Freud e Méliès: cinema, sonho e psicanálise

Ronis Magdaleno Júnior[1]

Resumo: Cinema e Psicanálise são duas áreas que se sobrepõem em vários aspectos. Há uma coincidência, não casual, do período em que surgem no final do século XIX. Georges Méliès e Sigmund Freud são dois personagens intimamente relacionados à criação do Cinema e da Psicanálise, e, a partir de suas produções, do lugar do sonho na Cultura. Procuramos fazer uma aproximação das criações destes dois importantes personagens e apresentar suas contribuições para a Cultura.
Palavras-chave: Cinema, Georges Méliès, Psicanálise, Sigmund Freud, Sonhos.

Freud e Méliès: cinema, dream and psychoanalysis

Summary: Cinema and psychoanalysis are two areas that overlap in several aspects. There is a coincidence, not casual, of the period in which they appear in the late nineteenth century. Georges Méliès and Sigmund Freud are two characters closely related to the creation of cinema and psychoanalysis, and from their productions, of the place of the dream in culture. We seek to make an approximation of the creations of these two important figures and present their contributions to culture.
Keywords: Cinema, Georges Méliès, Psychoanalysis, Sigmund Freud, Dreams.

A Cultura expande-se acompanhando o desenvolvimento do Homem, e, de tempos em tempos, produz indivíduos com capacidades singulares para apreender a demanda humana em momentos chave da História. Nesse sentido, podemos dizer que não foi por acaso que o Cinema e a Psicanálise nasceram no mesmo momento histórico: a Europa do final do século XIX. Nesse momento, no qual a Ciência procurava ganhar espaço sobre as crenças, sobre os dogmas religiosos e sobre as produções humanas, tanto as externas como aquelas de foro íntimo, surgem os Irmãos Lumière e Sigmund Freud.

O ano é 1895. Os irmãos Lumière realizam a primeira projeção pública de um filme na história da humanidade, nos subterrâneos do Grand Cafè de Paris. Não muito longe dali, em Viena, Sigmund Freud e seu amigo e professor Joseph Breuer lançam aquela que é a primeira apresentação pública do trabalho psicanalítico, “Estudos sobre a Histeria”, na qual expõem as primeiras ideias sobre o Inconsciente, a essência da nova ciência que nascia e que ganharia o nome de Psicanálise.

Ao saber das atividades dos irmãos Lumière, Georges Méliès, uma curiosa figura e mágico ilusionista de Paris, quis comprar um cinematógrafo para utilizá-lo em seus números de mágica. Tal aquisição foi desestimulada pelos criadores da máquina com o argumento de que o aparelho tinha finalidade científica e que não daria certo se tentasse usá-lo como entretenimento. Méliès insistiu e acabou por conseguir um aparelho semelhante na Inglaterra e, a partir dele, tornar-se o primeiro grande produtor de filmes de ficção voltados para o entretenimento, sendo considerado hoje o pai dos efeitos especiais. Produziu durante a vida mais de 500 filmes, sendo sua primeira produção, datada de 1896, Une partie de cartes.

Une partie de cartes (1896)

Poucos anos depois, em 1899, tanto o Cinema como a Psicanálise tinham feito progessos importantes. Georges Méliès produz Cendrillon, a primeira produção cinematográfica em forma de narrativa fantástica, e Sigmund Freud termina a redação daquela que seria sua obra seminal: “A Interpretação dos Sonhos”, duas inovações que introduziam um novo paradigma na Ciência e na Cultura, ou seja, destacar o lugar do sonho e da fantasia entre os mais nobres anseios humanos.

Assim como os irmãos Lumière, que idealizavam o uso científico do cinematógrafo, a intenção de Freud era desenvolver um instrumento científico para investigação dos sonhos, para desvendar seus sentidos e para compreender o funcionamento mental normal e patológico. “A Interpretação dos Sonhos” sempre foi considerada por ele como sua obra mais importante, tendo mesmo chegado a afirmar que um insight como este sucede a alguém apenas uma vez na vida. Contam seus biógrafos que Freud guardou o livro já pronto por um ano, para que fosse publicado apenas na virada do século, em 1900, tamanha era sua expectativa quanto ao seu potencial transformador da Ciência e da Cultura, opinião que manteve apesar da desilusão inicial que sofreu com a venda de apenas  351 exemplares nos primeiros 6 anos após sua publicação.

