aproxima do realizador americano Clint Eastwood, como também de Wes Anderson, por este trabalhar em todos os aspetos dos seus filmes, mas igualmente porque O Palhaço ecoa o universo de Anderson, fazendo lembrar filmes como The Life Aquatic With Steve Zissou (2004) ou The Darjeeling Limited (2007), estes dois também narrativas que centram a sua atenção sobre a temática da viagem, família e a questão da identidade.
Aliás, O Palhaço é um filme que apresenta uma certa tradição e influência, pois é possível enquadrá-lo junto a Fellini – lembremos o filme La Strada (1954) – ou Bye Bye Brasil (1980), de Cacá Diegues, para além de toda uma série de referências do universo popular, como Didi da série Os Trapalhões. Destas sugestões visuais e cinematográficas há uma que se destaca: a figura de Chaplin bem como a alusão à história cultural do palhaço que ri por fora, mas está triste por dentro. Centrando-se no universo circense e na história do palhaço o realizador procura, assim, trabalhar sobre um mundo nostálgico. Na verdade, a estrada é utilizada como fio condutor que permite explorar outros dois temas: a busca pela identidade que é também a procura do ator por si mesmo e a questão da busca por um mundo que já se perdeu, mas que não fica destituído de esperança, como iremos ver.
No primeiro encontramos Benjamin – responsável pelo circo – em busca da sua própria identidade, uma vez que questiona a sua própria vocação enquanto palhaço. A metáfora para essa procura é óbvia: Benjamin não tem qualquer tipo de documentação a não ser um certificado amarrotado e isso impede-o, inclusive, de legitimar o próprio circo. A estrada parece ter sido a única casa que Benjamin conhece, sinal de que, em constante movimento, o protagonista não teve tempo para pensar sobre a sua identidade ao contrário do seu pai que aceita com facilidade a sua condição de palhaço, embora evidencie também uma falta de maturidade pela relação que tem com Lola[6]. A acrescentar surge ainda a forma como a ideia de família é explorada no filme. A família circense entra em claro contraste com a família do prefeito da primeira cidade onde o circo faz a sua paragem. A primeira é composta por figuras burlescas e marcadamente marginais em todos os sentidos – relembremos aqui uma outra paragem onde os circenses são vistos como o Outro, uma ameaça, e são levados à delegacia – sobrevivendo de localidade em localidade, por isso mesmo caracterizada por um nomadismo. A segunda, por exemplo, não vive num contexto pobre, como se pode verificar pelo luxo da casa e do jantar que o prefeito dá para os artistas, e não está colocada à margem. Contudo, note-se que a família do prefeito não está destituída de uma certa bizarria: a forma como a câmara insiste nos quadros com cabras que são assustadores e que invadem os sonhos de um dos personagens, o corpo exagerado e grotesco do próprio prefeito que se dá ao humor e, principalmente, a personagem do filho que falha na sua prestação no circo, mas que todos são obrigados a aplaudir.
No road movie as paragens são de extrema importância porque são momentos importantes de revelação, introspeção e tensão. As várias paragens de O Palhaço são disso exemplo. Neles assistimos ao modo de sobrevivência da trupe, aos conflitos internos e externos e à luta constante do personagem principal na busca pela sua identidade. É numa dessas paragens que Benjamin decide deixar o circo e partir pela estrada fora numa viagem de crescimento e procura pelo seu verdadeiro eu. Nesse local o protagonista obtém o bilhete de identidade – conseguindo uma prova material que alivia a sua crise existencial – naquele que é um regresso também do ator à cidade que o viu nascer e, por isso, um retorno às raízes.
A cidade traduz-se num espaço normalizado, no qual Benjamin arranja um emprego estável, mas completamente descaracterizado, como é notado no quarto alugado pelo protagonista. O corpo inerte de Benjamin perante a televisão – símbolo da evolução tecnológica – com o ruído branco a funcionar como uma metáfora para uma sociedade que estava a começar a acomodar-se à imagem televisiva. Essa imagem entra em claro contraste com os vários quadros fotográficos animados do espetáculo circense, que evidenciam uma óbvia obsessão com um passado nostálgico, como nota Andrea Ormond (2011) na sua crítica ao filme:
A própria estética do filme parece atentar para esse “salão dos passos perdidos”, quando coloca os personagens em molduras. Há longas sequências em que o espectador pode olhar para a trupe de Benjamim como se estivessem posando para quadros. A intimidade com a vida do circo confirma a tese da nostalgia: todos sabemos que tal fixação pelos picadeiros já saiu do noticiário há anos. Não é de hoje que a televisão – e a Internet – substituíram a pantomima que fascinava as crianças antigas, sedentas pelas lonas e pelos espetáculos ao vivo.
