Raquel do Monte[1]
Resumo:
A partir da análise do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), refletimos como o espaço no cinema pode ser percebido a partir do movimento. Neste sentido, além de ancorarmo-nos nas discussões sobre a presença do road movie no cinema brasileiro contemporâneo, propomos cruzar alguns apontamentos sobre espaço, tempo e movimento trazidos pelo filósofo Gilles Deleuze.
Palavras-chave: Road movie; Cinema Brasileiro; deslocamento;
Abstract
From the analysis of the movie Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) we can reflect how the space can be seen in the cinema from the movement. In this regard, besides we anchor ourselves in discussions about the presence of road movie in contemporary Brazilian cinema, we propose to cross some pointers about space, time and motion brought by the philosopher Gilles Deleuze.
Keywords: Road movie; Brazilian Cinema, displacement;
Apontamentos para um roteiro de viagem
Há algumas viagens que escapam incessantemente ao nosso desejo de apreensão e relação com o novo espaço, aquele desconhecido. Cada novo passo alcançado aponta para o que é fugidio e encaminha para novos mundos, apresentando afetos diferentes, sensações estranhas, inimagináveis até aquele instante. Na memória que resta dos trajetos percorridos qualquer tentativa de apreensão é redutora, pois o vivido ali é impossível de ser substantivado. O que sobrevive, no entanto, são lampejos de sensações e pequenas frestas aos quais se lançam olhares, num misto de curiosidade e espanto. Quem estava na viagem? Quando ela ocorreu? Qual o destino final? Tudo isso pouco importa, já que, nas cartografias imaginárias traçadas, há uma espécie de latência que convoca à epifania. É assim que nos deparamos, por exemplo, com viajantes como Travis, do filme Paris, Texas, de Wim Wenders, 1984, que, entre paisagens, reaproximações e desencontros, cruza conosco e nos mobiliza a pensar o quão frágil é a nossa memória, a nossa relação com o mundo. Assim, pensar a representação dos sujeitos diaspóricos contemporâneos na produção cinematográfica brasileira é tentar lançar olhares sobre o processo de ressignificação existencial que extrapola a dimensão exclusivamente política e reconstrói novas possibilidades de estar no mundo e, acima de tudo, novas experiências sensíveis. Aqui, ao invés de se pensar o deslocamento organizado em massa e motivado por questões geopolíticas, percebe-se uma pulsão individual que mobiliza a busca e, sobretudo, o reencontro consigo e com o outro. Neste trânsito existencial, o que nos interessa é lançar alguma espécie de percepção acerca de como o processo de mise en abyme[2] construído pelas narrativas reverbera esteticamente o jogo especular do movimento interno e do trajeto empreendido pelos inúmeros Travis que o cinema contemporâneo reduplicou.
É na polifonia das paisagens trans-subjetivas que se encontram inúmeras fraturas existenciais, entre-lugares afetivos que configuram desejos e anseios. É assim que percorremos, por exemplo, as estradas de José Renato, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, dirigido por Marcelo Gomes e Karim Aïnouz em 2010. Na experiência sensível do deslocamento, a transitoriedade e os processos de ordenamento e caos ligados à relação com o espaço vivido colaboram para uma compreensão do fenômeno a partir de um estar no mundo que abandona as metas, que investe no caminho e que se nutre da sua própria mutabilidade, que busca sempre algo, indefinidamente, que se interessa pelos fluxos, pelo perene e que o tempo todo se desconstrói para no segundo seguinte se reconstruir.
