Sexualidade, poder e feminilidade no audiovisual: três abordagens dialéticas

Sexuality, power and femininity in audiovisual: three dialectical approaches

Dulce Helena Mazer[1]

 

 

Resumo

Este artigo aborda diferentes possibilidades de poder e sexualidade feminina a partir de novas formas de representação audiovisual sob a ótica feminista. Aponta três diferentes situações e seus contextos: duas cenas de seriados, um nacional e outro dinamarquês; e uma cena de cinema brasileiro. A partir das teorias do feminismo e da teoria econômica do sexo, tenta demonstrar a pluralidade de interpretações e desenvolve uma compreensão da subversão das personagens e a dialética das imagens.

Palavras-chave: mulher; sexualidade; poder; representação; imagem.

Abstract

This article discusses different possibilities of female power and sexuality from new forms of representation under the feminist perspective. Identifies three different situations and their contexts: two Series scenes, one national and one Danish, one scene of Brazilian cinema. From the theories of feminism and economic theory of sex, tries to show the plurality of interpretations and develops an understanding of the characters and the subversion of dialectical images.

Key-words: women; sexuality; power; representation; image.

 

Um olhar misógino cinge as imagens, fotografias e ilustrações midiáticas, signos visuais da contemporaneidade. O corpo feminino serve de alegoria às mensagens e muitas vezes a exploração da nudez e da sexualidade femininas levam ao despropósito ilustrativo, como se a feminilidade e a sexualidade da mulher fossem atributos naturais e imutáveis, não social e culturalmente construídos. A possibilidade de representações começa no âmbito da produção, porém não está ligada apenas ao interesse ideológico de produção das imagens, mas também ao caráter de recepção e compreensão das mensagens audiovisuais.

A imagem-ilustração cumpre a função de descrever, explicar e detalhar assuntos originados em um contexto, por meio de retórica visual, como a metáfora, e os símbolos. A interpretação do sentido e a decodificação estão atreladas ao repertório do receptor. Porém, observa-se que a frequência de imagens de mulheres brancas, magras, heterossexuais e jovens como o padrão social representativo da feminilidade coloca a massa de mulheres, com suas particularidades e divergências, sujeita à estetização exacerbada, padronizada, ou ainda, determinante sobre quais seriam então os tipos estéticos femininos. Uma mensagem ideológica recorrente leva a crer que não existem distintas mulheres.

A negligência midiática colabora para a invisibilidade de alguns grupos sociais (CAMARGO e HOFF, 2002), determinando o que pode e o que não pode ser visto, resultando na sub-representação imagética de grupos e ações socialmente invisíveis (ELLISON, apud TOMÁS, 2009). Mas a sensibilidade interpretativa cabe ao espectador, a partir das ferramentas de compreensão e decifração que possuir.

Didi-Huberman (2010) questiona a invencível cisão do ver: o que vemos, também não nos olha? Para ele, a imagem dialética lança uma ponte entre o sensorial e o significante, compreendendo que esta seria uma imagem crítica, capaz de despertar uma leitura reveladora. Porém, nem toda “imagem é originariamente dialética, crítica” (Didi-Huberman, p. 173), afirma. Estas precisam ser adaptadas às novas formas de ver. Novos sentidos podem ser dados, segundo abordagens (ângulos, ambientes, tempos) também novas.

Benjamin (1994) acreditava na politização estética por meio da reprodutibilidade técnica e da democratização dos bens culturais. A reprodução sistemática culmina com a destruição da aura, mas dá outro sentido à produção artística, subvertendo sua função. “Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (BENJAMIN, 1994, p. 172).

Outra consciência somente pode ser buscada a partir das transformações materiais das relações humanas. Mas outras formas de mostrar as relações humanas podem também despertar mudanças sociais. Acedendo à lógica de Benjamin, a imagem material deve estimular a experimentação e aprendizado por meio de conceitos, estímulos visuais e mensagens ainda não percebidas, ainda que desencadeadas por uso de metáforas, evitando, assim, a excitação despropositada do observador, não contextualizada ou simples provocativa, que visa a direta sugestão de significados naturalizados. Assim, destacam-se três maneiras de representar imageticamente a sexualidade da mulher e suas interpretações a partir de um viés feminista, observadas no filme O Abismo Prateado (Karim Aïnouz, Brasil, 2011/2013) e nas séries televisivas Borgen e Força Tarefa.