Ainda que fortemente influenciado pelo positvismo, hegemônico da época, Freud criou uma revolução ao introduzir no corpo teórico da Psicanálise, elementos praticamente proscritos da chamada ciência oficial, entre eles, o sentido dos sonhos, a sexualidade, o Inconsciente e a perversão como constitutiva do indivíduo, mesmo daqueles com os mais altos princípios e valores morais. De algum modo, Méliès, ao trangredir a imagem e a realidade com o recurso dos efeitos especiais que criou, também obrigou, lançando mão da Ciência e de sua coirmã a Tecnologia, um redimensionamento do conceito de Verdade que se apoiava nos sentidos e na razão. Isso sem falar do efeito transgressor do elemento erótico claramente presente nas imagens criadas por ele, como no filme L’Eclipse du Soleil en Pleine Lune, de 1907, no qual o astrônomo (representado pelo próprio Méliès) observa com um telescópio um eclipse solar. A lua ao passar pelo sol delicia-se prazerosamente desse contato, expressando em sua face o gozo sexual, momento em que o astrônomo, excitado com o que vê debruça-se mais e mais da janela e acaba caindo para fora do prédio, tamanha a turbulência emocional que as imagens vistas provocam nele. Tudo se passa numa aparente inocência, mas tendo como pano de fundo o coito e a escopofilia, elementos constitutivos da cena primária que introduz a criança no complicado mundo da sexualidade adulta, campo tão extensamente explorado por Freud a partir dos “Três Ensaios da Teoria da Sexualidade” (1905).

L’Eclipse du Soleil en Pleine Lune (1907)

A perversão da realidade a partir de imagens gera um estranhamento e mesmo um desconforto no espectador, semelhante ao incômodo provocado por Freud ao afirmar que somos todos crianças perversas polimorfas no Inconsciente, civilizados apenas à custa da neurose (FREUD, S., 1905). Contudo, é justamente por introduzir o estranhamento que, tanto o Cinema como a Psicanálise, causam o fascínio que é responsável pelas suas existências vigorosas até os dias de hoje.

Historicamente, o filme de Méliès que primeiro realiza a fusão da Ciência com o irracional, do mesmo modo que a Psicanálise criada por Freud, é Cendrillon, de 1899, a primeira produção em forma de narrativa fantástica que mescla elementos de irrealidade e realidade.

Cendrillon (1899)

Nesse estilo, o fantástico e o real estão de tal maneira entrelaçados no argumento, que se torna praticamente impossível isolar um do outro. Ray Douglas Bradbury (citado por CERQUEIRA, D.D.P. 2005), chega mesmo a afirmar que um contador de histórias fantásticas não pode aspirar a outra coisa que induzir no leitor a experiência da presença da irrealidade da realidade, algo que poderíamos considerar um campo próximo ao do sonho, que é real e fantasia ao mesmo tempo. TODOROV reforça esta ideia ao propor que o fantástico “é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (tradução livre do autor, p. 29). Ainda que esse autor se refira especificamente à narrativa fantástica, sua fala abarca precisamente a experiência emocional de estranhamento que temos frente a nossos próprios sonhos, essa hesitação que é consequência dos lugares aos quais somos lançados ao sonhar, sobretudo no momento em que acordamos: Como é que fui sonhar isto? Em tempo, foi esta a indagação que levou Freud a lançar-se na exploração do sentido dos sonhos, fundamentando uma metapsicologia que se tornou o pilar de sustentação de toda a teoria psicanalítica.

O estranhamento é a experiência emocional par excellence frente àquilo que é ao mesmo tempo familiar e não familiar, e que constitui a essência do fantástico e dos sonhos. Ao estudar este fenômeno, Freud (1919) lançou mão da concepção de Schelling acerca da palavra alemã unheimlich, ou seja, “tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz” (p.282). O que produz esse tipo de experiência é tudo aquilo que se refere a formas superadas de pensamento, como o animismo, a onipotência do pensamento e, sobretudo, o retorno do recalcado. Desse modo, partindo da angústia que necessariamente acompanha a experiência do unheimlich, Freud propõe, entre os exemplos de coisas assustadoras, a existência dessa categoria especial em que o elemento que amedronta remete a algo reprimido que retorna. É a essa categoria de coisas assustadoras que denomina unheimlich, e que remete a experiência emocional frente aos sonhos, ao sintoma psíquico e, porque não dizer, frente às construções fantásticas de Méliès e seu cinema.

