Apontamentos sobre o gênero programa de auditório

Silvia Maria de Sousa é Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua como professora adjunta do Departamento de Ciências da Linguagem. Integra o grupo de pesquisa Semiótica e Discurso (SEDi), investigando textos veiculados no espaço cibercultural. Seu tema de interesse principal é a mídia popular nas suas múltiplas manifestações.

A matéria prima destas casas são os móveis fracos de compensado, as fórmicas, os pés tubulares de metal, o plástico, enfim, tudo o que o comércio impinge e que os refinados consideram de mau gosto. No entanto, com essa matéria prima vai-se compondo o ambiente em que a família se reúne, acolhedor, quente e agradável, onde é bom estar.
Ecléa Bosi

Domingo à noite. Milhares de famílias brasileiras reúnem-se em suas casas e posicionam-se em frente à tela de cristal. Repouso e confraternização. Preparação para a semana que está por vir… Pela fabulosa caixa colorida, homens e mulheres captam, através dos olhos e dos ouvidos, vozes, músicas, coreografias. Neste jogo entre realidade e imaginação, o apelo visual e sonoro da TV envolve sob a capa do entretenimento a esperança de um sonho realizado, que se concretiza no sorteio da casa própria, de um carro O Km, ou quem sabe até de um milhão de reais.

Essa família, que se encontra em sua “quente e agradável” sala, se rende aos luminosos raios da televisão. Na imagem, saltam aos olhos os movimentos das voluptuosas dançarinas, embaladas por baladas repetidas em coro pela platéia que assiste ao vivo ao programa no auditório. Platéia essencialmente feminina, vinda de todas as partes do Brasil em caravanas. Todos estão ansiosos, bradando seus corais, aplaudindo, gritando e, muitas vezes, chorando. Tudo isto tem um motivo: é aguardada a entrada do apresentador do espetáculo.

O show-man desta ocasião, Silvio Santos, o apresentador e ídolo popular brasileiro, personifica o “sonho” que alimenta carentes platéias e famílias. Comunicador e empresário é, também, proprietário do canal SBT – Sistema Brasileiro de Televisão -, no qual apresenta aos domingos o longo “Programa Silvio Santos”.

Considerado por muitos um fenômeno da comunicação no Brasil, Silvio Santos é também uma figura polêmica, que responde a processos por “contrabandear ideias” de TVs estrangeiras; aparece em cadeia nacional negociando com os sequestradores da própria filha; ou ainda tem a imagem transmitida por mais de uma hora na emissora concorrente em desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Tradição, agremiação do carnaval carioca que no ano de 2001 homenageou[1] o empresário em seu enredo. Tudo isso marca o percurso do sucesso de Silvio e de sua emissora, alinhavado por certo instinto, que o conduziu de mascate a mega empresário.

Assim, com a instrumentalização da semiótica do discurso numa das mãos e a curiosidade por esse personagem e os programas que apresenta há meio século na outra, este artigo busca refletir sobre a questão do gênero programa de auditório, por considerá-lo tanto do interesse da teoria semiótica quanto dos estudos da Comunicação.

A pergunta, “como definir os gêneros televisivos?”, parte da problemática do hibridismo que se apresenta na TV, na qual uma bricolagem de elementos se reitera ao longo das grades de programação. Para respondê-la, é preciso recorrer à obra referencial de Mikail Bakhtin e a retomada que dela fez José Luiz Fiorin, à luz da semiótica. Gêneros são formas estáveis de discurso e a estabilidade é chave de entrada de uma análise. Cada programa é um acontecimento, uma efervescência, mas que se conecta a outros do mesmo tipo numa rede isotópica. Para Zilberberg “a perenização dos clichês e a ritualização dos gêneros visam a conter e, por vezes, estancar essa efervescência” (ZILBERBERG, 2006, p. 173) bem como oferecer ao sujeito o conforto do conhecido.

O “Programa Silvio Santos” é, então, representante do gênero “programa de auditório”. Todavia, esse gênero abriga diferentes subgêneros: show de variedades; jogos; disputas; etc.. Na análise aqui empreendida, elegeremos quatro programas organizados em: a) show de variedades: Gente que brilha e Rei Majestade; b) game show: Roda a roda e Topa ou não Topa.

