Vampirismo virtual: a sobrevida digital do padrão narrativo

Dimas Tadeu de Lorena Filho é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Faculdade de Comunicação da UFJF e bolsista CAPES pelo mesmo programa. Graduou-se em Comunicação Social na Universidade Federal de Juiz de Fora tendo sido bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) – MEC/SESu durante todo o curso. Suas principais áreas de atuação e pesquisa são as Tecnologias da Comunicação, a Semiótica, a Estética e as Artes.

Introdução: a narrativa como padrão degenerado

O que caracterizaria uma narrativa? A amplitude da questão denuncia por si só sua complexidade e a posiciona num horizonte explorado pelas ciências literárias há pelo menos alguns séculos. Para o campo da comunicação, a questão assume certa preponderância na medida em que se observa a importância das narrativas para a transmissão de conhecimento. Nesse sentido, afasta-se de uma problematização da forma e aproxima-se de uma investigação da função da narrativa.

Para Walter Benjamin, por exemplo, narrar significa intercambiar experiências. Em outras palavras, o padrão de representação que se convencionou chamar “narrativa” pode ser entendido como uma “técnica[1]” (ou práxis) para a comunicação de experiências. Na década de 30, quando uma Europa ainda não recuperada dos traumas da Primeira Guerra já se via às portas de uma segunda, Benjamin observa o que para ele se configura como uma falência da narrativa. Para o autor, essa técnica estaria vinculada às tradições orais, que se perderiam na medida em que há um empobrecimento das experiências pessoais:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais cotadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. (…) Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. (BENJAMIN, 19 sei lá, p. 198-9)

O que Benjamin identificara ao estudar as narrativas é o que hoje se chama de conflito entre global e local. Enquanto o camponês sedentário representaria o local (o “eu”), contando suas tradições e histórias antigas, o marinheiro mercante traz consigo o global (o “outro”), com suas novidades, diferenças e exotismos. Perceba-se aí uma característica marcante na obra do autor: seu caráter social. A narrativa, para Benjamin, é algo impensável fora de um contexto social.  Não por acaso, o autor vê no nascimento do romance “o primeiro indício” da morte das narrativas, já que este, através de seu suporte físico (o livro), desvincula a experiência do convívio, individualizando-a.

O que pensaria o autor, entretanto, se tivesse vivido para conhecer as atuais interfaces gráficas de computador e as novas possibilidades oferecidas por elas no sentido do intercâmbio de experiências? É o próprio Benjamin, afinal, quem argumenta a favor da oralidade como forma de narrativa “ideal”. E hoje, mais do que nunca, tem-se a possibilidade de conversar livremente ao redor de uma mesa de café, com assuntos que perpassem mitos antigos, pincelem as principais notícias do dia e talvez terminem em considerações futuristas fantasiosas. A diferença é que as pessoas sentadas nas cadeiras estariam, cada uma, em um diferente ponto do globo terrestre. Conectadas através da rede mundial de computadores a uma plataforma de realidade virtual, cada usuário assume o papel de “marinheiro mercante” e “camponês sedentário” de uma só vez.

É o que Johnson chama de “espaço-informação”:

O poeta grego Simônides, nascido seis séculos antes de Cristo, era famoso por sua fantástica capacidade de construir o que os retóricos chamam de “palácios de memória”.

Foram esses os espaços-informação originais: as histórias convertiam-se em arquitetura, conceitos abstratos transformados em vastas – e meticulosamente decoradas – casas imaginárias. O estratagema de Simônides baseava-se numa peculiaridade da mente humana: nossa memória visual é muito mais duradoura que a memória textual. (JOHNSON, 2001, p. 16)

Curioso que esteja na Grécia antiga a primeira referência aos espaços-informação, já que é justamente na poesia épica que Benjamin localiza um dos exemplos ideais de narrativa. Mais ainda, Johnson dá ao visual um status mais elevado do que o textual. Ao “espacializar” a narrativa, ela se torna mais mnemônica porque mais próxima das experiências cotidianas, o que, novamente, reitera Benjamin em sua defesa da oralidade.

Parece haver, portanto, uma razão única para a qual convergem os argumentos tanto de Benjamin quanto de Johnson: para ambos parece adequado que o usuário, uma vez em contato com uma narrativa, aproxime-se ao máximo da experiência que o narrador deseja transmitir. Em outras palavras, parece importante para ambos que as representações se pareçam com aquilo que representam. É o que se chama degenerescência sígnica.