Na segunda metade do século XIX, os “théâtre d’ombres” eram comuns e muito apreciados em Paris, sendo os espetáculos realizados com a ajuda de silhuetas animadas por fios, colocadas entre uma fonte luminosa e uma tela, que representavam reproduções animadas de questões humanas. Estas apresentações colocavam em cena a relação do Homem com sua imagem, com seu duplo, com sua sombra e com sua identidade, ou seja, com aquilo que remetia à parte recusada deles mesmos ou àquela parte reprimida pela sociedade, sendo, nesse sentido, os ilusionistas agentes de uma espécie de retorno do recalcado social por meio do espetáculo popular (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Era nesses mesmos lugares públicos que ocorriam os espetáculos de hipnotismo, através de técnicas que combinavam artifícios óticos, processos mecânicos, a destreza do ilusionista e a sugestão. Para estes ilusionistas, sugestionar era desviar a atenção, ou seja, jogar com a diferença que existe entre a atenção fixa sobre um ponto e a atenção flutuante, sendo aquilo que opera na sombra, na parte escondida dos olhos, o que permitia a execução do truque.

Estas apresentações refletiam os desejos de um público que queria ser chocado pelo que via, o gosto pelo irracional e pelo fantástico, em pleno auge da lógica racional. Estava nesse ponto o caráter subversivo destas apresentações teatrais, assim como o caráter subversivo da Psicanálise estava em revelar o duplo e a cisão de cada indivíduo, sendo o Eu social que apresentado aos outros apenas uma parte civilizada de um todo que permanece selvagem e perverso, arredio a qualquer tentativa de dominação. Foi o anseio popular por expressar-se, ou por sentir-se representado, que permitiu o nascimento da Psicanálise e do novo gênero teatral proposto por Méliès, que conjugava uma aparelhagem complexa com jogos de ótica, temas fantásticos e cenários em transformação.

Méliès era fascinado pelas possibilidades e pelos truques oferecidos pelas artes mágicas ligadas às técnicas cinematográficas inovadoras da época, tendo sido este o motivo que o levou a comprar, em 1888, o teatro Robert-Houdin, que se tornou o “Théâtre d’illusions” mais reputado da época. Inicialmente, empolga-se em poder integrar a mágica que constitui a reprodução de imagens reais com seus programas no teatro, mas logo vê nisso uma possibilidade maior e monta, na casa de seus pais, seu próprio estúdio cinematográfico (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Lança-se na árdua tarefa de criar filmes, mas não filmes comuns e sim aquilo que ele próprio considerava o gênero mais difícil, ou seja, o gênero “vues fantastiques” que, em suas palavras, tinha como objetivo “realizar tudo, mesmo o impossível, e a dar a aparência de realidade aos sonhos mais mirabolantes, às invenções mais improváveis da imaginação (…) tornar real o impossível” (Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Tratava-se, portanto, de um projeto de colocar em imagens coisas que, até aquele momento, nunca tinham sido vistas, sendo um modo sem precedentes de criar ilusões e libertar a imaginação. Provavelmente a novidade não tenha sido absoluta, pois, à noite as pessoas sonhavam com coisas semelhantes àquilo que Méliès projetava na tela, e que Freud veio da descobrir serem montagens psíquicas dirigidas pelo desejo. Parte do impacto causado pelo cinema de Méliès remeta, talvez, a essa familiaridade do público com seus próprios sonhos e com seu próprio desejo, que agora podiam ser compartilhados ali na tela das salas de exibição, ainda com o atenuante de ser algo fora deles, projetado, o que permitia o relaxamento do recalque, a diminuição do conflito, podendo, em decorrência disso, ser experimentados com prazer.