Estas molduras e a preocupação em centrar o filme no passado leva-nos ao segundo tema explorado. O road movie revela uma atenção especial sobre a paisagem e O Palhaço não foge a essa regra. A viagem é feita por estradas secundárias, de terra batida, desertas. O realizador filma a paisagem de Minas Gerais (onde nasceu) para lá dos grandes espaços urbanos e procura um caminho mais lento e, por isso, mais introspetivo[7]. Na verdade, grande parte dos road movies contemporâneos estão preocupados com um ritmo que não se quer veloz e que espelha um tempo próprio e único da viagem. A paisagem aqui é marcada por uma certa desolação e também permeável a momentos em que todos tentam enganar todos – veja-se que Benjamin e a trupe necessitam, mais do que uma vez, pagar “favores” às figuras da autoridade[8] – mas também por um universo visualmente anacrónico: desde os tons a sépia, às molduras fotográficas, passando pela utilização de notas e dinheiro que já não é usado no Brasil contemporâneo ou, inclusivamente, pela utilização de comediantes que já não estão no seu auge, mas que foram importantes para a cultura popular brasileira. Essa insistência no passado é notória também na forma como o realizador trabalha com elementos da música popular brasileira, pela forma como vai contando, pouco a pouco, pequenas histórias sobre a paisagem brasileira – como a história da personagem Juca Bigode, interpretada por Jackson Antunes, que lamenta o presente e está saudoso do passado.
Acima de tudo, a utilização do circo e da figura do palhaço atentam sobre momentos nostálgicos e com uma certa melancolia que alerta para momentos do passado que se foram perdendo. O circo entra em claro contraste com uma sociedade que evoluía rapidamente e que facilmente esqueceu estas figuras marginais que, para poderem sobreviver, circulam por entre estradas e caminhos alternativos. Apesar de estarmos perante uma sociedade contemporânea dominada pelas novas tecnologias – como a Internet ou a televisão – Selton Mello tenta regressar a um tempo em que tudo era mais descomplicado. Talvez por isso o filme, apesar de não ter uma época definida, se situe entre as décadas de 1960 e 1970, recuando a um período relativamente menos complicado quando comparado com a contemporaneidade. Essa simplicidade é evidente na própria estrutura do grupo circense, pois a sua performance é simples, mas eficaz: as pessoas ficam felizes com a chegada do circo à cidade e estão dispostas a ir ver o espetáculo porque sabem que se vão rir.
Assim, o regresso ao passado é também uma reflexão sobre o presente: a sociedade contemporânea deixou-se levar pelo tecnológico e esqueceu um lado mágico – representado pelo circo – que transporta os espectadores para um outro mundo. Desta forma, Selton Mello parece piscar o olho também ao poder transformador do cinema e da viagem, até porque a narrativa, ao explorar estes temas, não coloca o seu olhar exclusivamente sobre Benjamin. Existem três narrativas paralelas, nas quais é importante destacar: a viagem de crescimento de Puro-Sangue/Valdemar[9], que se torna mais maduro; a viagem de Benjamin, que aceita a sua vocação; e e viagem da pequena Guilhermina (Larissa Manoela), que representa o futuro.
Na primeira, Valdemar termina a sua relação com Lola, aproximando-se mais da sua família circense. No segundo caso, Benjamin, após a experiência no seu novo trabalho descobre que é importante fazer rir. A sequência em que o seu patrão Nei (Jorge Loredo) que é apresentado com um ar austero e sério conta uma anedota e todos se riem revela-se como o momento epifânico para Benjamin. Este compreende agora que a sua vocação é fazer rir os outros, ajudando-os a atravessar as adversidades do quotidiano e, por isso, regressa ao circo. O último caso representa o futuro do próprio circo porque Guilhermina substitui Lola, integrando agora o espetáculo circense. Concentremos a nossa atenção nestes dois últimos eixos narrativos.
3. Rir para não chorar: uma conclusão
No road movie, como aponta Katie Mills (2006: 173), ocorre quase sempre algum tipo de transformação, mesmo que a mudança não seja evidente. A viagem faz com que o protagonista compreenda algo de si próprio que, até então, ainda não tinha descoberto. Durante a viagem de Benjamin há uma imagem recorrente que serve de metáfora para necessidade de viajar do protagonista: as sequências em que os ventiladores surgem como obsessão. Estes representam a necessidade de “ar fresco”, mas também um objeto de desejo e conforto que parece ser difícil de alcançar. Antes de regressar ao circo Benjamin compra um ventilador, sinal de que aceita a sua identidade, compreende a mudança sofrida e decide trazer o conforto para a sua casa, o circo. Ainda neste percurso Benjamin e Pangaré tornam-se um só: Benjamin atua para uma rapariga fazendo-a rir, e conquista o seu coração.