Na semiótica de Charles S. Peirce, diz-se que um signo é tão degenerado quanto maior o número de qualidades compartilhadas com seu objeto dinâmico. Por isso mesmo, ele seria “degenerado” enquanto signo. Um signo é genuíno quando, mesmo sem possuir qualquer similaridade com seu objeto, é capaz de gerar um mesmo interpretante no maior número possível de mentes interpretadoras. Para tanto, é necessário que esse signo seja codificado culturalmente. Que ele seja, portanto, um símbolo em relação ao seu objeto. É o caso das letras do alfabeto, por exemplo. Quanto mais degenerado é um signo, mais caracteres de primeiridade ele assume. Por outro lado, quanto mais ele se aproximar da terceiridade, mais genuíno será.

Ora, enquanto o romance lança mão de signos culturalmente codificados, trabalha também com a tentativa de que um máximo possível de mentes interpretadoras atinjam um mesmo interpretante. Tem-se, portanto, que o leitor de um romance não vive uma experiência. Ele, no máximo, incorpora o relato da experiência do autor. Isso mudaria no caso, por exemplo, de um usuário de uma plataforma de realidade virtual. Ora, uma vez que se pode encontrar pessoas – significando que se possa vê-las, ouvi-las e mesmo senti-las – e que essas pessoas podem mostrar imagens, ir de um lugar a outro e até mesmo reproduzir experiências anteriores, pode-se considerar que se está muito mais próximo da experiência do que no caso do romance:

Além de ampliar as possibilidades de representação do existente (secundidade), processos híbridos, multicódigos, aumentam também as condições de representação das qualidades (primeiridade), o que conduz a uma das melhores situações que se pode conceber frente ao desafio que constitui a substituição de algo de extrema complexidade (objeto dinâmico) [no caso, a experiência em si] por um outro algo que intitulamos signo. [a narrativa] (PIMENTA, 2009, p. 5)

Parece importante destacar, no momento, que não se propõe aqui o abandono das linguagens culturalmente codificadas – como a textual – nem se considera que estas sejam ineficazes na criação de narrativas no sentido exposto por Benjamin. O que se considera é sua rearticulação junto as demais formas de representação ou, como parece adequado, sua degenerescência. Tomando como exemplo as plataformas de realidade virtual: a proposta não é abolir a linguagem textual (predominantemente simbólica), mas permitir que outras formas de representação possam ser usadas, já que se mostram, inclusive, mais eficientes (e representativamente mais ricas) em certas situações:

Reproduzindo as condições primárias das operações sensório-motoras, a RV [realidade virtual] otimiza o corpo biomaquínico na sua globalidade psicofísica. (…). O aspecto mais importante, no entanto, como extensão do nosso sistema nervoso psico-sensório-motor, a realidade virtual poderá levar a um reequilíbrio dos sentidos humanos. Aliada à telerrobótica e à telepresença, a RV parece prometer o balanceamento, o reequilíbrio do papel dos demais sentidos, tato, olfato e até mesmo paladar, frente à ainda ostensiva hegemonia dos olhos e ouvidos.(…) (SANTAELLA, 2003, p. 227)

A narrativa figuraria, portanto, como um padrão degenerado, uma vez que infiltrada por características do seu objeto dinâmico.

Dentro do pragmaticismo peirceano, encontra-se ainda uma outra âncora para o ponto defendido tanto por Benjamin quanto por Johnson no sentido de que as representações de experiências (narrativas, no caso), se aproximem das experiências elas mesmas. É na esfera da primeiridade que se encontra a estética, disciplina que, para Peirce, trataria não apenas do que é “belo”, mas daquilo que é capaz, através de emoções, sentimentos, – interpretantes que incluem, justamente, componentes emocionais – de ocasionar a mudança de hábitos interpretativos[2]. Percebe-se então que, ao deslocar as representações da esfera simbólica em direção aos seus componentes icônicos, constróem-se também mensagens que tendem a ser mais “estéticas”, e, portanto, mais “culturalmente palatáveis”. Justamente, a geração de novos hábitos interpretativos (terceiridades) advém da quebra, ou reorganização, de anteriores (através de primeiridades).

Dessas mudanças de hábito decorreriam a tal “dimensão utilitária” que Benjamin atribui às narrativas. “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIN, 19quadkad, p. 200). Justamente, espera-se que a narrativa, enquanto experiência compartilhada, resulte então num “conselho”, numa lição, algo que balizará as futuras semioses do intérprete, constituindo, portanto, uma mudança de hábitos de interpretação e representação. E como já se viu acima, signos degenerados são mais propícios a ocasionar essas mudanças.