A produção de Méliès que talvez melhor expresse esse gênero seja “Le Voyage dans la Lune” (1902), considerado o primeiro filme de ficção científica da história, uma vez que concretiza, na tela, o desejo do homem de chegar à lua, muitos anos antes de haver qualquer possibilidade de uma realização dessa espécie pela tecnologia. Curiosamente, é nesse ponto que se encontra a mais profunda oposição entre Freud e Méliès, pois enquanto este reivindicava o direito à ilusão e apoiava toda sua arte na criação dela, Freud considerava as ilusões restos de um funcionamento psíquico primitivo, que deveriam ser abandonados após sua elaboração psíquica através do processo de análise de sua lógica infantil.

Para Freud (1927) a ilusão seria uma forma primitiva de realização “dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade” (p. 43), residindo sua força precisamente na intensidade desses desejos. Nesse sentido, a ilusão não seria um erro comum de avaliação da realidade, mas a tentativa de suprir uma necessidade real e o desamparo por meio de um recurso psíquico primitivo, que, para Freud, não teria qualquer função evolutiva para o sujeito, mas perpetuaria um modo de atividade mental infantil (FREUD, S. 1927). No final das contas, Freud propõe como atitude evoluída para a espécie humana funcionar sob a “primazia do intelecto” (p. 68), na qual a razão sobrepor-se-ia à ilusão e aos enganos advindos dela. Esta oposição de Freud à ilusão se concretiza quando questiona: “de que vale a miragem de amplos campos na lua, cujas colheitas ainda ninguém viu?” (p. 64). Méliès já havia visto e conquistado, há alguns anos, esses campos e deixado lá sua marca, que se eternizou na imagem da lua perfurada pela cápsula interplanetária sonhada por ele.

Le Voyage dans la Lune (1902)

Entretanto, apesar dessa oposição, foi justamente o espetáculo da magia em sua forma teatral do final do século XIX que aproximou os caminhos criativos de Freud e Méliès, em suas buscas pelo novo. Méliès vai ao encontro do prestidigitador e ilusionista inglês David Devant e Freud vai a Paris ao encontro do neurólogo da Salpêtrière, Jean-Martin Charcot. As sessões de hipnotismo deste último, do mesmo modo que os espetáculos de ilusionismo da época, eram particularmente impressionantes pelo efeito que provocavam naqueles que as assistiam (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), sendo o poder quase mágico de suas palavras o truque que causava o intrigante efeito terapêutico que tinham suas exibições.

Charcot fazia desaparecer os sintomas de suas pacientes apenas com o poder de sua palavra quase mágica, lançando mão da sugestão e da teatralidade. No meio médico da época a sugestão estava ligada às questões da dupla personalidade, o Homem e seu duplo, sobretudo nos casos de histeria. Charcot chegou mesmo a criar um laboratório de fotografia médica na Salpêtrière, com a finalidade didática de tornar visível o desenvolvimento de crises histéricas (GRAMARY, A. 2008). Vemos nessa situação por que caminhos – que se queriam científicos e racionais – a parte doente da personalidade, ou seja, a sombra, o duplo obscuro e recalcado, se encontrava ligada aos aparelhos de espetáculo e à encenação, mesmo no meio médico. Esse era o clima cultural europeu da época.

Une leçon clinique à la Salpêtrière, Pierre-André Brouillet Charroux,(1887)

Méliès retorna de Londres e passa a atuar como ilusionista, profissão que era mal vista pelas pessoas a sua volta e que marginalizava aqueles que a praticam (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), assim como Freud, ao retornar de Paris faz um breve percurso clínico pela hipnose e pela sugestão, práticas mal vistas no círculo científico. Freud pouco a pouco se afasta das técnicas correntes de hipnose, e cria novas técnicas para desvendar o mistério das neuroses. A técnica da pressão sobre a fronte do paciente (FREUD, S. & BREUER, J, 1895), desenvolvida por ele como uma opção ao método hipnótico, guarda muita semelhança com o “truque” dos ilusionistas, pois ao desviar a atenção do paciente para um ponto fixo, que é a pressão da mão, libera as associações marginais que estavam encobertas por reflexões conscientes e por mecanismos de defesa. A pressão da mão sobre a testa era, portanto, um truque com forte caráter sugestivo. Com esse recurso técnico vemos Freud se afastando do uso da hipnose e utilizando em seu lugar a sugestão, que se aproxima muito do fundamento das técnicas de magia: um contato corporal para impor sua própria vontade à do paciente.