 

A sexualidade binária no filme O Abismo Prateado

Uma das primeiras cenas de O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz (Brasil, 2011/2013), mostra a nudez crua das intimidades conjugais duradouras, com a sutil ironia de que será a última entre a personagem Violeta e seu companheiro. Inspirado na música de Chico Buarque, Olhos nos olhos, o filme mostra um dia na vida da personagem, antes e depois de receber por mensagem telefônica a notícia de que Djalma, seu marido, a havia abandonado. Violeta recebe também do companheiro o pedido de não procurá-lo. O afastamento abrupto marca a narrativa e o passar das horas é carregado pelo desespero e pela angústia da protagonista. A noite leva ao silêncio e ao total desconforto, mas a manhã de um novo dia apresenta à personagem a possibilidade de se refazer e ser novamente feliz, como na música de Chico Buarque: “Olhos nos olhos, quero ver o que você diz/Quero ver como suporta me ver tão feliz” (1976).

A obra é considerada, por alguns, alvo de “crítica de oportunidade”, dada a singeleza do tema e a preciosidade da abordagem, já que Aïnouz é conhecido por filmes como Madame Satã, Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely e carrega maturidade cinematográfica. A primeira sequência do filme começa no mar, passa por um mergulho, a fim de nos apresentar Djalma, interpretado por Otto Jr. Segue para o banho do homem e culmina no encontro matinal, que proporcionará a relação sexual. O filme não apresenta qualquer joguete de sedução entre os amantes, nem de Violeta com os espectadores, ainda que a personagem seja interpretada por Alessandra Negrini, atriz com vasto repertório de papeis femininos sensuais e cujos atributos físicos são considerados belos em múltiplos quadros interpretativos. Nem mais, nem menos, apenas os corpos, os movimentos e os gemidos espontâneos de uma relação sexual entre um casal heterossexual. Na imagem, a sexualidade é destacada como um aspecto fundamental e sanitário do casal, uma atividade da rotina, como o banho e o café.

Essa abordagem já reflete uma mudança social das últimas décadas na qual a transparência e a atividade sexual passam a ser mais importantes que o posicionamento público do ser sexual. Ou, em outras palavras, aceita-se socialmente que variedades sexuais ocorram na intimidade de um quarto, mas nega-se aos sujeitos sociais o direito de exercer politicamente sua sexualidade.

No entanto, no filme, os corpos representam os limites físicos entre os membros daquela relação e não pretendem ultrapassar a sensibilidade do quarto, nem estimular o telespectador com ícones de prazer. Assim, Violeta, a personagem em cena, revela feminilidade, baseada em uma sexualidade binária, e não tem sua volúpia explorada como ferramenta para deleite do espectador.

A atividade sexual do casal não é nem de longe o foco desta produção. Mas a premissa que a cena apresenta é de vital importância para entender o deslocamento de Violeta, ao saber de seu destino naquele dia. Nesse jogo de mostrar, O Abismo equilibra a importância dos corpos masculino e feminino para a atividade sexual. Em uma única cena, o enredo empodera sexualmente a personagem e se apropria do sexo para afirmar o nível da confiança de Violeta na relação. Neste sentido, aflora a feminilidade da personagem para constituir sua vitalidade pós-abandono.

A noção de feminilidade só tem sentido quando apreendida no amplo debate sobre as relações de gênero. Quando escreveu Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), Laura Mulvey fazia referência ao sistema Hollywoodiano e propunha uma análise crítica, questionando o cinema de maneira social, psicanalítica, semiótica e estrutural. Mais tarde, distanciava-se da expressão do prazer e do gozo, discutindo sofrimento e atividade em figuras femininas de Frida Kahlo & Tina Modotti. Pôde, enfim, produzir a crítica feminista ao cinema narrativo tradicional e propor uma ruptura com a lógica do prazer visual.