Esse trabalho pretende, portanto, investigar se a narrativa como definida por Benjamin sobrevive atualmente e de que forma. Para tanto, analisar-se-á a maneira como os jogadores do RPG “Vampiro – a máscara”, transpoõem a narrativa verbal do jogo de mesa para o “espaço-informação” do Second Life. Acredita-se que se os mesmos elementos puderem ser identificados em ambos os tipos de representação, – especialmente no que tange à aproximação entre signo e objeto dinâmico – os ambientes de realidade virtual podem ser encarados como um espaço propício a comunicação de padrões ditos narrativos.

“Vampiro”: Drácula no holodeck

A temática do vampirismo é uma constante no imaginário da cultura ocidental. Caso se considere que os “vampiros”- como são hoje concebidos – seguem o “molde” do Drácula de Bram Stoker, pode-se falar de uma tradição narrativa de mais de um século. As origens do vampirismo, entretanto, remontam á mitologia judaica e provavelmente são tão antigas quanto à própria civilização.

Já aí identifica-se um dos traços da narrativa apontada por Benjamin, o que justifica a escolha deste tema para a análise que segue. Ora, uma história que passa de geração em geração é precisamente o que o autor definia como uma narrativa. Mais interessante é notar como a narrativa não depende necessariamente de um registro ou suporte: vem de tradições orais de culturas antigas, – como a judaica – reaparece com a roupagem gótica do romantismo inglês, – no drácula de Bram Stoker – e chega aos dias de hoje numa ampla diversidade de meios, que vão de romances (como o atual fenômeno de vendas “Crepúsculo”, já adaptado para o cinema) até as plataformas de realidade virtual, passando pelas séries de TV.

Num contexto contemporâneo, esse tipo de narrativa, que transcende um espaço midiático específico, pode ser considerada convergente:

Por convergência, eu quero dizer o fluxo de conteúdo através de múltiplas plataformas midiáticas, a cooperação entre múltiplas indústrias de mídia e o comportamento migratório das audiências dessas mídias, que irão a quase qualquer lugar em busca do tipo de experiência de entretenimento procurado[3]. (JENKINS, 2006, p. 2)

É curioso, portanto, notar como um conceito oriundo de um pensador da escola de Frankfurt reaparece articulado e apropriado pelo que na época foi chamado de “indústria cultural”. Se Benjamin considera narrativos apenas os padrões sociais (ou, como pareceria mais adequados, comunitários), sem ligação estrita com o sistema capitalista, então talvez ele tivesse alguma razão em atestar a morte desses padrões. De qualquer forma, todas as características identificadas por Benjamin na narrativa – inclusive aquelas relativas à oralidade – aparecem na atual “cultura da convergência”, independente de sua inserção (ou não) num contexto mercadológico, motivo pelo qual parece pertinente seguir esta análise.

Dentre os muitos produtos relativos às narrativas que abordam o tema “vampirismo”, uma em especial parece interessante devido as suas características únicas: o Role Playing Game (RPG) “Vampiro – A Máscara”. A primeira edição do livro de regras foi publicada em 1991 pela editora especializada White Wolf. Embora já fora de linha, – atualmente as regras foram revisadas e o sistema rebatizado de “Vampiro – o réquiem” – “Vampiro – A máscara” ainda é um dos RPGs mais populares no Brasil e no mundo.  Não por acaso, é comum encontrar na Internet salas de chat voltadas apenas para esse tipo de jogo, além de comunidades específicas em várias redes sociais.

De saída, tem-se aí um importante “complexo narrativo”. Ora, o jogo por si só seria um produto da convergência referida por Jenkins. Um bom exemplo disso pode ser percebido nessa passagem extraída do próprio livro de regras:

“Vampiro”, é claro, presta homenagem a um gênero duradouro e tradicional. (…) Seguem algumas influências importantes para “Vampiro – A máscara” e O Mundo da Escuridão:

A literatura recomendada inclui: “Drácula”, de Bram Stoker, “Entrevista com o vampiro”, “O vampiro Lestat” e “A rainha dos condenados”, de Anne Rice (…) O vampiro tem um papel importante na poesia romântica Byron, Shelley e Baudelaire. (…)

Os vampiros também aparecem no cinema. O “Drácula” de Bela Lugosi e o “Nosferatu” mudo de Murnau são os avôs do gênero[4]. (…) (REIN.HAGEN, 1991, p. 25)

As referências seguem ainda com sugestões para a composição da paisagem imaginária na qual transcorre o jogo, o “Mundo da Escuridão”, e incluem filmes como Blade runner – o caçador de andróides, o Batman de Tim Burton e a obra de Hitchcock.