Posteriormente Méliès dirige seus esforços para a execução de filmes, e Freud, ao se dar conta de sua incapacidade para exercer a mágica necessária para o funcionamento das técnicas sugestivas, abandona-as e cria aquilo que foi inicialmente chamado por Joseph Breuer de talking cure. Essa técnica consistia em estimular o paciente a falar sobre o que achasse que estaria relacionado ao sintoma apresentado, visando reproduzir a emoção que esteve presente em determinada situação traumática de sua vida e que teria um efeito etiológico na formação do sintoma neurótico. A ab-reação, ou a lembrança do fato traumático com a revivescência do afeto correlato, faria com o que o sintoma desaparecesse, sendo uma espécie de purgação (FREUD, S. & BREUER, J, 1895). A recomendação principal que Freud fazia a seus pacientes era, novamente, semelhante ao truque utilizado pelos ilusionistas, ou seja, que se deixassem levar, distraidamente para onde suas associações os levassem, para aquilo que era marginal, para aquilo que era sombra.

É nesse momento que Freud começa a se interessar pelos sonhos de suas pacientes e pelos seus próprios, empreendendo sua análise, o que dará origem à “Interpretação dos Sonhos”. Desenvolve uma técnica de análise de sonhos na qual o sonhador é um ator-autor e seu próprio espectador, que se expressa para o analista não em atos, mas em palavras. Freud concebe que o sonho é formado, durante o sono, quando a pulsão transforma pequenos cenários inspirados pelo desejo em fantasias, sendo a atividade mental transformada, regressivamente, em pensamentos por imagens, que são essencialmente diferentes da atividade mental de vigília que é formada por pensamentos em palavras. Este modo regressivo de funcionamento é característico do Inconsciente, e efetua-se por deslocamento, condensação e figurabilidade (FREUD, S. 1900).

A fantasia e a imaginação são, portanto, peças chaves para a construção do cinema de Méliès e para a representação psíquica do sonho, assim como para a montagem da metapsicologia sobre a qual Freud fundamentou sua ciência. Alguns anos mais tarde, o poeta e crítico do surrealismo André Breton proporia, influenciado pelas concepções de Freud, que a imaginação é uma via de percepção do mundo, mas que se encontra frequentemente recalcada. Considera que reduzir a imaginação à condição de escrava da realidade seria atraiçoar o supremo imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada homem, pois somente ela seria capaz de mostrar aquilo que pode ser. Isto já seria razão suficiente para que se trabalhasse para retirar a interdição a qual estava submetida. Breton chega mesmo a fazer uma reverência a Freud na medida em que reconhece que foram suas descobertas que permitiriam ao investigador da alma humana ir mais longe, “uma vez que está autorizado a não levar em conta tão-somente as realidades sumárias” (BRETON, A. 2001: 23).

Podemos postular que foi a partir de uma demanda cultural de espaço para o sonho, para a fantasia, para a imaginação e para o que estava além da razão, que surgiu a Psicanálise e que Méliès criou, de fato, uma máquina para representar ficções. Contrariamente àqueles que desejavam utilizar o cinema cientificamente ou como documentário, Méliès queria que o cinema tivesse um valor cultural com potencial para objetivar e multiplicar o sonho, propondo realidades que obedeciam a outras regras que aquelas do Establishment. Pela imaginação e pela tecnologia disponível, Méliès transformava o que pode ser em imagens. Para ele, a tela não era somente uma superfície de projeção que reproduz o mundo cotidiano, mas também um lugar que preserva as ilusões, as fábulas, os mitos e as fantasias ligadas às lembranças da infância, ou seja, era sítio para tudo aquilo que constitui o sonho. Dispor de uma máquina que podia fabricar o sonho era para Méliès o que constituía a verdadeira libertação da imaginação, justamente por permitir representar o impensável.