Ao fazer o movimento de viajar, de perder-se, de abandonar o que estava prescrito (as rotas) e percorrer este caminho sem forma e sem possibilidade de mapeamento prévio, os personagens de filmes como de Gomes e Aïnouz inscrevem-nos na tela na qual assistimos à nossa própria trajetória e nos convidam para tomar caminhos desconhecidos, até então intransitáveis, e que possivelmente apontam para a tentativa de vislumbrar as veredas das nossas próprias existências. Diante do exposto, interessa-nos compreender a seguinte questão: como a experiência da errância no cinema contemporâneo veicula esteticamente entre-lugares afectivos que especularmente constituem uma forma de existência e um perceber-se que apontam para a representação da relação do Eu com o mundo sensível? A escolha pelo “filme na estrada” na obra estudada permite uma série de reflexões acerca da produção cinematográfica contemporânea brasileira e, mais especificamente, do tipo de diálogo que este cinema tem empreendido em relação ao espaço e quais cartografias são negociadas e apresentas nas obras. Para tanto, partiremos de uma análise que privilegiará o quadro, pois pensar o movimento, o espaço e a paisagem coincide com a reflexão acerca do quadro. Este elemento, que aproxima o cinema da pintura, opera, segundo Jacques Aumont (2004), em vários níveis: no da diegetização: cada quadro é tratado como um mundo ficcional, como uma cena, a um só tempo unitária e passível de ser decupada; no da operação de narração: na colocação em sequência desses segmentos de quadro-segmentos de cena, e, mais surpreendentemente, no raccord entre dois ou vários quadros diferentes. A partir do exposto, infere-se que o quadro fílmico, por si só, é centrífugo: ele leva o olhar para longe do centro, para além de suas bordas; ele pede, inelutavelmente, o fora-de-campo.
Pensar o quadro nos possibilita compreender que a imagem contida nele é em si autônoma e auto-figura em uma espécie de fisicalidade ontológica. Neste sentido, interessa-nos pensar o status quo da imagem a partir do sistema de pensamento deleuziano. Visto que, para Deleuze, segundo Roberto Machado, a análise das imagens cinematográficas parte da distinção entre objetos, movimento e duração, e, acima de tudo, entre a definição do quadro, plano e montagem.
“O enquadramento como determinação de um sistema fechado de elementos; o plano como determinação do movimento que se estabelece no sistema fechado entre os elementos ou partes; a montagem como determinação do todo que dá uma imagem indireta do tempo. (MACHADO, p. 257, 2010.
Em uma outra ponta, mas partindo ainda do aporte metodológico de observar a imagem em si, tentamos perceber empiricamente como esta natureza específica do nosso objeto, sua constituição e sua relação dentro do discurso fílmico pode nos ajudar a pensá-lo a partir da abordagem fenomenológica, já que a mesma convoca à experiência primeira, sem mediação, centrada exclusivamente na relação sujeito-objeto. Partindo, então, da redução fenomenológica husseliana compreenderemos que a nossa relação com o objeto (no caso, a imagem fílmica) é organizada tanto pela percepção externa quanto para as percepções dos fenômenos internos, como uma sensação ou imagem, que correspondem a uma essência tão objetiva quanto a cor ou a forma de um objeto.
1. Primeira parada: o rodie movie no Cinema Brasileiro
O cinema brasileiro contemporâneo pode ser definido como um aglomerado. Há, nos diversos filmes produzidos nas últimas duas décadas, uma multiplicidade de estilos narrativos, olhares, experiências estéticas. A cada caminho deparamo-nos com infinitas possibilidades que refletem maneiras particulares ou universais do fazer cinematográfico. No meio do caldeirão de gêneros e formas, encontra-se o road movie, ou o filme de estrada. Para esboçarmos uma tentativa de compreensão acerca de algumas obras que reverberam este gênero audiovisual dentro da produção brasileira, elencamos o filme Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), dos cineastas Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. A escolha deve-se ao fato inicial de que um dos diretores, Marcelo Gomes, transitou pelo road movie em uma produção anterior, Cinema, Aspirinas e Urubus. Outro fator, talvez o mais importante, vincula-se à questão da produção reverberar escolhas artísticas que nos conduzem a pensar o processo e, simultaneamente, as opções estéticas.