Como se pode notar, a convergência se faz não apenas presente, mas necessária para a composição de uma narrativa, ao menos no sentido aqui em análise. Por sua própria natureza “oral”, ela acaba misturando elementos que vem da literatura, do cinema, das culturas populares, – e aí aparecem adaptados e modificado de acordo com o contexto – das artes plásticas, da cultura pop, da TV e, hoje em dia, da Internet. E isso tudo caso se leve em conta apenas o jogo de mesa, que consiste num mestre (ou storyteller), que narra a história, e nos jogadores, que são representam os personagens. Qualquer semelhança com o “marinheiro mercante” e o “camponês sedentário” (intercambiado na figura do mestre e dos jogadores) não é mera coincidência. Levado para a Internet, o jogo assume a forma textual, muito semelhante aos MUD[5]s estudados por Sherry Turkle. E a autora observa então que o jogo é “simultaneamente parecido e diferente de ler um livro ou ver televisão. Tal como na leitura, há texto, mas nos MUDs este é construído em tempo real, e tornamo-nos co-autores da história”. (TURKLE, 1997, p. 272). A dificuldade de classificação – se em livro ou programa de TV – decorre justamente do fato de que não se trata de nenhuma das coisas especificamente. Trata-se de um padrão, identificado como narrativa, que atravessa mídias múltiplas para constituir-se.

Não é com grande surpresa, portanto, que esse padrão pode ser observado nos ambientes de realidade virtual. O “live action game” (estilo de jogo em que os participantes se caracterizam como seus personagens, numa espécie de teatro de improviso) sempre foi popular entre os jogadores. Isso porque, dessa forma, obtém-se uma maior imersão – algo que se aproxima do conceito de “imediação[6]“, apontado por Bolter e Grusin ou do “mito da transparência[7]“, posteriormente apontado por Grusin e Gromala. Era de se esperar que as plataformas de realidade virtual servissem, uma vez que são altamente imersivas, como espaço privilegiado de construção para esses padrões narrativas, em especial sendo “Vampiro – A máscara” um jogo. Como observa Santaella:

Muito antes da cultura digital ter trazido à baila os conceitos de imersão e interatividade, esses conceitos já eram centrais em quaisquer tipos de jogos. (…)

Imersão, em um sentido psicológico e perceptivo, é não necessariamente no sentido cibernético, é uma condição a ser preenchida por qualquer tipo de jogo, por mais rudimentar que seja. (SANTAELLA, 2007, p. 436-7)

Assim, comparar-se-á, a partir de agora, a narrativa estabelecida no jogo de mesa com aquela que transcorre numa plataforma de realidade virtual, no caso, o Second Life. Utilzar-se-á, para tanto, três categorias: a narrativa em si mesma, as ações narrativas (ou na narrativa) e, finalmente, a forma como essas narrativas são reconstruídas pelos usuários, no sentido da “dimensão utilitária” apontada por Benjamin.

A narrativa – É curioso notar como praticamente todas as características do jogo de mesa estão presentes na realidade virtual. Principalmente quando se sabe que as mesmas regras não puderam ser aproveitadas no Second Life. Por uma questão de direitos autorais, os jogadores da ilha “Lendas Urbanas” (maior concentração de brasileiros jogadores de RPG com temática “vampira”) desenvolveram suas próprias regras baseadas naquelas do livro. Basicamente, a ilha se organiza basicamente através de dois eventos semanais: quests, e raids. As quests são o jogo em si, a aventura. Todas as raças de vampiros (as 13 descritas em “Vampiro – A máscara”) participam dessas aventuras juntas. Entretanto, durante as raids essas raças se enfrentam em batalhas campais.

As informações que normalmente estariam contidas na ficha (como pontos de vida, por exemplo) passam a ficar disponíveis sobre a cabeça do avatar. O gerenciamento dessas informações se dá de acordo com as regras através de um programa que, rodado paralelamente ao Second Life, permite que os usuários intercambiem essas informações.

Em termos da composição visual, tanto os personagens como os ambientes seguem o padrão “vampiro/gótico” descrito no livro (como pode ser observado nas figuras 1 e 2). A ilha possui inúmeras referências transmidiáticas, (indo de pinturas e desenhos até arquiteturas de diversos períodos e localidades) assim como a composição dos personagens.