Daí que, a cena do regresso, una pai e filho ambos vestidos de palhaço numa performance em que Benjamin reconhece a sua vocação e onde ecoa uma anterior conversa entre Puro-Sangue e Pangaré, pai e filho: “O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço. E você o que é?” A resposta de Benjamin é a de que, também ele, é palhaço, aceitando assim a herança que o pai lhe quer deixar. O protagonista compreende, do mesmo modo, que a sua viagem nunca poderá ser sozinha, mas sempre coletiva, com a estranha família que compõe o circo e que agora está mais unida, mais completa do que nunca. Mais do que isso, ela surge aumentada e renovada graças à companheira de Benjamin e à performance de Guilhermina.
Este é o outro eixo narrativo do qual a câmara se ocupa, pois Guilhermina representa o futuro do circo. Para compreendermos a sua simbologia talvez seja necessário regressarmos rapidamente ao início do filme. É, por vezes, através do olhar de Guilhermina que a câmara nos mostra a família circense. No início do filme ela segura uma fotografia em que estão todos os elementos do circo juntos. Contudo, Valdemar e Lola estão ligeiramente deslocados para um lado separando-se do restante grupo. Esta imagem indicia uma clara divisão que já não está presente no fim do filme. Com Guilhermina a substituir Lola a família volta a unir-se e há um sentido de renovação que é claro na última sequência de O Palhaço. A câmara, no fim, não aponta o seu olhar para o presente – esse parece ser assegurado por Benjamin – mas sim para a representante do futuro, a pequena Guilhermina. Com ela ecoa, de modo muito óbvio, o nome do circo: Esperança.
Aliás, esperança parece estar presente desde o princípio do filme com as imagens iniciais da Kombi e dos camiões vermelhos a entrar na paisagem árida, com a trupe circense a fazer rir aqueles que mais precisam. O circo ilumina com a sua cor o deserto que atravessa e afirma-se como o espaço do riso e da alegria:
Não há animais adestrados, nem globo da morte ou trapezistas. O Circo Esperança de Puro Sangue e Pangaré reúne artistas mambembes que, com soldo recebido nota por nota, em cruzeiros – em mais uma amostra do espírito anacrônico da empreitada –, e com figurinos toscos, fazem mágica, fingem-se fortes, realizam algumas acrobacias. São constantemente apresentados em planos fixos e relativamente longos que mostram não apenas a lassidão e a vagareza do tempo no sertão, mas agregam-lhes uma tocante profundidade psicológica. Formam uma família, com tudo de alegre, de solidário e de neurótico que habita essa forma social. Fazem, sobretudo, rir, já que são os palhaços, com a imantação que lhes é peculiar, os principais astros a se expressar perante a plateia, fazer as leves piadas de duplo sentido, satirizar a si mesmos no picadeiro, mas também a viver, fora dele, e com toda a melancolia possível, pequenas alegrias e traquinagens. (VAZ, 2012)
A cena final coloca a tónica na ideia de continuidade, não só porque a família do circo parece unida e feliz, mas porque sobrevive e apresenta um futuro sorridente. A imagem de Guilhermina a atravessar a tenda onde se destaca o letreiro com o nome do circo “Esperança” é simbólica de possibilidade. Ademais, esta cena é composta ainda por um momento final em que a artista está deitada na cama, o ventilador apontado a si e, ao lado do ventilador, uma reprodução de São Filomeno, santo protetor dos músicos, dos comediantes e dos palhaços. Esta última sequência coloca o circo Esperança cheio de fé no seu percurso e, acima de tudo, abençoado por uma brisa de ar fresco anunciando um caminho e uma viagem potencialmente carregada de risos, como os próprios palhaços.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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FILMOGRAFIA:
Bonnie and Clyde (Athur Penn, EUA, 1967, 112 minutos, cor, som)
Bye Bye Brasil (Carlos Diegues, Brasil, 1980, 110 minutos, cor, som)
Easy Rider (Dennis Hopper, EUA, 1969, 95 minutos, cor, som)
La Strada (Federico Fellini, Itália, 1954, 108 minutos, preto e branco, som)
Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, Brasil, 2005, 99 minutos, cor, som)
Central do Brasil (Walter Salles, Brasil, 1998, 115 minutos, cor, som)
Feliz Natal (Selton Mello, Brasil, 2008, 100 minutos, cor, som)
Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, Brasil, 75 minutos, cor, som)
A Busca (Luciano Moura, Brasil, 2013, 96 minutos, cor, som)
À Beira do Caminho (Breno Silveira, Brasil, 100 minutos, cor, som)