Antes de olharmos em direção aos filmes, pensaremos um pouco sobre a questão das possibilidades de refletir esse gênero audiovisual batizado como road movie. Para alguns a reflexão acerca do gênero possibilita articular uma perspectiva histórica, tal como aponta Rick Altman. Para o teórico americano, o que chama a atenção nesses filmes é o fato deles estarem vinculados de maneira evidente a um processo sócio-político que reflete na forma como o discurso fílmico é construído. A partir das suas palavras, tem-se que o que mais o mobiliza refere-se ao caráter “adjetivo” ou “substantivo” que pode ter um gênero em razão de seu momento histórico, com todos os fatores aí envolvidos. Altman aponta-nos a importância, no caso do cinema americano, dos personagens dos road movies percorrerem a costa Oeste, fato que lhes garantiria o reencontro com a identidade americana e a retomada de uma constituição histórica. Esta perspectiva, que aponta o caráter adjetivo ou substantivo de um gênero em determinado momento de sua história, permite uma ampla abertura para a compreensão de objetos recentes ou ainda pouco estudados, como, por exemplo, os filmes de estrada e, eventualmente, algumas de suas variações ou subconjuntos, como os bike movies (Ex.: A caminho das nuvens – Vicente Amorim, 2003) e os taxi movies. Neste sentido, o pesquisador Samuel Paiva infere também que os apontamentos trazidos por Altman permitem presumir que as matrizes brasileiras do road movie muitas vezes não se explicam segundo os padrões dos Estados Unidos, país considerado por muitos pesquisadores como o lugar de origem desse gênero. Para tanto, Samuel cita o pesquisador americano David Laderman, quando o mesmo afirma que “o road movie surge como uma manifestação dinâmica da fascinação da sociedade americana pela estrada”. Através dos Estudos Culturais, o filme de estrada reflete, de algum modo, a respeito das noções de identidade e nacionalidade e algumas de suas estratégias trazem esses conceitos a tona. A viagem é colocada como o “veículo” que respalda a busca identitária, que reflete num primeiro momento o debate sobre a existência de uma nova estética do cinema e posteriormente a discussão em torno da inclusão do cinema periférico na Grande Indústria, no caso das produções brasileira e latino-americanas.
O road movie aparece então como o veículo ideal para a representação desses sintomas do nosso tempo. Tanto a literatura de viagem, como o road movie, em si, não constituem gêneros fechados, mas uma espécie de recorte temático que pode estar presente nos mais diversos gêneros. Entretanto, é possível desenhar, especificamente no caso do road movie, algumas continuidades, alguns traços característicos que apontam para a cristalização de um gênero road movie, no qual o deslocamento dos personagens serviria simultaneamente como tentativa de escapar do mundo onde vive e de desenhar novos mapas, de prescrever novas rotas, de descobrir novos territórios. (PRYSTHON, 2006, p. 115-116)
No entanto, infere-se que o caso brasileiro em questão traduza um distanciamento com relação à matriz americana e que, neste sentido, seria interessante pensar que tanto os apontamentos feitos pelos culturalistas quanto as características de origem do gênero não apontam para uma totalidade do que se configurou enquanto filme de estrada brasileiro. Abandonando um pouco a perspectiva historicista, seguimos na tentativa de aproximarmo-nos de outra forma de perceber os filmes “categorizados” sob a assinatura do road movie. Este outro olhar seria a abordagem que privilegiaria exclusivamente a experiência sensível mobilizada pelo deslocamento, pela errância e, acima de tudo, pelas cartografias afetivas organizadas a partir do itinerário subjetivo das imagens, das suas articulações e dos personagens.
A partir destes breves apontamentos sobre duas possibilidades de pensar o gênero vamos recortar a obra mencionada do cinema brasileiro contemporâneo –Viajo porque preciso, volto porque te amo – e apresentá-la sob estes dois aspectos.