Fig. 1 - Avatar caracterizado como personagem de Vampiro
Fig. 1 - Avatar caracterizado como personagem de "Vampiro"

Fig. 2 - Um dos ambientes da ilha Lendas Urbanas
Fig. 2 - Um dos ambientes da ilha "Lendas Urbanas"

Observa-se, portanto, um perfeito exemplo da degenerescência sígnica acima referida. Ao transpor para um meio audiovisual interativo um padrão narrativo antes circunscrito exclusivamente ao código verbal, – via narrativa do mestre, texto dos livros e fichas e interlocução dos jogadores – obtém-se um padrão que é representativamente mais rico. Se esse padrão realmente resulta na geração de interpretantes mais ligados á estética e à mudança de hábitos, é assunto que será abordado nos próximos tópicos.

As ações – Nesse ponto, o fato do transporte da narrativa para um ambiente imersivo parece de crucial importância. Afinal, é ele quem caracterizará as possibilidades de ação (e interação) dos jogadores. Parece fundamental, portanto, levar em conta um dos conceitos centrais trazidos por Janet Murray, o de “agência”:

Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significantes e ver o resultado de nossas escolhas e decisões. Esperamos sentir agência no computador quando damos um duplo clique sobre um arquivo e ele se abre diante de nós, ou quando inserimos números uma planilha eletrônica e observamos os totais serem reajustados. (MURRAY, 2003, p. 127)

Ora, e é justamente em agência que ganham os jogadores ao se verem imersos numa plataforma de realidade virtual. Ao acionar comandos e verem seus avatares dispararem feitiços ou usarem armas, os jogadores estão muito mais próximos da narrativa construída por eles do que em qualquer outra hipótese. Mesmo nos Live Action Games, em que o livro de regras deixa claro que qualquer tipo de arma ou objeto cortante é proibido.

Além do mais, toda uma gama de possibilidades de ação se abre para o jogador, fazendo com que não apenas o jogo, mas sua existência possa ser moldada de acordo com a narrativa. Afinal, seu avatar pode comprar (ou mesmo criar) vestimentas e acessórios para si, que tenham a ver com ser personagem. Pode buscá-los em ilhas e lugares os mais diversos possíveis e em colaboração com qualquer pessoa que esteja conectada.

Mesmo as construções presentes na ilha “Lendas Urbanas” são constantemente modificadas pelos jogadores, de modo a se adequarem ao jogo que transcorre. Tudo isso aproxima o jogo de um processo de interação mútua:

(…) os processos de interação mútua caracterizam-se por sua construção dinâmica, contínua e contextualizada. (…) As ações interdependentes desenvolvidas entre os interagentes, coordenadas a partir da historicidade do relacionamento, não são previsíveis, pois são criadas apenas durante o curso da interação. (PRIMO, 2007, p. 116)

Vale lembrar também que a interação mútua, no estágio tencológico atual, só pode se dar entre dois seres vivos – ainda que mediada por computador. O fator social é, portanto, determinante para a construção da dinamicidade interativa (como Benjamin insinuara, aliás).

Em termos de ação tem-se então um padrão narrativo muito mais próximo daquilo que ele representa, sendo assim também mais adequado aos propósitos da narrativa definida por Benjamin.

A “função utilitária” da narrativa – Como resultado de tudo o que foi observado acima, sabe-se que os interpretantes gerados pelos jogadores serão também mais dinâmicos, processuais e, portanto, mais ricos, do que aqueles mais “direcionados” e específicos,  provenientes de semioses de signos simbólicos.

Embora um estudo de recepção talvez seja necessário para tornar mais clara essa afirmativa, alguns fatos podem ser arrolados no sentido de demonstrar que os interpretantes gerados cumprem a “função utilitária” apontada por Benjamin na narrativa.  O primeiro deles diz respeito justamente às regras, recriadas pelos próprios usuários. Ora, uma das características da oralidade é justamente sua natureza não-estanque, em constante mutação e de acordo com os ânimos de seus interlocutores. Enquanto no caso da narrativa verbal tem-se que o livro tem regras estritas e específicas, no Second Life elas são transformadas de acordo com a vontade dos participantes. Aliás, a transformação do próprio ambiente, bem como dos avatares, é um forte indício dessa característica.