Se parafrasear, dialogar, intertextualizar são formas de construção discursiva, peço licença para “bakhtinizar” uma famosa frase de Greimas: “fora do texto não há salvação”, e dizer que “fora do gênero não há salvação”.  Contudo, Fiorin já alertara para o princípio: “Extra Ecclesiam, nulla salus”, que ecoava no mote greimasiano, o qual o próprio Fiorin retomava para dizer: “Fora da relação com o outro, não há sentido” (Cf. FIORIN, 1994, p.36). A ciranda do discurso se faz, então, de retomada, de relação, de novidade, de repetição. Entretanto cada situação exige um “o que dizer”, que é indissociável de um “como dizer”. É agora Bakhtin quem entra no diálogo para esclarecer que:

Os gêneros do discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível. (BAKHTIN, 2000, p.302)

A teorização de Bakhtin é referencial para a semiótica, uma vez que põe em discussão a importância de entender que a comunicação se dá através de enunciados, nos quais se pode prever a relação entre sujeitos, dotada de intencionalidade, de tomadas de posição, constituindo-se numa relação viva e ativa, que tem no enunciado uma “unidade real”. Além disso, o pensamento bakhtiniano faz emergir a necessidade de se pensar em “gêneros do discurso”, como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Cf. BAKHTIN, 2000, p.279). Para a semiótica, a estabilidade proposta pelo autor russo é importantíssima, uma vez que torna os enunciados passíveis de análise. Embora haja a possibilidade de analisar um enunciado isolado, este não deixa de funcionar no seio de um determinado gênero, sendo dele uma amostragem. Daí, a importância de a análise levar em conta as especificidades próprias de cada gênero, que se concretizam em enunciados. Assim, a proposta deste artigo é explicitar as qualidades do gênero programa de auditório, tomando as formulações de Bakhtin (2000) e Fiorin (2006), a fim de descrever mais embasada e detalhadamente o enunciado-alvo. Entretanto, tendo em mente que tal gênero se manifesta num enunciado televisivo, é necessário atentar para o fato de que este gênero se define a partir de uma estratégia enunciativa sincrética, responsável por colocar em andamento múltiplas linguagens em concomitância. Com efeito, a enunciação, entendida como “instância de mediação, que assegura a discursivização da língua” (FIORIN, 2001, p. 36), atualiza o jogo entre as linguagens de maneira a formar tipos passíveis de identificação. Fontanille destaca o interesse dos semioticistas pela “formação de tipos” ou a necessidade de “categorização”, estratégias que atuam na atividade discursiva. Segundo ele:

Somente o discurso poderá, sucessiva ou paralelamente, graças ao ato de referência, evocar esta ou aquela ocorrência do tipo a fim de colocá-la em cena.

A formação dos tipos é, de certa forma, um outro nome para categorização. É a formação das classes e das categorias que uma linguagem manipula. Ela concerne a todas as dimensões da linguagem: à percepção, ao código e ao sistema. No entanto, a categorização atua particularmente no âmbito do discurso, especialmente porque ela organiza a instauração dos “sistema de valores”. (FONTANILLE, 2007, p. 51)

Tipos, categorias e gêneros estão à disposição dos sujeitos, que em suas atividades discursivas fazem uso, organizando, repetindo, inovando, subvertendo. Voltando ao objeto do presente estudo – programas de TV – sabemos que ao apertar o botão da televisão ou do controle remoto corremos o risco de nos deparar com uma cena repleta de luzes e cores, uma música alta, uma platéia ao vivo aplaudindo freneticamente, bailarinas, dançarinos e uma figura de comando a guiar o acontecimento. A cena descrita não fala de um programa em particular, mas condensa elementos básicos que estão presentes em vários programas e ausentes em outros. Assim, a presença ou ausência de determinados elementos faz ser um tipo de programa e deixar de ser outro tipo. A TV, então, é um objeto que conta com uma variedade, uma infinidade de “eventos audiovisuais”. Estes em comum possuem “apenas o fato da imagem e do som serem constituídos eletronicamente e transmitidos de um local (emissor) a outro (receptor) também por via eletrônica” (MACHADO, 1999, p.144). Cada programa é, por conseguinte, um enunciado concreto, dotado de especificidades que o fazem único. Todavia a manifestação de tais enunciados obedece a regras de certa estabilidade, visível na estrutura composicional, no “volume”, no tema adotado, no enunciatário inscrito e, especificamente no caso em análise, numa determinada estratégia enunciativa sincrética. Evidencia-se, desse modo, a necessidade de buscar caracterizar e definir o gênero que abarca e aglutina certo conjunto de enunciados. Para tratar especificamente da TV, sirvo-me de uma observação de Arlindo Machado, no artigo: “Pode-se falar em gêneros na televisão?”.