A partir da teoria psicanalítica, Mulvey pensou sobre a representação da mulher, alterando sua imagem de reflexo para sintoma, ponderou sobre a circulação de imagens em uma cultura patriarcal e mercantilizada, como representação do inconsciente masculino. Dessa maneira, ela questionou os códigos cinematográficos vigentes e sua relação com estruturas externas de formação, como o olhar voyeur-escopofílico (MULVEY, 1975), uma parte crucial do prazer fílmico tradicional. Mulvey foi mais influenciada pelos movimentos feministas que pelas teorias do cinema, e a essas contribuiu com seu viés feminista.

A história da cientificidade nos estudos feministas é recente, datada dos anos 1960 (LOURO, 2003). Entende-se que o feminismo, ou o coletivo de luta de mulheres, requer o reconhecimento da situação de dominação sexual historicamente desenvolvida (HIRATA et al, 2009). Exige também a agência (atuação) dos envolvidos para mudar uma realidade social, pois a mulher precisa construir sua cidadania para tornar suas reivindicações legítimas.

Talvez por isso seja insistente a incompreensão da materialidade da divisão sexual nos produtos culturais que é, em muitos casos, abstraída. Esse fator é intensificado pela dificuldade em se compreender o desequilíbrio existente nas sociedades patriarcais ou sexualmente divididas. No senso comum, ignora-se que como a separação entre o oikos (o domínio familiar) e a polis (a cidade, as instâncias políticas), ou ainda o particularismo como negação da pluralidade (HIRATA et al, 2009), foram determinantes para a divisão sexual da sociedade. Enfim, historicamente coube à mulher o ambiente da intimidade, enquanto ao homem era reservada a vida política (PERROT, 2007). Secular, essa divisão marca ainda o posicionamento sexual da mulher.

A crítica feminista permite perceber o gênero como uma categoria de análise transversal (SCOTT, 1991) nas pesquisas em cinema e audiovisual, na comunicação e para os Estudos Culturais, visto que os fenômenos sociais ancorados na mediação perpassam as relações sociais, que por sua vez são marcadas pelo patriarcado e pela divisão sexual, de raça ou etnia e de classe.

Assim, as bases materiais são utilizadas para construção de modelos simbólicos que podem colaborar tanto para reforçar, quanto para desconstruir a divisão sexual da sociedade. Na epistemologia do sistema sexo-gênero, a palavra gênero tem seu uso, muitas vezes, determinado de maneira recorrente à compreensão apenas do universo feminino. É, em certos casos, aplicado como um sinônimo de “mulheres” (SCOTT, 1991). No entanto, Scott afirma que o estudo de mulheres é necessariamente embasado em informações sobre os homens e mulheres. Essa tendência foi um pouco amenizada pela teoria Queer e pelos movimentos LGTTTB (Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Bissexuais). Nas últimas décadas, pesquisas com base no pós-estruturalismo e estudos sobre a sexualidade e individualidade em Lacan, têm apontado interessantes discussões quanto à binariedade do sistema de sexos (SCOTT, 1991).

Segundo Louro (2001), Queer pode ser traduzido como estranho, ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. “Efetivamente, a teoria queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência, de identificação.” (LOURO, 2001, p. 546). A teoria Queer pode ser encontrada em “uma análise da figura hetero/homossexual como um regime de poder/saber que molda a ordenação dos desejos, dos comportamentos e das instituições sociais, das relações sociais numa palavra, a constituição do self e da sociedade.” (Seidman, 1995, p. 128 apud LOURO, 2001, p. 549).

Quando as justificativas para as desigualdades são procuradas na diferença biológica, o resultado é uma interpretação binarista. Derrida (apud LOURO, 2003) mostrou que o pensamento moderno é calcado em concepções binaristas, marcado por dicotomias (teoria/prática, presença/ausência). Ao evidenciar a propriedade de um elemento, simplifica-se outro, que dele deriva, por isso Louro também propõe a desconstrução do padrão de referência da mulher em relação ao homem. Isso sugere que se encontrem condições que definam a polaridade e que a historicizem, bem como a hierarquia implícita nesta relação dual.