2. Segunda parada: Notas sobre espaço e paisagem
O espaço é um elemento narrativo de importância fundamental para a constituição fílmica. Ele tem função estruturante, ao mesmo tempo em que é condicionado pela heterogeneidade do movimento do tempo que o conduz, configurando-se no cruzamento entre o espaço diégetico e o representado. Ao longo dos anos, esta percepção da experiência espacial no cinema foi sendo complexificada à medida que as características identitárias e históricas acentuavam a contribuição para a sua construção.
No cinema brasileiro, um “território cenográfico” como o do Sertão sempre foi privilegiado, pois, além da especificidade plástica (vegetação, luz, etc.), o local representa a complexa rede simbólica que envolve o Brasil e que aponta para um entre-lugar da tradição moderna e contemporânea. Nos últimos tempos, a representação da paisagem sertaneja refletiu uma multiplicidade de perspectivas que enriquecem a atualização de um universo significativo, colaborando para a reelaboração do espaço narrativo. O espaço não é um percepto, como são o movimento e a luz, ele não é visto diretamente, e sim, construído, a partir de percepções visuais (AUMONT, 2004). Em outro sentido, observamos, por exemplo, que vários filmes tentam construir um discurso sobre o local, ancorado nas questões relativas à paisagem e ao espaço, no intuito de buscar inventariar e representar uma iconografia cinematográfica nacional, alguns longas-metragens da produção recente têm trazido para a primeira instância narrativa aspectos ligados ao ambiente, à topografia e à geografia local (DO MONTE, 2009).
No caso do estudo acerca da paisagem, considera-se premente pensar esta categoria a partir dos apontamentos feitos por Anne Cauquelin em A invenção da paisagem. Na obra, ela desconstrói a ideia de que a paisagem está vinculada ontologicamente ao natural. Ao delinear a paisagem como artifício e construção, a filósofa francesa colabora para a separação dos conceitos vinculados à paisagem e à natureza, fazendo com que se desloque a reflexão para como o espaço natural é evocado contemporaneamente nos filmes. Neste caso, o processo de naturalização da paisagem interessa-nos no sentido de perceber, por exemplo, como elementos ligados ao campo e ao fora-de-campo contribuem para a mobilização de determinadas experiências do olhar.
Compreender a noção de paisagem como construção e a dissociação do binômio paisagem-natureza contribui para a averiguação da nova ordem que se modela e se estabelece a partir da percepção de que a perspectiva é um artifício que media dois mundos: o representado e o que está fora do projeto de representação. No campo cinematográfico fica ainda mais claro que a utilização da técnica do posicionamento de câmera e enquadramento passa por filtros simbólicos, dotados de antigas heranças. Na elaboração das paisagens contemporâneas, Anne Cauquelin atesta uma interdição de dupla face: de um lado, a paisagem interdita a natureza; de outro, um comentário infinito força essa interdição a se apresentar como a essência natural da paisagem. Do lado “natureza” da prática, com ênfase nos elementos naturais, o estudo dos meios e de suas composições, fauna e flora. Tratar-se-ia, então, de uma “renaturação”. (…) Selecionar plantas adaptadas aos climas, favorecer seu crescimento, descobrir novas espécies ou redescobri-las, harmonizar fragmento e totalidade, criar um mundo à medida de uma atividade paisagista “ecológica”[3].
Pensar a paisagem como uma construção operada pela técnica auxilia no processo de reelaboração da experiência do olhar no sentido de que o mesmo está vinculado ao quadro e este também articula várias camadas da peça fílmica como a diegética e a narrativa. Na busca pela compreensão do espaço é fundamental perceber o quanto o ambiente narrativo em que se desenvolve a história está impregnado de técnica, artificialismos e reconstruções, ou seja, o intuito de estabelecer conceitos separados relativos à paisagem e ao espaço visa acima de tudo desnaturalizar a percepção do mundo natural favorecendo a investigação acerca das posturas relativas à natureza e à relação homem e meio ambiente.