De todas as teorias do gênero em circulação, a de Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a mais adequada às obras de nosso tempo, mesmo que também Bakhtin nunca tenha dirigido a sua análise para o audiovisual contemporâneo, ficando restrito, como os demais, ao exame dos fenômenos linguísticos e literários em suas formas impressas ou orais. Para o pensador russo, gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar ideias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. (MACHADO, 1999, p. 143)

Com isso, é possível perceber que os enunciados produzidos por um meio agrupam-se segundo uma determinada base de organização que os torna reconhecíveis, e ao mesmo tempo, garante sua continuidade. O gênero promove, então, certa coerção, que gera a repetição de caracteres fundamentais à comunicação, mas deixa ao mesmo tempo uma fresta por onde adentram a criatividade e, consequentemente, as mudanças. Segundo Bakhtin, são eles, os gêneros do discurso, que “de uma forma imediata, sensível e ágil, refletem a menor mudança na vida social” (BAKHTIN, 2000, p.285).  Essas inevitáveis transformações, que ocorrem ao longo do tempo, possibilitam uma migração entre os gêneros. A criação de um novo gênero é, portanto, sempre fruto de outro que o antecedeu. Este por sua vez antecede outro que virá mais adiante. Entretanto, os gêneros não são puros, havendo sempre uma mistura, uma troca de características que de certa forma torna mais complexa sua caracterização, principalmente com o avanço tecnológico e a proliferação de textos que mobilizam diversas linguagens em sua manifestação, tornando-os cada vez mais híbridos.

Em meio a todo o hibridismo dos gêneros televisivos, Machado destaca dois tipos, que considera exemplares: as formas fundadas no diálogo e as narrativas seriadas. Sendo a TV “herdeira direta do rádio”, as formas fundadas no diálogo encontraram fértil terreno, sendo os programas de auditório um exemplo delas:

Os grandes programas de auditório do rádio nasceram dos programas de calouros. Seu enorme sucesso levou o cronista Caribé da Rocha a lançar a ideia dos “teatros nos rádios”. Em 1938, na Rádio Nacional, seria então escrito e animado por Almirante “o primeiro programa montado do rádio brasileiro”: “Curiosidades Musicais”. No mesmo ano, Almirante criava também “Caixa de Perguntas”, em que dialogava com o público presente e oferecia prêmios aos acertadores do auditório. Para tanto, precisava descer do palco e circular no meio do público de modo a colher as respostas ao microfone. (MIRA, 1995, 124-125)

Dialogar com o público é uma das qualidades essenciais e fundamentais dos programas de auditório. Com efeito, o diálogo é para Bakhtin um dos gêneros de discurso primários, considerados simples, por se constituírem no seio de uma comunicação espontânea. Entretanto, a reprodução de um gênero primário, no interior de um chamado gênero secundário, como o romance, o teatro, ou o discurso científico, por exemplo, faz com que aquele perca as suas propriedades adequando-se ao gosto do autor, do diretor, etc. Assim, a réplica de um diálogo cotidiano tomada como parte de um romance só tem utilidade ou funcionalidade dentro da natureza deste segundo gênero complexo (cf. BAKHTIN, 2000, p.281). Os diálogos estabelecidos nos programas de auditório por mais naturais e familiares que tentem parecer são apenas réplicas usadas na composição da encenação. Observemos este diálogo do Topa ou não Topa:

SILVIO: Luciana, onde é que você está? Vem pra cá, Luciana. Vem pra cá. Aê… Luciana. Muito prazer! O que é isso aí, Luciana?

LUCIANA: É a foto do meu marido e do meu filho.

SILVIO: Ah… veio fazer propaganda do marido e do filho! E precisa fazer propaganda do marido e do filho?

LUCIANA: É que eles não puderam vir.

SILVIO: E o que que tem isso?

LUCIANA: Ah… mas faz parte da minha família, né? É muito importante pra mim.

SILVIO: E você veio, você veio aqui trazer fotografia deles?

LUCIANA: Eles vão torcer por mim aqui!

SILVIO: Atenção… atenção! Moças que querem casar… “ta” disponível… [risos]

LUCIANA: Não… não… não… está disponível, não! Este já é meu!