Assim como o espetáculo cinematográfico criado por Méliès veio para subverter o espírito dos homens, neste mesmo momento histórico, Freud procurava decifrar o “espetáculo cinematográfico” (num sentido metafórico) representado pelo sintoma histérico e pelos sonhos noturnos, subvertendo as teorias aceitas na época de que a histeria seria apenas simulação e os sonhos descargas neurológicas anárquicas e sem sentido. Ao aproximar a estrutura do sintoma neurótico da estrutura dos sonhos, Freud percebeu que eram o mesmo fenômeno apresentado de formas diversas: uma representação de fantasias, desejos infantis e mitos pessoais que se traduziam em imagens, sensações e posturas corporais. Num âmbito privado, suas pacientes apresentavam a ele seu “cinema pessoal”, com todos os recursos dos quais dispunham, e através do fenômeno que chamou de transferência (FREUD, S. 1912), reviviam seus conflitos na sessão de análise relacionando-os com a figura do analista, o que permitia sua elaboração psíquica e a cura da neurose. Desde essa descoberta o manejo da transferência tornou-se a principal ferramenta técnica para a cura psicanalítica.

No campo cultural, o ano de 1899 apresenta a sobreposição do surgimento de duas obras emblemáticas: Méliès produz Cendrillon, sua primeira narrativa fantástica, e Freud escreve Interpretação dos Sonhos, onde define o papel dos sonhos na vida psíquica e desenvolve um método para compreender seu significado. Não é por acaso o nascimento simultâneo do Cinema e da Psicanálise, a coincidência histórica destas duas técnicas que permitiam reabilitar a potência da imaginação e dos sonhos no modo de viver e de criar dos seres humanos. Contudo, contrariamente a Méliès que construía sonhos na tela de projeção pública do cinema, Freud desconstruía os sonhos e sintomas de seus pacientes e os seus próprios, insistindo na importância do sentido profundo que tinham quando desconstruídos e analisados em seus detalhes.

Podemos dizer que Cinema e Psicanálise tratam dos sonhos e das fantasias dos homens, pois ambos ocupam-se das mais variadas e desconhecidas emoções humanas. O Cinema cria o sonho, dá forma real a ele e o projeta na tela vazia, ato semelhante ao do sonhador que faz o sonho, cria as cenas, une-as em sequências (por vezes incompreensíveis), dá-lhes forma real no momento em que é vivido e projetado na tela interna da mente daquele que dorme. Quando assistimos a um filme ou quando dormimos, estamos muito próximos do sonho: nosso corpo encontra-se entregue à poltrona ou ao leito, há o silêncio e a escuridão, ou seja, um estado de mente propício ao mergulho necessário, seja pela tela de luz seja pela tela interna da mente, no universo do fantástico com suas leis próprias. Não é por acaso que o quarto de dormir dos homens, o cenário dos ilusionistas, as salas de projeção dos cinemas e os consultórios dos psicanalistas guardam semelhanças quanto aos artifícios utilizados para o favorecimento do fantasiar, sendo a penumbra, o elemento principal, o “truque” que permite ao sujeito colocar-se num estado de espírito tal que se torne vulnerável à ilusão e ao sonho, ou seja, apto a deixar-se distrair e deixar-se enganar.

Tanto Freud como Méliès criaram para suas invenções dispositivos próprios que modificam o enquadre espaço-temporal dos sujeitos envolvidos, uma cena na qual a prioridade é dada à imagem e ao imaginário, onde são buscados os sonhos, as fantasias e as coisas impossíveis. Assim, cineasta e psicanalista têm à sua frente o desafio de dar corpo a seus objetos, o que exige um enquadre rigoroso de muita auto-disciplina e criatividade.