A história do pensamento feminista é uma história da recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino (SCOTT, 1991). Esse sistema binário de divisões confere imperfeições no modo como a sociedade se estrutura, divide poder, riquezas, liberdades, direitos e espaços. Também é bastante limitador quanto ao modo de produzir representatividade social e sexual.

 

 

A homossexualidade reivindicada em Força Tarefa

Na série para TV Força Tarefa, que estreou em 2009 no aberto da Rede Globo, a atriz Hermila Guedes atua como a Sargento Selma, a única mulher na corregedoria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A Série é escrita por Fernando Bonassi e Marçal Aquino e dirigida por José Alvarenga Jr. e Mário Márcio Bandarra. Homossexual, ela é obrigada a tolerar diariamente as piadas machistas dos companheiros de trabalho. A série exibiu o que foi, por muitos, considerado primeiro beijo gay feminino produzido e exibido pela Rede Globo. A cena é parte do episódio Tolerância Zero e foi protagonizada por Selma e Jaqueline, interpretada pela atriz Fabíula Nascimento.

Ao contrário do que possam pensar aqueles que não assistiram à série, não se trata de cena tórrida de amor ou sexo, como a idealizada por Nina Sayers (Natalie Portman com Mila Kunis) em Cisne Negro (2010). Nem de rompante e descoberta homossexual entre as duas personagens, como apresentou a telenovela Amor e Revolução (SBT, 2011), em que Marina e Marcela se declaram apaixonadas, mas uma delas ainda não se considera preparada para assumir uma relação homossexual. Selma, afirmativamente homossexual, tem que provar à Jaqueline que não sente atração por seu companheiro e faz isso beijando suavemente os lábios desta.

Ao reivindicar sua homossexualidade, Selma mostra no meio massivo que outra sexualidade feminina é possível. Ainda que isso não seja novo na sociedade, os meios audiovisuais, principalmente a TV, resistem em dar realidade (existência) a seus personagens. Selma precisa provar sua homossexualidade no espaço majoritariamente hétero.

Na TV, como na vida, Selma precisa dessa subversão para mostrar seu verdadeiro modo de ser e, principalmente, destacar que há uma cegueira na forma como os heterossexuais percebem outras sexualidades possíveis.

A distinção biológica (sexual) contribui para compreender e até a “justificar” a desigualdade social (LOURO, 2003). Apesar de sua admissão ser restrita a um grupo minoritário, a consciência da desigualdade como construção das relações sexuais é “historicamente adaptada a cada sociedade” (HIRATA et al, 2009, p.67). No entanto, vale lembrar que coube ao feminismo apresentar o sexo como categoria social, mostrando que os papéis de homens e mulheres não são resultado de um acaso biológico, mas de uma construção social que têm base material. O que revela novamente a importância do movimento feminista para a sexualidade.

A determinação da vida politicamente qualificada das mulheres é tardia e transcende o pensamento clássico. Scott define o gênero como a maneira primordial de significar as relações de poder; estruturar modos de perceber e organizar, concreta e simbolicamente, toda a vida social. A autora observa como a estrutura econômico-política é desenvolvida a partir das desigualdades, e não apenas resultando em diferenças. Neste sentido, a autora levanta um dos argumentos centrais da discussão proposta e que tem nas estruturas política e econômica sua explicação: “A reificação sexual é o processo primário da sujeição das mulheres” (SCOTT, 1991, p.6), por isso as resultantes que insistem em definir as mulheres como sujeitos da vontade de outros.

Esses argumentos se encontram na teoria econômica do sexo e, por esse viés, pode-se considerar o conflito ente corpo, imagem e exploração sexual um fenômeno que se desenvolveu mais fortemente a partir do capitalismo e da mercantilização da arte e da comunicação. A partir da reificação, o corpo é tomado como mercadoria ou objeto negociável. Esse enquadramento permite refutar outro senso determinante em nossa sociedade: a noção de poder feminino.