Na dimensão espacial é interessante reconhecer que contemporaneamente o meio ambiente assume uma expressividade antropológica e porque não dizer poética, já que ele abarca mais claramente sua dimensão identitária, relacional e histórica e o seu papel de articulador de uma rede simbólica que envolve o provisório e o efêmero, a individualidade e o coletivo, as subjetividades, enfim, uma série de polaridades que marcam não apenas a percepção geográfica, mas sinalizam as negociações e os jogos visuais e, quiçá, estéticos, articulados na construção do discurso fílmico. Ainda sobre a questão do espaço, é conveniente diferenciá-lo da ideia de local. Para Michel de Certeau, o primeiro é um “lugar praticado”, um cruzamento de forças motrizes: são os passantes que transformam em espaço a rua geometricamente definida pelo urbanismo como lugar. Então, para o filósofo francês, o espaço é a animação e o conjunto de elementos vinculados ao lugar.
Terceira parada: notas filosóficas sobre as imagens
Ao evocarmos aqui a contribuição do filósofo francês Gilles Deleuze, consideramos inicialmente dois aspectos fundamentais: a tentativa de escapar ao máximo de uma aplicação direta das reflexões deleuzianas no nosso objeto, ao contrário, o texto filosófico nos serve como ponto de partida para esboçarmos uma proto-sistematização do nosso pensamento que implicará na construção de novas formas de nos relacionar com a obra em questão, o nosso segundo aspecto. O projeto esboçado pelo autor em Cinema 1 e 2, que implica em pensar o campo cinematográfico como aquele que possibilita a expressão de novos meios filosóficos, ou seja, as obras fílmicas trazem em si questões que ultrapassam a dimensão estética e vincula-se à metafísica e à ontologia. Essa ideia já havia sido exposta em Diferença e Repetição e será plenamente incorporada em O que é filosofia? Levar em conta este movimento que Deleuze faz para pensar o cinema nos faz rever a partir de outro modo de articulação do pensamento quais singularidades e sistematicidades conceituais estão em jogo na narrativa fílmica.
A reflexão de Deleuze acerca dos dois regimes de imagens – a imagem-movimento e a imagem-tempo – aponta como marco da transição o advento da II Guerra Mundial. Para ele, o episódio histórico e suas implicações no campo cinematográfico traduz um movimento de autonomia da imagem, visto que, como produtora de pensamento, ela apresenta a partir do anos 40 do século XX uma temporalização, uma nova forma de percepção e experiência temporal. De alguma maneira o que distinguiria os dois tipos de imagens seria a sua relação com o tempo. Na imagem-movimento o tempo é experienciado indiretamente, através do movimento. A imagem-tempo contrariamente apresenta o tempo de forma direta sem a mediação do movimento. Enquanto a imagem-movimento dá uma representação indireta do tempo, isto é, mostro o tempo através do movimento, representa o curso empírico do tempo, a imagem-tempo, uma apresentação do tempo puro, livre do movimento. (MACHADO, p.248, 2011)
Um outro ponto que nos chama a atenção é que não consideramos as duas imagens opostas e que a passagem de uma para outra não representa uma ruptura. É o que Rancière vai defender ao elencar apontamentos sobre os livros Imagem-movimento e Imagem-tempo:
A ruptura do “esquema sensório-motor” não aparece, de modo algum, como um processo que se possa designar através de caracteres precisos na constituição de um plano ou na relação entre dois planos. Sempre, com efeito, o gesto que libera as potencialidades as encadeia de novo. A ruptura está sempre ainda por vir, como um suplemento de intervenção que é ao mesmo tempo um suplemento de desapropriação. (…) A oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento é assim uma ruptura fictícia. Sua relação parece bem mais uma espiral infinita.[4] (RANCIÈRE, 2011)
Há uma diferença de lugares conceituais que deve ser percebida com relação à leitura de Rancière sobre Deleuze. Primeiro, no que diz respeito a inferência de que Deleuze defende que na forma substantiva do pensamento, a imagem-tempo, paga tributo à teoria modernista. No entanto, para o autor de A Partilha do Sensível, o conceito de modernidade artística é redefinido a partir da ideia de regime estético da arte:
“O que opõe esse regime ao regime representativo clássico é com efeito uma ideia diferente do pensamento sobre a obra na arte. No regime representativo, o trabalho da arte é pensado sobre o modelo da forma ativa que se impõe à matéria inerte para submetê-la aos fins da representação. No regime estético, essa ideia de imposição voluntária de uma forma a uma matéria é recusada. A potência da obra passa se identificar a uma identidade dos contrários: a identidade do ativo e do passivo, do intencional e do não-intencional”[5]
Deleuze pretende, ao abordar o universo de imagens cinematográficas, recolocar a percepção nas coisas, constituir uma “ordem” da arte que devolve o mundo a sua desordem essencial. A classificação taxionômica pretendida das imagens do cinema é na verdade a história de uma restituição das imagens-mundos a elas mesmas. É uma história de redenção (RANCIÈRE, 2000. p. 9)
Nas suas reflexões, Deleuze aponta a relação existente entre o espaço e o movimento a partir do comentário à tese de Bergson. Sobre o movimento, podemos pensá-lo a partir de um duplo: o da imagem e o em si. Assim, infere-se que o movimento reproduzido pelo cinema é artificial, se pensarmos que ele representa a articulação de 24 quadros por segundo. Já o movimento percebido não é artificial pois o captamos como um todo, sem partes decompostas. Do ponto de vista da percepção cinematográfica, o movimento não é acrescentado à imagem, ele se encontra em cada imagem. (MACHADO, 2010, p. 250).
Para nossa reflexão interessa ainda o conceito deleuziano de espaço qualquer. Vinculado à noção de afeto, este conceito está também na gênese da constituição da imagem-tempo. De acordo com Roberto Machado, ao sintetizar o filósofo francês, a imagem-tempo, por um lado, é um espaço tátil, singular, não homogêneo, desconectado, que perdeu suas coordenadas como relações métricas; por outro, é um espaço de conjunção virtual, puro lugar do possível, que abole as distinções espaciais, permitindo que qualquer plano possa adquirir o estatuto de primeiro plano. (MACHADO, 2010. p.263) Neste espaço qualquer a potência do inter-mundo e também a da subjetividade é alçada e ressignificada.
4. Viajo porque preciso, volto porque te amo
Duas premissas ficam claras logo nas sequências iniciais de Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010): reconhecer a geografia favorece o reencontro com a própria subjetividade; e o espaço funciona como o espelho da existência. Narrativamente o filme é construído a partir da tentativa de elaborar uma arqueologia do local, o sertão. Em quase todos os planos há a presença da natureza, que apresenta-se subjetivada pela percepção solitária e desamparada do geólogo José Renato. Em contrapartida, seu olhar positivo, impregnado do discurso científico, tenta dar conta racionalmente daquele ambiente. Na tentativa de apreender o local, ao descrever, anotar, medir e classificar, o personagem tenta entrar em equilíbrio, já que o mundo natural é apresentado, a partir da sua narração, como o locus da ordem e da harmonia. O processo de reencanto da natureza é acompanhado pela dinâmica que pontua a emoção do narrador.
O filme realizado por Marcelo Gomes e Karim Aïnouz é constituído de imagens com uma forte ancoragem no documentário, articulando um jogo que aproxima e incorpora ficção e o que convencionamos chamar, a partir da referência do documentário clássico, de linguagem documental. Apesar das estratégias fílmicas convidarem nosso olhar para perceber o processo de construção do discurso narrativo, voltamo-nos para outros aspectos que estão inseridos dentro da imagem de Viajo porque preciso, volto por que te amo.
No deslocamento empreendido pelo personagem (considerando que o personagem, segundo a ótica deleuziana, expressa os conceitos) observa-se que o movimento tem uma dupla função na narrativa: ele não só articula a documentação do espaço feita pelo protagonista, como também mescla a ficção ao gênero documental, já que ao perceber o outro ele aciona estratégias do documentário, como o depoimento dos personagens, todos voltados para a câmera.