O trecho acima representa um bom exemplo da maioria dos diálogos apresentados no “Programa Silvio Santos”. O apresentador e a participante parecem bem próximos e familiares. As perguntas apresentam um caráter pessoal e costumam versar sobre a idade, estado civil, profissão e endereço dos participantes. Emprega-se um tom humorístico, e por vezes sarcástico, garantindo a descontração e/ou o constrangimento do participante, e a diversão do apresentador e do auditório. No diálogo em destaque, pode-se perceber que, embora ele simule uma familiaridade, constitui-se na verdade como uma “sabatina”. Nele, o apresentador propõe as questões e delimita o tamanho dos turnos de fala, os quais quase sempre toma por assalto.[2] Antes mesmo de o participante concluir a resposta, o apresentador já está formulando uma outra pergunta. Essa estratégia garante o sucesso do diálogo, pois não há pausas ou falta de assunto entre os interlocutores, como pode ocorrer numa situação real ou não simulada. O apresentador é quem impõe o assunto da conversa, o tom e delimita o tipo e o tamanho das respostas, uma vez que interrompe ou corta a fala do participante quando deseja. A redundância e a repetição também são características marcantes desse tipo de diálogo, que tem como função muito mais compor a cena e cumprir os ritos do gênero em questão do que esclarecer ou informar qualquer coisa ao público. Vejamos um trecho de Roda a Roda:

SILVIO: Bem… aqui estão os fregueses do “Baú da Felicidade”, que estavam em dia com os pagamentos das suas mensalidades… aqui estão para disputar os prêmios do “Roda a Roda”. O seu nome é Andrei?

ANDREI: Isso.

SILVIO: Mora aonde Andrei?

ANDREI: Em Manaus, no Amazonas.

SILVIO: Aí… Amazonense (aplausos). Quem nasce lá em Manaus é manauara…

ANDREI: Isso.

SILVIO: Acertei?

ANDREI: Acertou.

SILVIO: E você Maria Helena. Mora onde Maria Helena?

Mª HELENA: Monte Alegre do Piauí.

SILVIO: Aí… piauiense. (aplausos)

Feliz natal para os piauienses, não é verdade?  Feliz natal para o Hugo Napoleão. Para a esposa dele. E você? Jailson é o seu nome?

JAILSON: Isso.

SILVIO: Mora aonde Jailson?

JAILSON: Florianópolis, Santa Catarina. (aplausos)

SILVIO: Florianópolis, Santa Catarina… então nós temos um catarinense, uma piauiense e um manauara ou do Amazonas… Mais uma competição entre três estados… Vamos ver quem vai ganhar! Vamos ver!

O apresentador, mesmo sabendo o nome de cada participante, faz questão de perguntar. As perguntas redundantes sobre a origem de cada jogador são habituais e contribuem para reforçar a repetição do diálogo bem como para exibir uma ancoragem espacial diversificada, que colabora para a ideia de espalhamento e expansão do público. Além desse diálogo com os participantes, Silvio também dialoga com a platéia fazendo piadas, brincadeiras, explicando as regras do jogo, fazendo propaganda de algum produto, entre outras possibilidades. Dirige-se diretamente ao público que assiste ao vivo e, ao se posicionar em frente à câmera, ao telespectador que está em casa. Dialogar é, então, uma qualidade essencial a esse gênero, ajudando a fazê-lo ser reconhecido como tal. Não se pode esquecer, no entanto, que essa forma de ser já é ela própria fruto de um diálogo, só que mais amplo, com as festas populares, o circo, os programas de rádio e com outros vários elementos que o antecederam e a ele deram origem:

Assimilando elementos do circo e da festa popular, os programas de auditório acabam se tornando uma síntese, “uma nova modalidade de espetáculo de palco”, que Tinhorão descreve como uma “mistura de programa radiofônico, show musical, espetáculo de teatro de variedades e festa de adro”. Como na televisão, os programas de auditório de rádio agregavam uma infinidade de recursos de origens diversas, aliando diferentes tradições culturais como cantores de grande sucesso, humoristas, conjuntos regionais, mágicos e números de exotismo a estratégias comerciais. Os sorteios, por exemplo, são uma tradição das festas de largo, que passam a ser feitos como propaganda do patrocinador do programa. (MIRA, 1995, p.125-126)

A mistura de que fala Tinhorão, citado por Mira, é uma característica própria ao dialogismo discursivo. Um enunciado nunca é, pois, puro e original, mas sim fruto de várias relações em que um dizer é retomado, copiado, reinventado. Os programas de auditório da TV resultam dessa bricolagem do circo, das festas populares, do teatro, dos programas de rádio. São retalhos de culturas e histórias, atualmente alinhavados pelas necessidades mercadológicas da sociedade, vendendo valores, comportamentos e crenças.