Um segundo fato de especial importância consiste no respeito que os jogadores tem pelas regras, horários e funcionamento da ilha “Lendas Urbanas” e dos jogos que ali transcorrem. E se “o narrador é um homem que sabe dar conselhos”, os criadores dos padrões (como as regras, construções ou a própria narrativa) também conseguem estabelecer uma dimensão de vigência, separando o certo e o errado, criando uma “ética” própria. Balizadas mais pela estética do que pela lógica, as semioses passam a desencadear também mais mudanças de hábito, aumentando a dinamicidade das representações e tornando os novos padrões menos cristalizados, no sentido de que, enquanto hábitos, também poderão vir a ser alterados por semioses futuras.

O “utilitário”, no caso específico do jogo, se dá justamente pelo fato de que a narrativa assim degenerada se adequa melhor aos propósitos narrativos do RPG, tanto em sua dimensão lúdica (suprida pela imensa gama de ações ali disponibilizada), como em sua função narrativa (expandida pelas possibilidades da rede sociotécnica e da plataforma de realidade virtual). Socialmente, se torna um ambiente de convivência, troca de experiências (estéticas, lúdicas, éticas e lógicas) e de progressiva mudança de hábitos, tendendo, segundo o pragmaticismo, para a razoabilidade coletiva.

Considerações finais

De acordo com o exposto acima, podem-se fazer alguns apontamentos:

1)      A narrativa no sentido exposto por Benjamin não tende a desaparecer, do contrário, renasce com as possibilidades oferecidas pelas tencologias digitais.  Isso decorre do fato de que quanto mais degenerados forem os padrões representativos utilizados, mais dinâmicos e complexos eles se tornam. Esse fenômeno acaba por aproximá-los do padrão da narrativa oral, mesclando-os a vários outros, e supera a noção de narrativa romântica, centrada apenas no código verbal e mediada pelo livro.

2)      Transposta para a realidade virtual, o padrão narrativo amplia sua dimensão utilitária. Não apenas devido as maiores possibilidades (estéticas) de representação alcançadas pela tecnologia, mas também pela comunicação em rede (ética) por ela propiciada, a narrativa incorpora e realiza, ainda mais plenamente, sua função social (lógica).

Referências:

BOLTER, Jay David et GROMALA, Diane. Windows and mirrors – interaction design, digital art and the myth of transpraency. Cambridge: MIT Press, 2003

BOLTER, Jay David et GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding new media. Cambridge: MIT Press, 2000

JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide. New York: New York University Press, 2006

JOHNSON, Steven. Cultura da Interface – Como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. RJ: Jorge Zahar Editor. 2001.

MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Ed. UNESP. 2003.

PIMENTA, Francisco José Paoliello. Semiótica e plataformas interativas multicódigos. In: Anais do I Seminário de Epistemologia e Pesquisa em Comunicação.São Leopoldo: UNISINOS, 2009

PIMENTA, Francisco José Paoliello e LORENA, Dimas Tadeu Filho. Summum bonum na rede: a conectividade é algo admirável?. In: E-compós, ed. 9. Disponível em: < http://www.compos.org.br/files/02ecompos09_Pimenta_Lorena.pdf> Acesso em: 11/03/2007

PRIMO, Alex. Interação mediada por computador. Porto Alegre: editora Sulina. 2007.

REIN.HAGEN, M. Vampire – The Masquerade. NY: White Wolf. 1991

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. SP: Paulus. 2003.

_____. Linguagens líquidas na era da mobilidade. SP: Paulus. 2007

TURKLE, Sherry. A Vida no Ecrã, A Identidade na Era da Internet. Lisboa: Relógio d’Água Editores. 1997.


[1] Ver HEIDEGGER, 197 qualquer coisa. Em seu texto clássico, o autor debate a técnica e a coloca num ponto de relação – comunicação, caso se prefira – entre o humano e o natural, um instrumento através do qual o homem “molda” – dis-põe de – seu ambiente.  Por isso, fez-se a opção, no corpo do texto, de se entender um processo dito social (caso da narrativa) como uma “técnica”.

[2] Para um estudo mais detalhado sobre a importância da estética e da mudança de hábitos representativos para o pragmaticismo de Peirce, ver PIMENTA e LORENA, 2007.

[3] Traduzido livremente do original: “By convergence, I mean the flow of content across multiple media platforms, the cooperation between multiple media industries, and the migratory behavior of media audiences who will go almost anywhere in search of the kinds of entertainment experiences they want”.

[4] Traduzido livremente do original.

[5] Abreviação para Multi User Dungeon , em potuguês: “Calabouço multi-usuário”.

[6] Ver BOLTER et GRUSIN, 2000

[7] Ver GRUSIN et GROMALA, 2003

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem um comentário

Deixe uma resposta