“O sentimento que deixa Viajo é de perda. Não é apenas a confissão de Zé Renato abandonado pela mulher amada que nos comove. O desvendamento progressivo da situação e as imagens e seu ritmo vão aos poucos nos provocando uma melancolia pela perda de não sabemos o quê, não a perda de algo, mas a perda em si, irreparável e definitiva” (BERNARDET, 2011)
O processo de luto vivido pelo personagem representa as fraturas existenciais – afetivas e sensórias – incorporadas e amplificadas na experiência resultante da relação sujeito-objeto. Toda a percepção do espaço é colocada a partir de uma visão plástica, na qual o mundo é captado através de um olhar que busca o mundo das formas primárias, as que contêm poucos significados e muitas qualidades sensoriais. Na busca ontológica pela experiência sensível provocada pelo deslocamento e pela percepção, percebemos as intersecções entre o eu e o mundo: o vivido se reconfigurando a partir da relação entre o mundo sensível e o mundo histórico, os intermundos (MERLEAU-PONTY, 2001). É no jogo especular caracterizado pelo que é percebido através da experiência sensível e o que é colocado pelo olhar da câmera que percebemos as dobras, o contato da imagem com as bordas do caos.
Paralelamente, há um discurso concretizado pela voz over do protagonista-narrador-desencarnado que é construído pelo afeto, pela punção. Aqui cabe uma ressalva sobre o que entendemos pelo termo afeto: variações da potência de ser e agir dos corpos ante o mundo. No discurso, todos os espaços são materializados pela subjetividade e pela forte relação com o extracampo. Talvez em alguns momentos de Viajo nos aproximamos da imagem-mental deleuziana, a que toma por objeto de pensamento, objeto de percepção, que tem uma existência própria fora da percepção.
É uma imagem que toma por objeto relações, atos simbólicos, sentimentos intelectuais. Esta imagem mental é uma imagem relação: ações, afecções e percepções se enredam em um grupo de situações que começa a escapar do sensório-motor. (MACHADO, p.268, 2011)
Apesar das fraturas, há uma colagem brutal de som e imagem que se distancia da proposta eisensteineana da montagem dialética, por exemplo, e envolve em névoa o entre-lugar afetivo. A cartografia desejante construída por José Renato com categorização aristotélicas, com suas percepções cartesianas de topos esvazia a pontencialidade, a força bruta da imagem do homem ante ao mundo natural sem mediação. Talvez a ideia da passagem, ponto central do road movie, coloque-nos diante de um desejo que ao invés de se perpetuar ad infitum se materializa pontualmente e é seguido e acometido pela racionalidade articulada na montagem, fruto da ratificação dos discursos empreendidos pela voz over e pelo enquadramento da câmera.
A escolha pela incorporeidade convida-nos a pensar que o regime de imagem pode-se expressar no não-visto, mas ser excessivamente percebido, já que só olhamos o mundo através do seu olho-câmera. Este parece-nos ser uma espécie de mutação da imagem afecção deleuziana, pois a expressividade não está no close, que é algo que beira a institucionalização do afeto, mas está na imagem presumida, nas fatias da natureza que escapam, no não-visto, mas sentido e assim corporificado. Uma sutileza deste procedimento pode ser sentida se retomarmos a noção de espaço qualquer apontada por nós no ponto anterior. A autonomia temporal e espacial produzida pelo afeto posto em evidência articula um espaço singular, que reverbera potências, que extrapola o plano da imanência e encontra-se com o virtual. Aqui cabe ainda refletir como a temporalidade é apresentada na obra cinematográfica. Ela encontra-se em um fluxo, no qual passado e presente coexistem. O pretérito impregna o atual e o atual está impregnando o passado.