Agora é hora de alegria! – a temática

Partindo do refrão da música que precedeu durante anos a entrada do apresentador Silvio Santos no palco: “Agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar!”, é possível perceber que a temática da alegria é largamente reiterada nos enunciados em análise. O sorriso estampado nos lábios do apresentador, ajudantes de palco, bailarinas, participantes e público, serve como um dos principais elementos figurativos a compor o tema em destaque. A imagem de um sorriso pode ser tomada, então, como uma das figurativizações mais icônicas do sentimento da alegria e é emblema do gênero programa de auditório. Estar alegre é uma das condições básicas para participar do espetáculo, e por outro lado uma das estratégias de manipulação por tentação: “venha para cá e seja feliz”. Essa manipulação, no entanto, se dá por meio de duas instâncias[3]: sensível, pelo contato visual, sonoro e tátil com o clima alegre representado pelo rosto que ri, pelos exagerados elementos do Plano da Expressão: cores, sons, movimentos; inteligível, atrelada à compreensão dos papéis a jogar e à aquisição de prêmios, geralmente em dinheiro. Assim, o sujeito é tragado, no nível sensível, pela mistura de cores, sobreposição de luzes, imagens em movimento e pela vibração do som. Já no nível do inteligível aciona-se o sujeito por meio das promessas e ofertas de prêmios. Com base em Barros (2003), pode-se dizer que a figurativização, entendida como “traços semânticos sensoriais” responsáveis por conferir concretude aos temas, acabaria por dotá-los de uma dimensão sensível. Com isso, o tema da alegria, explorado em larga escala no gênero programa de auditório, estaria a serviço do esquema manipulatório que visa modalizar, ou seja, modificar a relação do sujeito com o seu fazer. Desse modo, o telespectador é levado a um querer-ver por meio do contato com determinadas sensações. Analisemos algumas ocorrências de Roda a Roda:

QUADRO 1

VISUAL – Mistura de cores, principalmente azuis e vermelhos brilhantes;

– Intermitência de luzes;

– Movimentação de pessoas e objetos: roletas giratórias, painel iluminado com letras;

– Exposição dos prêmios, como carros, fazendo parte do cenário;

– Sorriso do apresentador, dos participantes e das ajudantes de palco.

VERBAL – Falas do apresentador como “Vai rodando, vai acertando, e vai ganhando”; “Tá vendo, não falei que você ia acertar? Já ganhou!”; “É todo dia que o baú dá casa, dá casa, dá casa…” (Letra da vinheta)
SONORO – Grande quantidade de aplausos, gritos e coro da platéia, música instrumental acelerada, embalando cada jogada;

– Ritmo da fala do apresentador (quase cantada)

– Música da vinheta.

Todos esses elementos figurativos, os gritos da platéia, a vibração dos vencedores, a repetição de refrões, a sequência gradativa da fala do apresentador “rodando/acertando/ganhando”, postos sincreticamente na cena enunciada, criam a sensação de euforia e concretizam o tema da alegria. Paralelamente a isso, aciona-se um regime de crença no qual vencer é a única opção. Vejamos trecho da fala do apresentador, explicando a dinâmica de premiação do carnê do baú:

Se você não ganhar, não se preocupe. Você recebe todo o dinheiro que você pagou em mercadorias de ótima qualidade, em mercadorias de marcas famosas, em mercadorias que serão úteis no seu lar e que farão você comprar um novo carnê…

(Roda a Roda)

O sujeito tentado para e pela alegria tem a certeza da vitória. Ele pode, então, ficar relaxado, despreocupado. O produto anunciado é dotado de confiabilidade e até utilidade. A confiança na vitória, na qualidade das “marcas famosas”, visa garantir a satisfação do cliente e o sucesso nas vendas e na audiência dos programas. Assim, a certeza da vitória por um lado e a empolgação de outro revestem de concretude uma temática explorada exaustivamente. Insistir num mesmo tema, preenchê-lo figurativamente com excesso, acaba por revelar um esquema todo posto em função da manutenção da veridicção, que é a responsável por garantir adesão ao discurso.