Segundo Perrot (2007), o feminismo não é linear, ou homogêneo. Deve ser visto como plural e variado, num sentido amplo, como qualificação da luta pela igualdade entre as pessoas. Sendo percebido em movimentos súbitos em toda a história, não se baseia em organizações estáveis, é ressurgente, intermitente e sincopado (PERROT, 2007, p.155).

 

 

Relações das mulheres com o poder: Borgen e a Primeira Ministra

Na sociedade capitalista ocidental, as bases sociais são construídas e marcadas pelas relações de poder e dominação. Saffioti (2004) prevê a superação das contradições e da estrutura de poder que provoca divisões sexuais. Ela observa que o “poder” pode ser “constelado” na direção da igualdade ou da desigualdade entre as categorias de sexo e afirma:

O que precisa ficar patente é que o poder pode ser democraticamente partilhado, gerando liberdade, como também exercido discricionariamente, criando desigualdades. Definir gênero como uma privilegiada instância da articulação das relações de poder exige a colocação em relevo das duas modalidades essenciais de participação nesta trama de interações, dando-se a mesma importância à integração por meio da igualdade e à integração subordinada. (SAFFIOTI, 2004, p.113).

É o que se observa na série dinamarquesa Borgen (O castelo, 2010). Produzida pela TV pública dinamarquesa Danmarks Radio, no Brasil foi veiculada no ano de 2012 pela Globosat HD, canal de TV a cabo. Sob o título internacional de The Government, o nome Borgen se refere ao Christiansborg Palace, edifício que abriga três instituições do governo da Dinamarca: o Parlamento, o Gabinete do Primeiro-Ministro e o Supremo Tribunal.

Birgitte Nyborg (Sidse Babett Knudsen) é uma Primeira Ministra que enfrenta todas as dificuldades comuns a uma mulher política. Criada por Adam Price, Jeppe Gjervig Gram e Tobias Lindholm, a série mostra inicialmente uma candidata a cargo político que representa o partido popular. Eleita, ela governa sua carreira, sua família e sua vida privada, enquanto tenta reformar a administração do país. Ela representa o empoderamento feminino, nas bases do “poder sobre” (LEON, 2000), diferente de outras três classes de poder.

O poder sobre, a primeira classe de poder, como espaço para disputa, em que o ganho de um significa a perda de outro. Em geral, quando se fala em relações de poder se pensa neste tipo. Os demais tipos de poder: “para”, “com” e “sobre” atuam como um incremento ao poder total disponível. Birgitte se destaca na participação de poder ao aceder ao cargo, mas é corrompida, por não partilhar de uma nova forma de poder, ou por partilhar da antiga forma de poder (LEON, 2000), o poder “sobre” os demais.

A série mostra o drama feminino de conciliar as esferas da intimidade e da vida pública, que obviamente também é vivido por homens. Em um dos episódios da segunda temporada, Birgitte tem uma relação sexual com um subordinado, seu guarda pessoal. Essa relação é marcada pela opressão nos moldes de poder hierárquico, mostra o empoderamento de Birgitte e destaca que não é sua feminilidade que vai garantir outro modo de agir. Birgitte está separada de seu marido, que não aguenta as pressões que o cargo da esposa conferem à relação matrimonial. No episódio ela passa por um dia exaustivo e, ao chegar em casa, acompanhada pelo guarda, bebe vinho e demonstra sua atração pelo colega. A atração acaba em uma relação sexual. Na manhã seguinte, Birgitte percebe que essa atitude pode prejudicá-la politicamente e pede ajuda ao relações públicas de seu governo para “resolver” a situação. O guarda é afastado de suas funções e Birgitte demonstra seu arrependimento, o que atinge emocionalmente seu subordinado.

Nesta sequência, a Primeira Ministra age como exige o protocolo político, para o bem de sua carreira e para a possível recuperação de seu casamento tradicional, sem se importar com as emoções dos envolvidos na relação. Essa postura de poder é questionada do ponto de vista feminista.