É o retorno à crença no mundo que o discurso construído no filme Viajo porque preciso ressignifica. Esta crença ratificada pela viagem apresenta-se fraturada, mas a transitoriedade, o processo contínuo de territorialização e desterritorialização colaboram para uma experiência de nomadismo ontológico que coloca em devir a existência e consequentemente a própria constituição da imagem cinematográfica. Na tentativa de reconstituir, sob ouros olhares, antigos espaços, a narrativa busca, contraditoriamente, à primeira vista, retornar à tradição, à raiz, ao que restaura a ancestralidade nômade. Assim, o deslocamento serviria como o instrumento motor do encontro com o perdido, possibilitando a reificação da tradição ancestral.
Todas as características basilares do gênero – ideia de viagem, transformação, busca – servem para enquadrar um circuito fechado que ora dialoga, ora rompe com as relações espaço-subjetividade. A mobilidade percorre circularmente topos afectivos e geográficos possibilitando um devir imagem que é ao mesmo tempo geminado e abafada pela articulação dos planos, mas que no entanto, nos sugerem estar diante de um entre-lugar. Se a forças paralelas se encontram? Talvez não saberemos dizer. Entretanto este diálogo instável espaço-subjetividade nos coloca diante de uma nova possibilidade de experiência sensível.
Apreciações finais
Concluindo, no exemplo explicitado juntamente com as considerações de ordem filosófica, observamos que houve uma superação da forma clássica, de matriz norte-americana, de apresentar a questão do deslocamento viabilizado pelo filme de estrada. Abandonam-se as motivações sócio-históricas movidas pela busca identitária e encenam-se as demandas subjetivas que têm como combustível o reencontro com afetos, percepções e sensações diversas das eleitas pela tradição. O deslocamento contemporâneo trabalha em uma dimensão de um discurso pautado em uma trajetória que produz afetos e que está vinculada intrinsecamente à dimensão subjetiva. No caso de Viajo, a ênfase da experiência que é visitada na estrada volta-se para o processo, no sentido de que, a partir do discurso fílmico, o que se manifesta mais explicitamente é a forma como o personagem capta e vivencia o trânsito.
Se antes tínhamos o espaço percorrido com as aspirações plásticas e alegóricas, tal qual nos filmes Jorge, um brasileiro (Paulo Thiago, 1988) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), por exemplo, hoje, no caso de Viajo, o road movie viabiliza uma possibilidade de apreender um espaço ancorado em uma geografia afetiva e em uma nova forma de apreensão do mundo sensível e estético. Um topos que permite a ressignificação do jogo especular mobilizado pela opacidade e transparência da linguagem cinematográfica.
Referências
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[1] Raquel do Monte é doutoranda em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco. (rdomonte@gmail.com) Pesquisa a errância no cinema contemporâneo e interessa-se pelas questões que envolvem a experiência estética e a sua dimensão ontológica veiculada em obras fílmicas.
[2] Mise em abyme, também conhecido como construção em abismo é um termo que indica a constituição de meta narrativas dentro de narrativas, ou seja, filmes sobre os fílmes. Categorias de obras de arte desdobradas em si mesmas. O termo foi tomado de empréstimo da heráldica e implica quando no interior de um brasão, um segundo brasão reproduz o primeiro em tamanho menor, num jogo especular. No caso do cinema filmes como 8 ½ de Fellini nos indica este tipo de construção. Ao nos referirmos ao termo temos por objetivo pensar que há um jogo especular de busca que esta imantado tanto nos personagens como no próprio fazer fílmico.
[3] Anne Cauquelin. A invenção da paisagem. P. 166 e 167.
[4] RANCIÈRE, Jacques. De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema. Tradução: Luiz Felipe G. Soares. Artigo publicado no site www.intermidias.com. Acesso em 21 de dezembro de 2011.
[5] [5] RANCIÈRE, Jacques. De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema.p. 16. Tradução: Luiz Felipe G. Soares. Artigo publicado no site www.intermidias.com. Acesso em 21 de dezembro de 2011.
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