Vemos, no gênero em análise, a euforização de vários valores vigentes na sociedade desde que simulem a aquisição da alegria. Para crer ser feliz o sujeito precisa estar em conjunção não só com o dinheiro, mas também com valores como a beleza e o amor, por exemplo. Atualmente, são comuns em programas de auditório quadros no estilo transformação. Estes se caracterizam por transformarem a aparência física do candidato ou até mesmo a casa dos participantes. Majoritariamente do sexo feminino, as participantes realizam uma espécie de reencenação do conto da Cinderela. As Cinderelas contemporâneas, pertencentes aos segmentos economicamente menos favorecidos, esbanjam alegria através de gritos e lágrimas ao serem contempladas com a reforma de um cômodo da casa, ou com a “repaginação” completa do visual através de requintados tratamentos estéticos. No que tange ao “amor”, tais programas muitas vezes se encarregaram de oferecer aos participantes a possibilidade de encontro com parceiros românticos. No SBT, ficou famoso o Namoro na TV, em que casais, embalados pela romântica música “Manuela”, do também romântico intérprete Julio Iglesias, diziam ao final da dança se haveria ou não uma possibilidade de relacionamento.

Especificamente nos programas que compõem o corpus, todos se aproximam pelo conteúdo temático da alegria, que é figurativizado pelos elementos do Plano da Expressão como: cores vibrantes, luzes intermitentes, sons de aplausos e das gargalhadas da platéia, som da voz do apresentador e dos participantes, entre muitos outros. Veicula-se, assim, sob o entretenimento, uma gama de valores sociais. Como a felicidade, muitas vezes transmutada no consumo e na riqueza, é um valor bastante euforizado na sociedade contemporânea, a tematização da alegria, figurativizada nos diversos elementos em cena e iconizada pelo sorriso, é um dos “ingredientes” importantíssimos à “receita” dos programas de auditório.

Com efeito, a caracterização do gênero programa de auditório através de suas regras de composição, temática e estilo, fornece pistas importantes sobre o arranjo interno desse tipo de texto e ajuda na compreensão do papel da TV brasileira ao desvelar ao longo da análise um determinado estilo que se constrói e perdura, trabalhando em favor de um determinado modo de organização social.

REFERÊNCIAS

BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In.FIORIN. J. L. (org.) Introdução à Lingüística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.

BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias.Petrópolis: Vozes, 1986.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

_______. As astúcias da enunciação: as projeções de pessoa, tempo e espaço no discurso. São Paulo: Ática, 2001.

MACHADO, Arlindo. Pode-se f[4]alar em gêneros na televisão? In. FAMECOS, Porto Alegre, 10, 1999.

MIRA, Maria Celeste. Circo eletrônico – Silvio Santos e SBT. São Paulo: Loyola; Olho d’água,1995.


[1] Sobre o desfile de escola de samba, vejamos o trecho da reportagem de Raphael Perret Leal, do Obervatório da Imprensa: “… no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, mais um gol do SBT. A Tradição homenageou Silvio Santos. Apesar do samba medíocre, conquistou o público ao reverenciar uma figura popular. Depois de muito mistério, o empresário decidiu desfilar e apareceu sem cortes na tela da Globo. Sem falar de Lombardi, Ratinho, Hebe e outros figurões do SBT. Os pontos de audiência foram para a emissora carioca. O prestígio, para Silvio. Aproximou-se do público do Rio – dizem que ele não queria desfilar por temer uma possível frieza da platéia carioca, já que tem ciência de que domina muito bem, pelo menos, o gosto dos paulistas – e conquistou-o”.

Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp0711200199.htm

Acessado em: 10/12/2008

2 Os tópicos discursivos se organizam através dos turnos conversacionais, que consistem em cada intervenção de um dos interlocutores, ou seja, o uso que cada falante faz enquanto está de posse da palavra. A Análise da Conversação postula que a alternância entre turnos pode se dar por passagem ou por assalto. No primeiro caso, um falante entrega a palavra ao outro explicitamente, pedindo ao outro que fale, ou implicitamente, ficando em silêncio, por exemplo. Já os assaltos ao turno de fala ocorrem quando um falante interrompe a fala do outro sem ser solicitado ou sem consentimento.

3 Landowski na apresentação do livro: Do inteligível ao sensível (OLIVEIRA; LANDOWSKI (eds.), 1995, p.14) ao definir a figura de Greimas estabelece uma relação entre inteligível e sensível: “a figura testemunhal (e provavelmente um tanto irônica) de um Greimas também ‘duplo’, que nos fala das ciências e da paixão – do inteligível como paixão do sujeito e do sensível (o ‘perfume’ das coisas) como objeto de saber”.

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