A desconstrução patriarcal proposta em toda a série é reduzida nesta cena, e em outras, na qual Birgitte contribui para formas de opressão. Nesse sentido, a imagem da cena sexual é dialética, pois nos mostra as possibilidades do empoderamento político e sexual feminino. Mas a capacidade dual da sequência também é negada ao relativizar o comportamento negligente da Primeira Ministra para com o parceiro. É mais do mesmo, porém com uma mulher na direção.

“O processo desconstrutivo permite perturbar esta ideia de relação de via única e observar que o poder se exerce em várias direções. O exercício do poder pode, na verdade, fraturar e dividir internamente cada termo da oposição.” (LOURO, 2003, p.33). No entanto, ainda que investida no interesse de mudanças concretas, a personagem Birgitte não é capaz de moldar seu ambiente apenas por força de sua vontade.

O conceito de empoderamento vem do inglês empowerment, procedente do movimento negro norte-americano que nos anos 1960 lutava pela valorização e conquista dos direitos civis. Assim, a palavra abrange as ações que permitam controle e emancipação, na busca por posições igualitárias nas relações estabelecidas e na construção de novas realidades sociais. A partir da segunda onda do feminismo, o termo passa a ser empregado e seu significado discutido.

O empoderamento das mulheres representa um desafio para as relações familiares e perpassa a estrutura cultural, segundo Magdalena Leon (2000), pois significa a perda de posições privilegiadas em que foram colocados os homens nas sociedades “patriarcais”. Outro argumento da autora é que empoderamento e empoderar assinalam ações e pressupõem que os sujeitos se convertam em agentes ativos, como resultado de um acionamento, que varia de acordo com cada situação concreta (LEÓN, 2000). A autora pretende estabelecer aspectos materiais e práticos para compreender e alterar a posição de mulheres nas relações de poder e atribui esta ação à prática do feminismo. Neste esforço, reside também a intenção de impulsionar mudanças na cultura e no imaginário social sobre a relação da mulher com o poder e gerar transformações na linguagem que reflitam em novas construções e mudanças nas estruturas de subordinação e imaginários sociais.

As mídias e seus produtos reforçam os ideais neo-liberais de sucesso profissional e empoderamento: “o empoderamento individual acaba transformando as empoderadas em mulheres-álibi, o que joga água no moinho do neo-liberalismo” (SAFFIOTI, 2004, p.114). Del Priore considera o resultado social do empoderamento neo-liberal de mulheres ambíguo, entre conquistas e armadilhas. Ao refletir sobre a profissionalização, sexualidade e relações familiares, a autora observa que “a executiva de saias não deu certo” (DEL PRIORE, 2000): “um homem como nós, como diriam alguns patrões” (CARRASCO, 2003).

O tema do poder está cada vez mais inserido nos debates das Ciências Sociais e entre os agentes do poder público, uma complexa arena que retém uma gama heterogênea de sujeitos sociais. É também um dos desafios no que se refere à marginalização da mulher nos esquemas de poder e seus sentidos controversos.

O uso do termo se generalizou nos últimos 15 anos e pode parecer óbvio, pois é um termo autoexplicativo (contem sua própria explicação), no entanto sofre ambivalências, contradições e paradoxos, provocando um esvaziamento de seu significado e banalização (LEON, 2000).

Empoderar-se significa que as pessoas adquiram o controle de suas vidas, aproveitem a oportunidade de fazer coisas e definam suas próprias agendas, no sentido de atender às diferentes demandas sociais (LEON, 2000). Esse entendimento se baseia no sentido de poder definido com bases em teorias críticas feministas, marxistas em Gramsci e Paulo Freire, e no pós estruturalismo em Focault, ainda que nenhum deles tenha feito uso do termo empoderamento.

Gramsci destacou a importância dos mecanismos de participação em instituições e na sociedade em busca de um sistema igualitário. Foucault defendeu que o poder opera em todos os níveis da sociedade, dos pessoais e íntimos, aos altos escalões do Estado. Dessa maneira, as mudanças devem acontecer em todas as relações sociais. Os indivíduos são parte das estruturas sociais, portanto o poder deve ser visto como parte de todas as relações econômicas, políticas, sociais e pessoais (LEON, 2000), em que as imposições de força operam em distintos níveis e em conflito permanente, diferindo das visões dualistas, dicotômicas ou binárias.