Chegamos aqui a um ponto de convergência entre Freud e Méliès. A maneira pela qual Freud concebe a formação dos sonhos e o funcionamento do Inconsciente remete diretamente ao trabalho do diretor de um filme, sobretudo dos filmes fantásticos, nos quais os efeitos das imagens sofrem atuações semelhantes àquelas da formação do sonho: figuras que se criam livremente e que se sobrepõem, objetos e personagens que simbolizam outras coisas, livre fluir de afetos e emoções, e, sobretudo, a criação de um tempo próprio que não se submete ao convencionado, um tempo que é presente sempre, mas que flui livremente para frente e para trás. Podemos dizer que Méliès, com seu cinema inovador, foi um sonhador para o exterior, um construtor de sonhos públicos, assim como fez Freud ao publicar seus sonhos. Méliès o fez em imagens, Freud em palavra escrita. Não foi por acaso que tanto Freud como Méliès sofreram uma rejeição inicial, possivelmente defensiva, contra o novo que rompe com paradigmas anteriores e expõe a intimidade do desejo, rejeição esta  seguida por uma aceitação resignada devida, certamente, ao potencial heurístico que suas inovações carregavam em si. Contudo, apesar do grande impacto que tiveram suas invenções, Freud sofreu – e sofre até os dias de hoje – grande rejeição do meio médico acadêmico, sobretudo, ao propor que a causa do Inconsciente era necessariamente de natureza sexual, assim como a obra de Méliès, em sua época, não foi plenamente compreendida, tendo que ser resgatada muitos anos depois.

Méliès propunha que para se trabalhar com cinema o praticante deveria ser uma pessoa rigorosa, disciplinada e muito precisa, o que o obrigou muitas vezes a fazer tudo sozinho, da montagem do cenário ao ator principal. Tudo deveria estar previsto, nada improvisado (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984) . Nesse sentido podemos contrapor o dirigismo de Méliès à neutralidade de Freud frente a seus pacientes, e supor que estas posturas estejam fundamentadas na natureza inversa do trabalho executado por cada um deles: Méliès construía sonho, Freud os desfazia, os analisava até os menores componentes que os constituíam. Méliès reivindicava o direito à ilusão, e Freud a necessidade de abandoná-la e fazer seu luto. Para Méliès, até por que produzia o cinema mudo, “a palavra não é nada, o gesto é tudo” (Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), ao passo que para Freud a palavra era tudo na direção da cura, do desvelamento do sentido dos sonhos e dos sintomas psíquicos.

De todo modo, são dois maestros que sob suas batutas executavam sua arte inovadora com genialidade e precisão e teriam sucumbido às pressões de seu entorno se não fossem personalidades que tinham o desafio e a persistência como características fundamentais, o que é condição necessária para tornar-se um inovador que rompe paradigmas. Freud criou a Psicanálise, Méliès o cinema fantástico. Não resta dúvida que o interesse da Cultura naquele momento era dar contornos lógicos, racionais, para as manifestações da Natureza e do Homem, mas tanto Freud como Méliès tiveram a sensibilidade de perceber o anseio das pessoas por não se deixar envolver completamente na dureza da ciência positivista, ávidas que eram pelo sonho. Freud desvendou o mistério dos sonhos, Méliès criou o sonho compartilhado, ambos partindo de um anseio científico positivista que foi sendo abandonado, e que possibilitou a emergência do novo, da criatividade, do salto de qualidade na relação do Homem com o mundo e consigo mesmo.


[1] Ronis Magdaleno Júnior é Psiquiatra, Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro de Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas, Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas, Pesquisador Colaborador do Laboratório de Pesquisa Clínico Qualitativa da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

Referências Bibliográficas


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CERQUEIRA, Dorine Daisy Pedreira de. Jorge Luís Borges e a narrativa fantástica (2005). Disponível em: http://www.hispanista.com.br/revista/artigo176esp.htm. Acessado em 25 de março de 2012.

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume II, Rio de Janeiro: Imago, 1969 (Original publicado em 1895).

_______________. A Interpretação dos Sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume IV e V, Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Original publicado em 1900).

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_______________. O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 123-250. (Original publicado em 1927).

GRAMARY, Adrian. Charcot e a Iconografia Fotográfica de La Salpêtrière (2008). Disponível em: http://www.saude-mental.net/pdf/vol10_rev3_leituras1.pdf. Acessado em 30 de março de 2012.

QUEVRAIN, Anne-Marie & CHARCONNET-MELIES, Marie-George (org). Méliès et Freud: un avenir pour les Marchands D’Illusions? In: Malthête-Méliès,  Madeleine. Méliès et la naissance du spectacle cinématographique(1981). Paris: Editions Klincksieck, 1984.

TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1970.

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