O Palhaço (Selton Mello, Brasil, 2011, 88 minutos, cor, som)
Olhe para mim de novo (Kiko Goifman, Brasil, 77 minutos, cor, som)
Open Road (Márcio Garcia, 2012, Brasil/EUA, 85 minutos, cor, som)
Por el Camino (Charly Braun, 2010, Brasil/Uruguai, 85 minutos, cor, som)
The Life Aquatic with Steve Zissou (Wes Anderson, EUA, 2004, 119 minutos, cor, som)
The Darjeeling Limited (Wes Anderson, EUA/Índia, 2007, 104 minutos, cor, som)
[1] Investigador no CEAUL (Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa) e leciona a disciplina de Geografia Cultural dos EUA na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Conclui o doutoramento sobre road movie, viagem e cidades. É também tradutor, revisor, escritor e poeta, tendo publicado dois livros infantis e quatro livros de poesia. Escreve regularmente em aescritaemdias.blogspot.com
[2] Apesar de ser difícil chegar a uma definição desta narrativa, uma vez que nem sempre os estudiosos estão de acordo, considero o road movie como um género. Como afirma Jaime Correa (2006: 276), se, por um lado, não podemos ignorar a grande tensão entre o clássico e o moderno no road movie, por outro também é impossível não pensar no road movie como um tipo de cinema com uma linguagem própria e um corpus de filmes extenso com a mesma temática. A isto acresce ainda o tempo histórico que originou o género, bem como uma série de características visuais muito próprias, como afirma Laderman (2002: 4-5). É certo que o road movie foi evoluindo e sofrendo outras influências de outros géneros ao ponto de ser difícil classificar um filme como sendo apenas um road movie, o que acontece com grande parte dos outros géneros devido à grande contaminação, consequência direta da pós-modernidade. Para além disso, a propensão para a intertextualidade e autorreflexividade tornam esta questão ainda mais complicada. Há, por exemplo, ainda quem considere que o road movie é um sub-género por derivar diretamente dos géneros mais clássicos. No entanto, se bem que a estrada e o motivo da viagem podem aparecer em qualquer filme, o que distingue o road movie enquanto género, como afirma Shari Roberts (1997: 50), é a consciência de que a metáfora da estrada serve de recurso estrutural através da interdependência entre a viagem física e espiritual.
[3] Para evitar uma interpretação demasiado simplista da definição de road movie – que ocuparia o artigo por inteiro – remeto a discussão para obras como: Driving Visions: Exploring the Road Movie (2002), de David Laderman ou Road Movies: From Muybridge and Méliès to Lynch and Kiarostami (2008), de Devin Orgeron.
[4] Para críticos como David Laderman (2002), Katie Mills (2006) ou Devin Orgeron (2008), Easy Rider é uma das narrativas fundadoras do género road movie. Ao mesmo tempo, a história do género não é conclusiva a nível dos textos fundadores, até porque existem muitos outros filmes anteriores à narrativa de Hopper que contribuem para a definição do género, como é o caso de Bonnie and Clyde (1967, Arthur Penn). No entanto, o filme de Hopper afigura-se como importante por representar o momento em que o road movie se torna um género distinto, pois a história centra-se explicitamente na viagem.
[5] O Palhaço venceu mais de 26 prémios nacionais e internacionais e chegou mesmo a ser o filme oficial do Brasil para os óscares 2013, mas não foi escolhido.
[6] Lola (Giselle Motta) estabelece uma interessante relação com o nome Lolita, mulher vamp, uma vez que remete para o livro de Vladimir Nabokov, pois Lola tem uma relação com Puro-Sangue e é bem mais nova do que ele e aproveita-se dessa relação para roubar dinheiro ao circo.
[7] É importante explicar que O Palhaço foi filmado ao longo de seis semanas em Paulínia, São Paulo, mas também usou, como cenário privilegiado, Santa Rita de Ibitipoca, Bom Jesus do Vermelho, Conceição de Ibitipoca e Lima Duarte, situados em Minas Gerais, locais que apontam, de alguma forma, para um regresso do ator ao espaço da sua infância e ao passado.
[8] Note-se, por exemplo, a forma como Benjamin tem de dar bilhetes ao polícia para poder manter o circo na cidade; o modo como é obrigado a integrar o filho do prefeito na performance circense para lhe agradar ou o pagamento ao delegado para não ficarem presos.
[9] Atente-se na simbologia do nome do palhaço: Puro-Sangue chama a atenção para a sua identidade enquanto artista – a origem, o primeiro. Quando Puro-Sangue deixa Lola reencontra-se consigo mesmo e, consequentemente, com o seu filho, Pangaré.
Download: Rir para nao chorar – José Duarte