Essa noção de empoderamento sofre influência de Paulo Freire, quando se refere à transformação da consciência, em que os excluídos/oprimidos se libertam das estruturas que limitam sua participação social. Assim, a conscientização é a modificação de uma forma de consciência à outra e as formas de consciência são histórica e socialmente condicionadas pelas lutas sociais. (https://teamtapper.com)

É preciso reconhecer a importância da mudança individual para a transformação coletiva, sem contrapor os dois âmbitos para não incorrer na troca entre o lema feminista “o pessoal é político” pelo lema “o político é pessoal” (LEON, 2000, p. 200).

 

 

Conclusão

A partir das possibilidades de produção e interpretação dialética, a sexualidade da mulher é apresentada nos meios audiovisuais observados de forma a tentar dar vida à distintas representações do heterogêneo grupo de mulheres. As três situações apresentadas são construídas como obras audiovisuais sob a ótica masculina, já que todos os responsáveis são homens. No entanto, nos três casos, há uma ruptura com os papeis social e historicamente considerados femininos. Entende-se que o que determina a fixidez nas representações de poder e sexualidade femininos não é o sexo de quem produz a obra, mas a forma como esse produtor observa os gêneros, como se relaciona com eles e como narra os acontecimentos.

Apesar disso, outras contradições aparecem no exercício da sexualidade e do poder individual dessas mulheres. “Nem toda arte era uma simples falsa consciência ou uma ideologia” (JAY, 2008, p. 235). Assim, nem toda imagem é impregnada de ideologia dominante. Além disso, não se pode limitar à encenação a capacidade de ser uma mentira, como se compreende a ideologia no senso comum, mas a pretensão de corresponder à realidade como única possibilidade. Assim, a obra “bem sucedida” do ponto de vista da teoria crítica não é aquela que resolve as contradições dadas de maneira harmônica, mas aquela que “expressa negativamente a ideia de harmonia, incorporando as contradições em sua pureza, de forma inflexível, conforme sua estrutura mais íntima” (JAY, 2008, p. 236), como fazem, ainda que parcialmente, as três cenas observadas.

 

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994. 7. Ed, 255 p.

CAMARGO, Francisco C e HOFF, Tânia M. C. Erotismo e mídia. São Paulo: Expressão e Arte Editora, 2002.

CARRASCO, Cristina. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres. In: Produção do viver. Cadernos SOF. São Paulo, p. 11-49, 2003.

DEL PRIORI, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. Série Ponto Futuro; 2. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2010.

HIRATA. Helena, et al (orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, 2009.

JAY, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais.

LEON, Magdalena. Empoderamiento: Relaciones de las mujeres com el poder. Revista Estudos Feministas. CFH-CCE-UFSC, Vol. 08, n. 2, p. 279-281, 2000.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Rev. Estudos Feministas, 2/2001. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8639.pdf Acesso 02/09/12.

______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6ª. Edição. Petrópolis: Vozes, 2003.

MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Originally Published – Screen 16.3 Autumn 1975 pp. 6-18. Disponível em: http://imlportfolio.usc.edu/ctcs505/mulveyVisualPleasureNarrativeCinema.pdf Acesso: 01.08/2013.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 155.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de analise histórica. In: Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press, 1989, tradução Brasileira-SOS-Corpo Recife, 1991.

TOMÁS, Júlia Catarina S. P. A invisibilidade social: uma análise hermenêutica. Congresso Internacional Comunicação, Cognição e Media (CICOM), Braga, Portugal, Set., 2009.


[1]
            [1] Jornalista, Mestre em Comunicação Visual pela Universidade Estadual de Londrina. Estuda a representação imagética da mulher; aluna não-regular do PPGCOM-Doutorado da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mazerdulce@yahoo.com.br

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